Por Samária Andrade | Fotos: André Gonçalves e arquivo
Quando avistamos a placa na calçada da Avenida de Mayo – “Bar e Restaurante Teatral La Clac recomenda: Jorgelina Piana” – imediatamente dissemos sim e entramos. Não é que conhecêssemos a artista e nem o local. É que eu e André saíamos de três dias de Congresso Internacional da Ulepicc – União Latina da Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura – em Buenos Aires, com estudiosos hablando pesquisas o tempo todo. Tudo o que a gente queria era um lugarzinho pra ouvir música e relaxar. Não demorou muito e isso se transformou numa aventura daquelas que só o jornalismo é capaz de lhe levar.
O local era pequeno, curioso e à salvo de turistas. Excessivamente decorado, com objetos de variadas décadas, formava um ambiente retrô – como quase tudo em Buenos Aires. No palco, a cantante de tango raiz Jorgelina Piana era acompanhada por três bons músicos. Quando ela soltou a voz, emocionou a pequena plateia. Alguns cantaram junto, acompanhando o repertório conhecido. A cantora chegou a chorar em algumas interpretações. Por meio do garçom ficamos sabendo mais: ela é neta do compositor Sebastián Piana, pianista argentino falecido em meados dos anos 1990, autor de cerca de 500 tangos clássicos como “Milonga Sentimental” (com letra de Homero Manzi) e “Tinta Roja” (com letra de Cátulo Castillo).
O que pessoas viajando a trabalho em um congresso fariam? Relaxariam, poderiam cantar, brindar com vinho… O que jornalistas fazem? Podem fazer isso tudo, mas fazem algo mais: acreditam que acabaram de descobrir uma boa história que estava só esperando para ser contada por eles.
Pode parecer um tanto arrogante falando assim. Na verdade, é mais romantismo.
Esperamos o show terminar e nos apresentamos aos artistas. Ouvindo que éramos jornalistas brasileiros querendo fazer uma matéria, um empresário logo tomou a frente. Em poucos minutos está marcada uma entrevista para o dia seguinte. Recebemos o endereço de onde deveríamos ir em um guardanapo.
Jorgelina estava voltando a Buenos Aires depois de 12 anos morando na Espanha com a família. Pretendia defender o legado do avô. Por isso tanta emoção. Mas essa história está na matéria já publicada em Revestrés (link abaixo). O que vamos contar agora é a história da entrevista.
Na manhã seguinte ao show, pegamos um táxi e partimos em direção ao local indicado. E como era longe! Consumiu uns bons pesos de nossa viagem. Pelo mapa, que fomos olhando, não foi golpe do motorista, foi distância mesmo.
O local era um escritório que parecia servir a outros artistas e empreendimentos. Não nos esperava apenas Jorgelina, mas também o empresário e um grupo de argentinos falantes. Na decoração do escritório, cartazes de celebridades do país e uma em destaque – Evita Peron – em fotografias na parede e no porta-retratos sobre a mesa.
Não tínhamos gravador nessa viagem e os celulares não eram ainda tão modernos. O plano não era fazer matéria – mas já devíamos saber: esse plano vive falhando miseravelmente. O empresário disse: “tranquilo, tranquilo”. Ele gravaria e nos enviaria. Provavelmente não podia perder aquele interesse da imprensa brasileira em sua empresariada. Desconfiada, como deve ser todo jornalista, tratei de anotar tudo o que diziam – ou o que conseguia acompanhar de tanto que falavam ao mesmo tempo. Me sentia já quase Truman Capote, que se orgulhava de não anotar quase nada e memorizar quase tudo. André tentava pôr ordem no portunhol – a língua predominante ali: “Intenta hablar uno a la vez, por favor”. A tentativa era inútil.
No final, voltamos ao Brasil e a gravação do empresário nunca chegou. Ou ele não conseguiu gravar ou descobriu que não éramos a Globo e não se preocupou em enviar material.
Fizemos a matéria, mantivemos contato com Jorgelina por um tempo e ficamos sabendo que ela gostou de como se viu em Revestrés. Fomos salvos pelas anotações no bloquinho de papel. Eles não falham nunca. E ainda ajudam a manter a atenção no que o entrevistado está falando. Isso, ali, era essencial.
O que nos levou do show ao escritório de bairro, com um argentino peronista e outros tantos hablando sem parar? O jornalismo. Isso que nos faz olhar show, gente, paisagem, e enxergar pauta, pauta, pauta.
Numa terra cheia de nostalgia e dramaticidade, que fala “espremido” ao invés de suco, “tormenta” ao invés de chuva, o título que demos a matéria foi “Como sofre a cantora de tango!”
Minto. Isso foi há quase dez anos e não discutíamos o gênero na linguagem como o fazemos hoje. Na época, a revista foi impressa com o título “Como sofre O CANTOR DE TANGO”. E vejam só: a história e as fotos eram de UMA CANTORA. Publicada só agora no site, fizemos essa reparação histórica.
Hasta pronto, Jorgelina!
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Para ler a matéria “Como sofre a cantora de tango”, acesse: