Samária Andrade

 

“Você está aqui como um jornalista ou como um gay com aids? Quem é você?” –  perguntou, desafiador, um repórter de tevê durante o cortejo fúnebre de um líder do movimento Act-Up que morrera de aids (o Act-Up foi formado em 1987, em Nova York, por ativistas em defesa da vida de pessoas com aids). A pergunta se dirigia a Jeffrey Schmalz, jornalista do New York Times, quase uma celebridade no meio jornalístico norte-americano, que acompanhava o cortejo para fazer uma matéria. Dois anos antes ele mesmo foi diagnosticado com aids.

Era início dos anos 1990 e Schmalz, então editor-adjunto do New York Times, acreditou por muito tempo que seu sucesso na carreira foi, entre outras coisas, ter escondido sua homossexualidade. Depois que se descobriu com aids, tornou-se porta-voz e defensor dos que sofriam com a doença e com os preconceitos ligados a ela. Ao mesmo tempo, tomava cuidado de refrear seus sentimentos nas matérias. Sobre o cortejo fúnebre, no auge de seus conflitos pessoais sobre como deveria se localizar na cobertura do tema, decidiu que ele não merecia matéria, apenas uma foto e legenda. E foi o que fez. Uma semana depois, no entanto, em 20 de dezembro de 1992, publicou o texto intitulado “O cara do New York Times com aids”, um desabafo, em que abordava frontalmente o fato de ser um jornalista, ser gay e ter aids. “Por vinte anos, eu fui um jornalista que seguia as regras e não permitia nenhum envolvimento pessoal. Mas agora eu vejo o mundo pelo prisma da aids. Sinto-me obrigado perante as pessoas com aids a escrever sobre a doença e perante o jornal a escrever sobre algo que nenhum outro repórter seria capaz de cobrir da mesma maneira”.

No dia da pergunta, com um microfone à sua frente, ele não teve reação imediata. Contou, no texto confessional, que a multidão se aproximou querendo saber a resposta. “Eu também queria” – escreveu. “Finalmente ela veio: jornalista”. A resposta decepcionou os ouvintes. E a pergunta continuaria a reverberar no jornalista, como revela seu texto: “Naquela tarde chuvosa, passei no teste do jornalismo ao falhar no teste do ativismo”- concluiu. “Fiquei pensando como devia ser difícil para pessoas negras fazer matérias sobre pessoas negras, para as mulheres fazer matérias sobre mulheres. E, no entanto, esse tipo de reportagem é a última palavra em jornalismo. Certas pessoas acham que é o jornalismo que sofre, e que com isso se abandona a objetividade. Mas estão enganadas. Se os repórteres têm alguma integridade, são eles que sofrem, presos entre duas lealdades”.

Esse episódio nos leva a entrevista recente, ocorrida em Teresina, quando um grupo de cinco jornalistas, num estúdio da TV Meio Norte, entrevistava Sílvio Mendes (União Brasil), candidato a governador do Piauí. Respondendo à única jornalista negra, talvez instruído a ser cuidadoso, saiu-se mais como um elefante numa loja de cristais e falou a frase que repercutiria nas redes sociais: “Katya, eu imagino quantas discriminações você não sofreu, você, que é quase negra, mas é uma pessoa inteligente, teve oportunidade que a maioria não teve e aproveitou”. Disse ainda que, se eleito, não empregaria pessoas de sua própria família, elas teriam que se esforçar, como a jornalista negra fazia. Katya D’Angelles não esboçou reação. Nem seus companheiros e companheiras de estúdio. Nem a TV onde trabalham. As frases, ditas com aparente intenção de incluir, excluíam. Ao reconhecer o quanto foi preciso esforço para estar ali e salientando a cor de sua pele, dizia para aquele corpo negro o quanto ele era estranho àquele espaço.

Ser um jornalista que segue as regras serve também para evitar o embate com as questões profundas da profissão.

