Por Samária Andrade

A jovem aspirante a artista ouviu do bailarino e coreógrafo: “Que artista você quer ser?” Marcelo Evelin, recém-chegado a Teresina de uma de suas idas e vindas à Europa, assumiria a direção do Teatro João Paulo II, inaugurado pela Prefeitura Municipal no bairro Dirceu Arcoverde. Ele visitava espetáculos pela cidade a procura de “pareceiros”. Descobriu Soraya Portela, a quem dirigiu a pergunta, quando ela encenava uma peça de teatro em que interpretava uma velha. O coreógrafo lhe disse algo como: “Estou montando uma equipe de artistas, não sei bem o que vamos fazer, você topa?” Ela topou.

Essa historinha foi contada por Soraya na “Entrevista Performática”, atividade que Evelin tem conduzido no Campo Arte Contemporânea, espaço cultural que criou e coordena atualmente. Após aquele convite, em pouco tempo Soraya se via cortando a cidade de ônibus para chegar ao Dirceu, olhos grudados na janela e imaginação longe. Junto ao grupo que Evelin foi reunindo, passavam dias montando e remontando as ideias do queriam fazer. “Vou ser artista” – ela disse à família. “Eu nem lembro direito o que a gente fazia, mas a gente passava o dia ocupado”, contou Evelin. O que faziam – dia, noite, finais de semana – era um laboratório de reinventar-se. Poderia sair artista. Provavelmente sairia gente.

Marcelo Evelin e Soraya Portela na Entrevista Performática do Campo Arte Contemporânea.

O grupo teve que deixar o teatro da Prefeitura, que ficou um tanto assustada com a modernidade que traziam (essa é outra longa história). Queriam permanecer no bairro e viraram o Núcleo do Dirceu, encontrando abrigo num armazém do Supermercado Carvalho, que alugou a eles, por preço modesto, um galpão de armazenar produtos perto de perder a validade, geralmente usados em promoções. Experiente em ressignificar, Evelin adorou o que lhe parecia uma enorme provocação do destino: artistas + um galpão de supermercado na periferia + produtos perto de perder a validade + promoção. “Não perca!”

Da trincheira que ergueram, vieram espetáculos imaginativos, provocativos, alguns quase incompreensíveis (“E há algo a ser ‘compreendido’?” – disse Evelin em entrevista à Revestrés). Viraram ponta de lança de um movimento jamais visto na cidade até então. Nunca tiveram público de massa, mas atraíam gente que deixava de ir ao teatro no centro da cidade se, naquele dia, Evelin e sua turma estivessem inventando alguma coisa meio esquisita para se ver. A trupe – plural, fechada, criativa, contraditória, difícil, gentil – havia se multiplicado naquele laboratório de artista e gente. Ela se fez e refez em muitos formatos e formações que, hoje, continuam a reinventar parte da melhor produção cultural contemporânea da cidade e do país.

Revirando memórias, Soraya, bem-humorada, contou que, junto ao grupo, viajou pela primeira vez de avião e se apresentou em São Paulo. Arrancou risos ao lembrar que criou suas próprias classificações para se (re)entender no mundo. Ela era uma “bicha rabo fino”, Evelin e os artistas que vinham do sudeste do Brasil e de fora do país eram as “bichas gratinadas”. Não havia autodepreciação nas categorias criadas por Soraya. Era muito mais o jeito descontraído que ela encontrava para lidar com o que ainda nem entendia direito. Foi parar na Holanda, se perdeu nas ruas e chegou atrasada na escola de coreógrafos onde faria um teste. Com um parco inglês e muita coragem, disse uma das frases decoradas: “Sorry, I´m late”. Fez o teste. Bicha rabo fino esperta logo vai virando gratinada.

Mas tinha a pergunta que Evelin fez e que continuava a atormentar Soraya: “Que artista você quer ser?” Agora, quando nos conta isso, quase rindo, quase aflita, a dor já não era só sua: se esparramava entre nós. Soraya carrega até hoje a questão, mas também nos entregou naquela conversa. Ou (re)acendeu a indagação que também trazemos.

“Que artista você quer ser?” – A pergunta não tinha nada de simples. E nem mesmo queria resposta. Uma resposta poderia pôr fim a questão. E o que ela queria era latejar dentro do corpo desavisado que abrisse a guarda para recebê-la.

A pergunta que não deixava Soraya em paz pode ser aplicada a quase tudo, bastando substituir o nome “artista”. Que jornalista você quer ser? Que professor você quer ser? Que advogada, bancário, porteiro, médica, político, estudante? Que companheira, pai, mãe, irmão, filha, amigo, vizinho você quer ser?

Hoje, quando quase tudo quer fingir austeridade e planejamento, quando a ciência gerencial quer parecer o único caminho possível, quando os defensores da ideologia da gestão detém as dicas de como traçar carreiras calculadas para o sucesso, não é maravilhoso que logo uma bicha gratinada diga coisas como: “não sei bem o que vamos fazer”, “não lembro bem o que passávamos o dia fazendo”?

Que artista você quer ser? Uma pergunta que nem mesmo quer resposta, quando os gestionários consideram a reflexão epistemológica uma perda de tempo.

Antes de pensar em respostas, desconfie de quem traçou um caminho linear. Provavelmente essa pessoa não vai conseguir segui-lo (será que avisamos?). E se, aparentemente, conseguir: coitada.

A verdade é que há muitas maneiras de ser qualquer coisa. E a grande maioria de nós vai seguir um caminho não linear, até chegar a ser… talvez outra coisa.

Mas, mais cedo ou mais tarde a gente pode ter que enfrentar aquela pergunta. Tomara que lembremos que não se trata exatamente de dar uma resposta. Mas de remoer a questão. Quem sabe, do alto da sabedoria de uma bicha gratinada, possamos falar: “Eu não sei”. Um “eu não sei” que, antes de ser desinteresse ou irresponsabilidade, é uma espécie de autorreconhecimento.

Um “eu não sei, mas eu tô querendo saber”.