Por Samária Andrade

Parece fácil. Mas não é. Certa vez, quando Laerte era entrevistada por Marília Gabriela, esta lhe disse “você é uma pessoa sem preconceitos…”. Nesse momento a entrevistadora foi interrompida por Laerte. Ainda que parecesse um elogio, a entrevistada se recusou a ser identificada dessa forma e disse algo como: Tenho preconceitos, sim. Mas vivo resistindo, trabalhando para não tê-los.

Aquela informação ficou comigo. Mas eu só a compreendi de fato anos depois, quando entrevistamos Luiz Alberto Mendes, que estava em Teresina para ministrar oficinas de texto em presídios. Encontramos o escritor, com cinco livros publicados e colunista da revista Trip, num restaurante de comidas típicas onde ele, mesmo fazendo elogios aos pratos, se achava desconfortável: considerava que as pessoas o olhavam.

O que dava a Luiz Alberto essa sensação eram quase 32 anos de presídio. Não sei se alguém olhou de fato para ele, além de nós. Nós olhamos. E nossos olhos tinham preconceito, sim.

Wellington Soares, Luiz Alberto Mendes, André Gonçalves e Samária Andrade. Foto: Maurício Pokemon

Esse preconceito se revelava entranhado nas brechas, entre uma resposta e uma próxima pergunta. Foi assim que, quando Luiz afirmou: “no presídio, os piores caras são os da faxina”, eu prontamente perguntei: “o que é faxina?” – como se nosso entrevistado fosse revelar algo surpreendente. Ele me olhou como quem precisa afirmar o óbvio e disse: “limpeza…”.

Mas o pior viria quando Luiz Alberto contou que foi procurado por um preso que “precisava eliminar o primeiro grau”. Eu pensei: agora temos uma informação quente, e mandei a pergunta: “Quem era o Primeiro Grau?”. Luiz me observou como quem diz: “que entrevistadora maluca” e por fim falou: ele se referia ao ensino médio. Luiz Alberto Mendes era professor no presídio.

Ali eu já havia compreendido (compreender vem do latim cum-prehendere e significa agarrar a coisa com as mãos, como acontece no puro entendimento): só estava em busca de interpretações meio clandestinas para o que Luiz falava porque tinha na minha frente um ex-presidiário.

Essas histórias, depois contadas nos papos sobre mancadas da equipe, foram motivos de muitos risos. Eram também flagrantes de nossas próprias pequenezas. Nunca contei nada disso a Luiz. Não sei se ele vai sorrir ou me achar uma tola preconceituosa. Na entrevista, do alto da sua sinceridade, ele nos disse: “Meu, se você não tem preconceito com preso, tá se arriscado a tomar uns tiros!” – era a forma dele avaliar (talvez justificar?) os olhares desconfiados.

O que sei é que desde então fui aprendendo a admirar mais e mais aquele homem inquebrantável. É dele que me lembro nos dias em que pareço cansada. Depois de nossa entrevista Luiz escreveu um blog na Revestrés, lançou um novo livro, descobriu um câncer, tornou-se consultor de filmes que abordam o tema das prisões, continua a participar de inúmeros Salões de Livros e oficinas de texto pelo país. Quase todo dia registra pílulas de sinceridade e coragem nas mídias sociais. Como hoje, quando escreveu: “Hoje, exatamente hoje, a essas horas, há 14 anos atrás, eu estava sendo solto da prisão, onde ficara encarcerado dos 19 aos 51 anos de idade; 31 anos e 10 meses de prisão. É a única data que penso em comemorar. Só penso. Não tenho dinheiro e não aprendi a comemorar nada. Apenas mais um dia comum como os outros, mas eu sei, sim, eu sei…”.

Gosto de pensar que ele sabe do meu respeito. E agora, sabe da lição que me ensinou: quando for entrevistar alguém, não leve seus preconceitos – ou tente não levar – essas coisas que estão presas na gente. E que não adianta fazer de conta que não existem. Ao contrário, devemos vê-las, identificá-las, arrancá-las a contrapêlo e deixar que sequem. Deixar que sequem fora da gente. Ou elas secam a gente.

Isso serve para uma entrevista e para qualquer coisa que você for fazer na vida.