Imaginei as pressões a que a jornalista se viu submetida: falar algo na hora, ao vivo? O que falar? O que o movimento negro estava dizendo? Que repercussão aquilo estava ganhando? Contrariar o político importante? E em período eleitoral, onde esse fato – e, de certa forma, ela – poderia ser usado por opositores do candidato? Jornalista se posiciona ao vivo, na presença do entrevistado? Jornalista defende o grupo ou causa à qual reconhece pertencer? Seria ativismo? Deixaria de ser jornalismo? Imaginei Katya como Schmalz, talvez acompanhando o cortejo de um corpo. Um outro corpo, que não parecia o seu, mas que poderia ser o seu também. Para ela, talvez o repórter de tevê perguntasse: “Você está aqui como jornalista ou como uma mulher negra?”. A multidão queria uma resposta. Imaginei que Katya também queria.

Depois de dias sem se pronunciar, a possível resposta da jornalista veio em um depoimento à repórter Vitória Pilar, publicado no portal O Estado do Piauí. Sem citar nomes, ela diria que “entender um episódio racista nunca é de uma hora para outra” e que sempre foi e quer continuar sendo “maior do que qualquer situação que tente me reduzir”. Schmalz, me parece, viveu conflitos pessoais/profissionais idênticos.

Esse episódio foi discutido sob o ponto de vista do racismo, mas é também preciso abordá-lo sob o viés das questões relativas ao trabalho e aos valores profissionais – campo de pesquisa que tem crescido nos estudos de jornalismo. E para pensá-lo sob esse viés, há que se levar em conta dois aspectos fundamentais: um é a ideologia profissional, que fala em objetividade e em imparcialidade do jornalista. Essa discussão geralmente não se aprofunda, mas dita regras e vem carregada de um positivismo conservador e forte dose de simplificação. Ainda que esse positivismo já encontre questionamentos, ele serviu como ponto de partida para uma epistemologia da profissão ao longo dos séculos 19 e 20. E continua a ser valioso para parte dos jornalistas, ou continua a pesar como valor profissional sobre os ombros destes e suas avaliações do que podem/devem reportar e como podem/devem fazê-lo. Também é um valor aceito por grandes parcelas do público, dos anunciantes e assimilado em campanhas de divulgação dos veículos de comunicação. Termina sendo um tema pouco discutido do ponto de vista crítico e empurrado para debaixo do tapete pelos jornalistas. Ser um jornalista que segue as regras serve também para evitar o embate com as questões profundas da profissão.

O chamado jornalismo declaratório é incapaz de enfrentar a realidade, acossado que está pelas mentiras que não ousou chamar “mentira” – seria parcial.

O modelo que busca a objetividade como um valor total conduziu à ideia de que bastava ouvir os “dois lados” – ufa! – e o jornalismo estaria cumprindo sua função. Isso levou ao chamado jornalismo declaratório, hoje incapaz de enfrentar a realidade, acossado que está pelas mentiras que não ousou chamar “mentira” – seria deselegante, parcial. E adequou toda uma linguagem para não ferir a realidade. Na gramática onde a palavra mentira foi subtraída, o “perverso” foi chamado de “polêmico”. Até que a desinformação (ou deveríamos chamar mentira?) se instalou e está muito à vontade.

Ela tem sido tema de incontáveis artigos científicos e de todos os congressos de jornalismo desde o ano passado. A desinformação/mentira, afinal, parece estar nos trazendo um bem: nos obrigando a olhar o monstro de frente. Que vocabulário eu, jornalista, estou usando ao lidar com o que reporto? Até onde ou o que posso/devo falar? O que não precisa estar na matéria ou o que, ao contrário, deveria estar? Até onde posso ser parte do que reporto? Nelson Traquina já havia nos falado que a objetividade não é a negação da subjetividade, mas, ao contrário, a confirmação da existência desta. E que é exatamente por sermos subjetivos que devemos perseguir a objetividade. “A objetividade surgiu no Jornalismo precisamente quando se chegou à conclusão de que não era possível escapar da subjetividade”. O autor lembra que a objetividade é uma noção importante para outro valor jornalístico: a credibilidade.

