Isis Baião
Blog Title

O Retorno (uma história de outros tempos)

 

“Por favor, não desligue”, suplica a voz do outro lado da linha. Uma voz de mulher, remotamente conhecida. Ao apelo, segue-se a identificação, Vânia de Albuquerque, e frases entrecortadas pelo choro, pedidos de perdão em formas diversas. Há 30 anos que Telma não ouvia aquela voz. Chora também. Sim, perdoa. Doeu, mas faz tanto tempo! Esqueceu. Não, não tem mágoa e poderão encontrar-se daí a pouco. Desliga. Tremem-lhe as mãos. Como num filme, vêm-lhe imagens nítidas de um passado longínquo:

Um pequeno talho no indicador e os dedos se juntam. Pronto, está feito o pacto de sangue. Serão amigas para sempre.

Eram da mesma idade, embora Telma parecesse mais velha, pois, aos 10 anos, já tinha uma desenvoltura que lhe fazia passar por uma adolescente.

Aos 15 anos, cursavam juntas o Normal. A saída do colégio era sempre uma festa. Os garotos passeavam de bicicleta na calçada, esperando as meninas. Vânia e Telma também tinham bicicletas, mas seus namorados nunca estavam na calçada, à vista das freiras que espionavam do 2º andar. Luis e Fernando as esperavam a algumas quadras do colégio. Vânia namorava Fernando, que tinha namorado Telma. Gostavam de trocar entre si os namorados. Ciúmes, só tinham uma da outra.

Vânia tentou convencer Telma a fazer Pedagogia, mas Telma estava decidida a ser atriz. Choraram abraçadas e depois riram muito. Não havia motivo para tanto drama. Iam separar apenas as escolas e as salas de aula.

Mal entrou para a Curso de Teatro, Telma já estava nos palcos. Tinha talento e sorte. Um diretor de cinema do Rio, que filmava na região, convidou-a para um pequeno papel. Os jornais estamparam sua foto beijando um astro nacional. Glória, que logo se torna escândalo na sociedade local, ainda provinciana. Os pais de Vânia, de tradicional família de fazendeiros, pressionam a filha para que se afaste de Telma. Vânia reage: jamais deixará a amiga, com quem fez um pacto de sangue. Mas logo entrará em cena o tenente Virgílio Andrade para mudar o rumo da história.

Telma volta correndo de um Festival de Teatro no Sul para assistir ao casamento de Vânia e Virgílio. Mas recebe um telefonema lacônico da amiga, pedindo-lhe que não vá ao casamento e que nunca mais a procure…

Segue-se a vida. Telma casa-se com um músico do Rio e começa a fazer carreira nos palcos cariocas. Vânia cria filhos, enquanto Virgílio se diverte nos bordéis da cidade. Nas longas noites de insonia, Vânia procura em jornais e revistas da metrópole notícias da amiga. Recorta todas, mesmo as mais tolas.

A vida de Vânia é agora um inferno. Virgílio tornou-se violento, espanca-a frequentemente. Ela quer a separação, mas o marido ameaça matá-la. Numa das surras, porém, ele quase a mata. Ela deduz que será melhor morrer em liberdade e foge de casa com os filhos. Seus pais contratam um segurança para defendê-la do marido enfurecido. Neste exato momento, Telma de Aquino

chega à terra natal, liderando o elenco de um espetáculo em tournée pelas capitais do Nordeste.

E aqui retomamos o início desta estória, quando a atriz recebe o telefonema da amiga. Suas lembranças são interrompidas pela chegada de um grupo de jornalistas e câmeras de TV.

Enquanto isso, Virgílio sequestra Vânia. Ela se joga do carro em movimento e morre. Virgílio foge.

Quando está de saída para ir ao encontro da amiga, Telma recebe a notícia de que Vânia está morta.

A cena muda

O deputado jaz no seu caixão mortuário, cercado de coroas e lágrimas dos familiares. (O deputado sentiu-se mal na Assembleia, quando, emocionado, dizia-se vítima de um complô perverso da esquerda. As ambulâncias não chegaram a tempo. Misteriosamente, pifaram a meio caminho, todas).

Amigos e correligionários vêm-lhe prestar a última homenagem. A cada cumprimento compungido, a viúva chora. Do burburinho no salão, de vez em quando sobressai-se um riso. Paira no ar um contentamento mal disfarçado. (O deputado estava sendo pressionado pela operação Lava-Rápido e diz-se que, se abrisse a boca, muitas reputações rolariam)

Súbito, cresce o burburinho. Lá fora, a turba se agita. Gritos e xingamentos invadem o salão, enquanto a polícia tenta conter os grupos dos sem (sem teto, sem terra, sem história, sem saúde, sem juízo, sem sem), que ameaçam o nobre recinto, atirando ovos e tomates, num destemperado desrespeito ao poder constituído.

Rodeado pelos seguranças, está entrando o Presidente da Casa e sua comitiva. Com suas roupas salpicadas de ingredientes culinários, os ilustres políticos mais parecem personagens saídos de uma comédia pastelão. Um cordão de puxa-sacos adianta-se na faxina aos ternos e gravatas aviltados.

A viúva recebe um buquê de rosas vermelhas. Numa cena comovente, beija cada rosa antes de colocá-la sobre o corpo inerte do amado. (Certa vez, o deputado a presenteou com uma chuva de rosas vermelhas, caídas de um helicóptero). O falecido parece sorrir. Assustada, ela cobre com um lenço aquele querido sorriso de descaramento.

Mas nem a dor da viúva consegue inibir a absurda alegria que, como erva daninha, alastra-se pelo ambiente.

De repente, ouve-se uma espécie de rugido vindo das entranhas do morto. Os familiares e um curioso que levantava o lenço de decoro da cara do parlamentar, recuam empanicados: “Oh!”. Um arrepio percorre os circunstantes: “Oooooooh!”.

O deputado levanta a cabeça, olha em torno, senta-se, retira os algodões das narinas, o lenço que lhe segura o queixo e sorri, traquinas, qual um menino que aprontou mais uma. Mas antes que o ex-falecido abandone o caixão, ouve-se um estrondo e um cogumelo de fumaça engole o salão, que se desmancha como que sugado pelas profundezas da terra.

“Povo implode deputado e seus cúmplices”, diz um locutor de TV.

Lá fora, soa a batucada dos sem, que, em profano delírio, canta: “não chore não, vovó, não chore não…”