Por Samária Andrade

A sinopse do filme é suficiente para chamar a atenção de quem é jornalista. “Fred Rogers (Tom Hanks) foi o criador do Mister Rogers’ Neighborhood, um programa infantil de TV muito popular na década de 1960, nos Estados Unidos. Em 1998, Tom Junod (Matthew Rhys), até então um cínico jornalista investigativo, aceitou escrever o perfil de Rogers para a revista Esquire. Durante as entrevistas para a matéria, Junod mudou não só sua visão em relação ao seu entrevistado, como também sua visão de mundo”.

A promessa de A Beautiful Day in the Neighbourhood (2019) é redentora e pode ativar o bichinho crítico e desconfiado que existe na gente. Mas ali há outros elementos interessantes: o jornalista conhecido, a revista Esquire (que ganhou fama na década de 1960 pela qualidade e inovação nos textos, ainda que anos depois adotasse o estilo muito-mais-propaganda-que-conteúdo-editorial) e o homem que fez sucesso na TV ao criar um programa infantil diferente: ao invés de brincadeiras e competições, promovia discussões sobre temas pouco falados aos mais jovens, como divórcio, racismo, ciúmes. O programa Mister Rogers’ Neighborhood permaneceu no ar por 33 anos e teve mais de 900 episódios, de 1968 até 2001. Rogers já tinha 40 anos quando criou o programa infantil e o apresentou até os seus 72 anos. Ele faleceu em 2003, aos 74.

Capa da revista Esquire com matéria de Tom Junod sobre senhor Rogers.

Mas voltemos ao jornalista/jornalismo: escrever sobre Rogers não agradou Junod. Manter-se como jornalista investigativo garantia mais prestígio que entrevistar um senhor na faixa dos 70 anos que era celebridade na TV falando com crianças, usando fantoches e, às vezes, parecendo criança.

Mas nem sempre o jornalista faz a pauta que quer. A editora da revista avisou que fariam vários perfis de pessoas que poderiam ser tidas como “heróis” e que os jornalistas se dividiriam entre os personagens. Para Junod, restou o senhor Rogers. Mas por que? – quis saber. “Ele foi o único que aceitou ser entrevistado por você” – disse ela.

Pois é. Nem sempre a fonte tem o jornalista que quer.

Junod era um profissional premiado, mas igualmente conhecido por expor os “pecados” dos entrevistados. Rogers não se intimidou e fez dos encontros com o jornalista quase uma terapia para este.

Foram inúmeros momentos de observação da fonte: nos bastidores de gravação do programa, no metrô, na casa de Rogers. O cético Junod esperava pelas contradições do apresentador, por alguma falha de caráter, pelas misérias tão humanas. Irritou-se quando se viu respondendo perguntas (“Você teve algum amigo especial quando criança, Tom? Seu amigo especial tinha um nome, Tom?”), enquanto deveria estar fazendo-as.

Diante das dificuldades do jornalista, a editora chegou a pedir que ele escrevesse apenas 30 linhas e entregasse logo o texto. Mas Junod foi se envolvendo com Rogers, querendo entender se era possível alguém ser legal de verdade, em que momento o personagem se desmancharia após os 30 minutos de gravação diária.

O longo perfil de Rogers escrito por Junod teve como título “Can You Say … Hero?”, virou capa da Esquire e foi a base para o roteiro do filme A Beautiful Day.

Para um jornalista, o filme não é imperdível. O texto de Junod para a Esquire, sim.

O relato é montado como um quebra-cabeça, com partes que se encaixam e que, de repente, talvez pudessem mudar de lugar.

Por vezes é escrito como se falasse com uma criança – explicando coisas de modo muito simples. “Arquitetos são pessoas que criam grandes coisas a partir dos pequenos desenhos que desenham em pedaços de papel”. Ou “Um relógio é uma máquina que diz às pessoas que horas são”. Na verdade, são explicações complexas. Tal qual Rogers fazia na TV.

Por fim, o texto é literatura demais para ser jornalismo!

Como quando o jornalista narra o encontro com o senhor Rogers no vestiário do clube onde este nadava todas as manhãs. “Aqui está ele, de pé em um vestiário, com setenta anos de idade e tão branco quanto o coelhinho da Páscoa, coberto de geada onde quer que ele tenha cabelos, roído nas manchas cor de rosa onde sua pele seca ficou descamada, ligeiramente ferido no pescoço, ligeiramente curvado no ombro, ligeiramente afundado no peito, ligeiramente curvado nos quadris, ligeiramente curvado nos dedos dos pés … E, todavia, quando ele fala, é a sua voz, a famosa, a inconfundível, a televisiva, a voz vestida de suéter e tênis, a suave, a tranquilizadora, a curiosa e expositiva, a voz que soa adulta aos ouvidos das crianças e infantil aos ouvidos dos adultos”.

E como você, jornalista, falaria sobre um dia de gravação de um apresentador de TV num zoológico com uma gorila chamada Koko, que havia aprendido a língua de sinais?

Junod escreveu como literatura.

“Koko era muito maior que o senhor Rogers. Ela pesava 280 libras, e o senhor Rogers pesava 143. Koko pesava 280 libras porque ela é uma gorila, e o senhor Rogers pesava 143 libras porque ele pesava 143 libras desde que era o senhor Rogers, porque era uma vez, cerca de trinta e um anos atrás, o senhor Rogers subiu em uma balança, e a balança disse a ele que o senhor Rogers pesa 143 libras”.

Aqui, Junod usava um dia de gravação apenas como “gancho” para expor, na verdade, o que lhe intrigava mais: que Mister Rogers parecia metodicamente sempre igual (até no peso) desde que se converteu em um personagem de TV. Mas, por escrever como literatura ele não nos diz isso desta forma, mas daquela.

Mais do que ver o filme, leia o perfil. Ele é didático para se pensar: como montar o quebra-cabeça do texto, como começar, como concluir, como intercalar partes, como “apresentar” personagens, como contar cenas.

E nos lembra: ser um tanto literatura, sem abandonar a técnica jornalística, pode levar a um jornalismo melhor. Talvez seja isso que estejamos precisando.

Para ler a matéria de Tom Junod para Esquire, acesse:

https://www.esquire.com/entertainment/tv/a27134/can-you-say-hero-esq1198/