Um segundo aspecto do mundo do trabalho nos faz olhar, sob o prisma da economia política da comunicação e sua preocupação com as relações de poder, para um momento instável, em que jornalistas encaram um mercado concorrido e em transformação – desde tecnológicas às trabalhistas, desde modos de fazer à diminuição de postos formais de trabalho e enfraquecimento de leis de proteção ao trabalhador. Esse espaço de trabalho tem se revelado um solo movediço, precarizado, exigente, carente de redes de apoio aos jornalistas, com múltiplas funções recaindo sobre um mesmo profissional – até mesmo o desprofissionalizando (quem deve fazer de tudo talvez não precise fazer nada muito bem feito).

Nesse cenário de autonomia sempre relativa do jornalista, na relação com a empresa e com o público, até onde o jornalista se sente autorizado a “enfrentar” um entrevistado? Como se articulam as relações econômico políticas entre os veículos de comunicação, os entes políticos, anunciantes, sociedade, grupos de interesse? Como o jornalista se percebe (se é que está tendo tempo de se perceber) em meio a tudo isso?

Nesse cenário de autonomia sempre relativa do jornalista, até onde ele se sente autorizado a “enfrentar” um entrevistado?

Ao situar o jornalismo como um negócio e uma profissão, Juarez Bahia fala do jornalista como alguém que se move entre regras cujos extremos são o lucro e a honra – os extremos, frisamos, para lembrar que entre um e outro há margens de manobra. Schmalz enxergou os jornalistas como profissionais que sofriam, presos entre duas lealdades. Referia-se a uma lealdade consigo mesmo e com o público e uma lealdade relativa à ideologia profissional, que buscava não macular a objetividade. Aqui podemos pensar em uma terceira lealdade: ao emprego.
Some-se a isso o fato de que jornalistas estão atravessados pelas questões que lhe são contemporâneas e como elas estão repercutindo nas interações sociais: racismos, machismo, desigualdades, preconceitos – que ora podem reproduzir, ou ignorar, ou reagir de modo a contribuir com as reflexões.

A despeito de toda a polêmica gerada no caso com a jornalista Katya D´Angelles, dias depois, dois outros episódios envolveram o mesmo candidato a governador e dois outros jornalistas, o que leva a supor que o candidato ou reproduz um comportamento que se revela estrutural ou acredita que encontrará eco entre parcela de seus eleitores, a exemplo do bolsonarismo. Na TV Clube, afiliada da Rede Globo, questionado pelo jornalista Marcos Teixeira sobre o fato de aludir, em sua campanha, ao ex-presidente Lula (PT), quando, na verdade, é apoiado por Ciro Nogueira (PP), ministro-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, Sílvio Mendes disse ao jornalista: “Marcos, você parece que é petista”. A reação tentava desqualificar a pergunta (um dia depois dessa entrevista, o próprio Jair Bolsonaro, em sua live semanal, mostrou cartaz e pediu voto para Sílvio Mendes). Dias depois, na mesma TV Clube, perguntado pelo jornalista Felipe Pereira sobre a ausência, no seu plano de governo, de políticas públicas destinadas a pessoas negras, disse que acha “tão igual, tão igual” negros e brancos, argumentando que não é a cor da pele que define as diferenças entre as pessoas. A fala, que tenta parecer não preconceituosa, nega às pessoas pretas o reconhecimento do racismo e suas consequências criminosas.

