Por Samária Andrade

Pensei que quase todos os problemas pudessem ser resolvidos com a escrita. Assim, num dia em que eu estava triste, considerei que seria um bom dia para fazer uma matéria. Eu poderia ouvir as histórias de outra pessoa e depois escreveria sobre aquilo, como um antídoto, uma espécie de cura.

Havia algo de egoísmo nisso. Ao ouvir os problemas de outra pessoa, talvez com dificuldades maiores que as minhas, quem sabe eu me confortaria. “Olha aí, você nem tem o maior problema do mundo.”

Bom, para ser sincera não funciona exatamente assim. O jornalista não fica competindo pra saber quem tem o maior problema: ele ou o entrevistado. Até porque, geralmente, a medida em que se conversa, vai-se esquecendo o que lhe angustia, quase como uma terapia. E de repente não há mais egoísmo, mas talvez solidariedade.

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O médico Antônio de Noronha em sua rede e suas histórias, na companhia de Wellington Soares, André Gonçalves e Samária Andrade.

Talvez o jornalismo possa fazer isso vez ou outra: lhe lembrar que não é você o centro do mundo, mas há tantas histórias esperando para serem contadas (algumas talvez esperando para serem respeitadas). E em tempos de crise profissional, quando as formas de jornalismo e o fazer jornalístico são questionados, talvez seja bom que a gente possa lembrar disso: o jornalismo serve para contar histórias – que não são as histórias do jornalista, mas de um outro, que não precisa ser o mais rico, o mais conhecido, o mais inteligente, o mais bonito. Mas alguém. Alguém com sua história.

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O piauiense Chiquinho, em sua livraria na UnB

Eliane Brum disse que para fazer jornalismo é preciso fazer “um movimento profundo que consiste em se desabitar de si para ser habitado pelo mundo do outro”. Ela fala em despir-se das suas visões de mundo, preconceitos, julgamentos, para se deixar habitar por uma outra experiência. E, depois, empreender o caminho de volta, o que não é nada fácil. Ela ainda diz: “Se um repórter não faz este movimento, em vez de escrever sobre um outro escreverá apenas sobre si mesmo.”

 

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Luana Sena ouve as histórias do padeiro Seu João

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Nayara Felizardo, um brinde (só pra conferir se o que o mestre cervejeiro falou faz sentido)

E é claro que esse não é um caminho fácil. Nunca há uma só verdade em uma história. Há sempre contradições, outras possibilidades. Mas talvez essa seja a profissão que mais possibilite essa aventura: desabitar-se de si e ser habitado por outro. Algo parecido talvez experimentem os escritores de ficção ou os atores. Mas estes, na maior parte do tempo, estarão sendo habitados por pessoas que só existem na ficção ou por eles mesmos. No jornalismo não: aqui você se deixa preencher pelas histórias de outro que tem existência real, com suas vivências, alegrias, tristezas, tentativas de querer ser ainda outro. E não vai adiantar você fazer a matéria mais distante ou a cobertura mais internacional se você levou tanto de si que não deu espaço ao outro.

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Victória Holanda: porque nem só o acrobata Arnaldo se desdobra

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Maurício Pokemon: fotografar é também conhecer o outro

Assim, seja na esquina de sua casa, seja no Japão, antes de sair com a sua pauta, desabite-se. Talvez seja esse o movimento mais difícil do repórter: se esvaziar de si e se deixar ocupar pelo outro, sem “pré-conceitos”, liberto do que já sabia antes do encontro. Vale a pena o exercício. Ainda que você se pergunte: e agora, quanto eu trouxe do outro comigo?