Havia a busca de domesticação e o estético. Mas também o político e o imprevisível.
Por Samária Andrade
Meses atrás tivemos uma experiência curiosa: fomos (a revista) procurados por leitores angustiados com declarações dadas por uma entrevistada em suas redes sociais. Não era nada que ela tivesse falado à revista, mas um post em suas páginas pessoais que deixava os leitores perplexos. Muitos tinham gostado da entrevistada em Revestrés e queriam compreender porque agora aquela pessoa lhes parecia diferente. Outros falaram: “eu bem havia percebido uma tensão em certos momentos na entrevista à vocês”. Outros ainda reclamaram: “Vocês a fizeram melhor. Ela não é aquela”- como se se sentissem enganados pelo que haviam lido antes em Revestrés.
Todas as alternativas são possíveis.
E para pensar sobre isso vamos levantar dois aspectos inter-relacionados. Primeiro: no encontro do jornalismo com o real, aquele sempre tenta domesticar este. Contido pela narrativa, espaço e tempo, o real torna-se passível de ser contado, sujeita-se a narrativa jornalística.
O segundo aspecto é que o personagem do jornalismo não é fake. Ele não é o personagem do filme de ficção. Ele não acaba quando acaba a sessão. Ele é o que há de mais real na narrativa jornalística. Ele continua. Ele, que foi assujeitado pela narrativa, levanta e anda. Ao contrário do que a gente pode pensar, ele não fica domesticado. Ele, no máximo, permite que se faça um retrato, tão possível quanto selvagem.
O personagem do jornalismo, humano como é, continua, depois da matéria publicada, em um processo incessante de reconfiguração. O que nós tentamos fazer com ele foi mais da ordem do estético, enquanto ele é da ordem do político. Para Rancière (1996) a gênese do político é o conflito. E o conflito é o que torna visível as diferenças do viver em comum. Se o humano é a reconfiguração em ato, o jornalismo só pode afirmá-lo, nunca aprisioná-lo.
O personagem do jornalismo é um eterno devir. Tentar domesticar esse personagem real é tentar desfazer o dissenso, e com isso, o político que há na realidade.
É bom que se saiba disso de partida. Pois a realidade e o personagem real vão sempre continuar a se reconfigurar (para ele mesmo, para o real, para o retrato que foi possível apreender no jornalismo), gostemos ou não, concordemos ou não, ignorando nossas páginas, nos desafiando a pensar o estético a partir do político e não o contrário.
Por isso ele nos coloca em risco. O risco do real – que questiona o jornalismo e o jornalista, mas não menos o próprio personagem e o leitor.
* RANCIÈRE, J. O desentendimento. Editora 34. 1996.