Nesses dois últimos casos, os jornalistas rebateram as afirmações. Pode-se considerar aqui o aspecto de gênero: esses dois outros casos ocorreram com jornalistas homens. Além de outros pontos: talvez esses dois jornalistas estivessem menos desprevenidos que no primeiro episódio, talvez se sentiam mais amparados pelo veículo de comunicação onde operam, talvez mais confiantes de certo apoio que veio das interações sociais. José Luiz Braga defende que na produção e recepção de sentidos das mensagens midiatizadas importa mais a circulação posterior à recepção imediata, uma vez que as proposições circulam, retrabalhadas, tensionadas, reinseridas nos contextos mais diversos, compondo uma movimentação social dos sentidos que escapa à mensagem primeiramente veiculada (aliás, ele também questiona o que seria essa “primeira” mensagem). Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer que as respostas sociais posteriores as entrevistas não beneficiavam o candidato.

Acostumado a ser espectador do desastre sem participar dele, o jornalista tem sido instado a também ser personagem da matéria – e não somente como quem reporta, mas como quem está vivo, muito vivo.

Não obstante, mesmo com o tema da última interação repercutindo negativamente ao candidato e recebendo até nota de repúdio da tradicional comunidade quilombola do Mimbó, e mesmo que o meio de comunicação não tenha controle sobre a repercussão de seu conteúdo, a manchete do portal G1 PI, da TV Clube, sobre a entrevista com o candidato, trazia a abordagem que mira a objetividade, com os seguintes título e subtítulo: “Candidato ao governo do Piauí Sílvio Mendes (União Brasil) fala sobre suas propostas no Bom Dia Piauí: Sílvio Mendes detalhou por 26 minutos sobre suas propostas para os piauienses.” Ou seja: entre a angulação que repercutia nas interações sociais e chamaria mais a atenção – e parecia carregar maior valor notícia –  e a ideia de que o jornalismo deve se mostrar higiênico, o portal investiu na segunda opção.

Por muito tempo acostumado a ser espectador do desastre sem participar dele, o jornalista tem sido instado a também ser personagem da matéria – e não somente como quem reporta, mas como quem está vivo, muito vivo. Por muito tempo escamoteando sentimentos em busca do rigor profissional, o jornalista é capaz de ter acreditado que conseguiria separar a emoção do fazer jornalístico. Pressionado a cada vez mais produzir contra o tempo e, até por isso, a pouco refletir ou fazer autocrítica (ao menos pública) sobre o trabalho que desenvolve, o jornalista terá que arrumar algum tempo onde caibam questões que, antes de superadas, estão palpitantes: quem é o jornalista? E qual o lugar do jornalista?

Menos de um ano depois de escrever seu texto desabafo, Schmalz morreu, em 7 de novembro de 1993, aos 39 anos, por complicações em decorrência da aids. No relato pessoal ainda lembrou como descobriu que tinha aids: estava trabalhando na redação do New York Times, via-se como absolutamente saudável e então passou mal, teve uma perda de visão momentânea e um desmaio. Escrevia o desabafo no mesmo local em que desmaiou, mas agora, ao se questionar enquanto jornalista, um profissional que não queria ser ativista; que, ao mesmo tempo, reconhecia que continuava a ser alguém com aids, mesmo quando tratava de outros assuntos; que, antes de saber que tinha aids, julgou entrevistados com a doença como frívolos e disponíveis a aparecer na reportagem; que não se envolvia; que se orgulhava de se separar do que assistia… Ele agora diz que enxerga tudo de outra forma: “Agora, vejo as coisas com mais clareza do que nunca”.

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Samária Andrade é jornalista, Doutora em Comunicação pela UnB, professora de Jornalismo na UESPI (Universidade Estadual do Piauí), Coordenadora do grupo de pesquisa Trampo – Trabalho e mídia: teoria e práxis noticiosa (UESPI/CNPQ) e membro do Grupo de Pesquisa COMUM, do PPGCOM da UFPI (Universidade Federal do Piauí).

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Referências:

BAHIA, J. Jornal, história e técnica. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.

BRAGA, J.L. A sociedade enfrenta sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006.

SILVA, Gislene. Da necessidade dos estudos de jornalismo. Estudos em Jornalismo e Mídia (Florianópolis), v. 1 nº. 2, 2004, p.199-210. [entrevista com Nelson Traquina].