O cartunista Miguel Brieva [Sevilha, 1974], numa série de três cartoons, à maneira dos anúncios dos anos 1960, que publica no El Jueves, um semanário espanhol de humor gráfico e sátira política, elabora o que considera os três mitos de nosso tempo: 1] crescimento sem fim, 2] o capitalismo como único modelo possível e 3] um declínio moral auto induzido. É possível entender que, segundo Brieva, o que nos sobra como imaginário e, quiçá, como imaginação, é a violência de um progresso histórico e linear saído de um proto entusiasmo que vem desde a revolução industrial, como consequência catastrófica, através de sacerdotes do modelo único: os que defendem o marketing e as finanças como o que melhor resguarda a natureza humana para uma convivência social sem estranheza. Brieva diz:

Para que los dos primeros mitos sean asumibles por nosotros sus potenciales creyentes, es preciso interioriozar que somos muchos peores de lo que en realidad somos [ya saben, “el hombre es um lobo para el hombre]. Si tenemos que aceptar que este mundo es el mejor al que podemos aspirar, debemos tener la opinión más negativa y resignada posible de nosostros mismos.

Uma Cultura de Direita reduz tudo a um “mingau homogêneo”. Ela estaria em tudo o tempo todo e muito longe de um esgotamento. | Foto: Divulgação.

Não à toa, o filósofo e mitógrafo italiano, Furio Jesi [1941-1980] avançava sobre o que Károly Kerényi, filólogo romeno, dizia como uma recomendação: a de que não se atribua ao mito uma dimensão absoluta, como se fosse uma substância concreta, uma realidade plena. Furio lê o mito como uma não-utopia, o que para Schmitt Sorel, por exemplo, está também na “utopia” do sindicalismo burguês equiparando-se ao mito tecnicizado de Kerényi: uma composição de instituições imaginárias e uma deriva das relações humanas vistas na sua condição mais desejável para que possam ser controladas, ou seja, mais úteis às soluções políticas bem menos regozijantes.

Se Furio Jesi sentasse à esquerda, na primeira fila da peça Gente de bem, traria de volta a ideia do mito para o que entendia como uma cultura de direita: “uma cultura caracterizada [de boa ou má fé] pelo vazio”. São fins cinicamente políticos – entre a manutenção da ordem vigente e dos poderes dominantes.

Se Furio Jesi sentasse à esquerda, na primeira fila da peça Gente de bem, imediatamente traria de volta essa ideia do mito para o que entendia como uma cultura de direita: “uma cultura caracterizada [de boa ou má fé] pelo vazio”. Ele dedica um livro inteiro, publicado em 1979, Cultura de Direita [traduzido no Brasil por Davi Pessoa, Editora Ayiné], para discutir os fins cinicamente políticos – entre a manutenção da ordem vigente e dos poderes dominantes – dessa máquina mitológica que reduz tudo a um “mingau homogêneo” e que, segundo ele, está em tudo o tempo todo e muito longe de um esgotamento.

A peça, encenada pela Comparsaria Teatral, dirigida por Adriana Maia, parte de alguns textos de João Ximenes Braga [Rio de Janeiro, 1970] publicados no seu livro Necrochorume e Outros Contos [7Letras, 2021], e se compõe num intervalo de 7 pequenas histórias descompassadas: Urina, Café, Carne, Uísque, Esgoto, Asco e Soro. O jogo de cena tem uma pertinência severa entre atrizes e atores, porque mantém a cisma do quanto essa máquina é cada vez mais ameaçadora e, especialmente, destrutiva, porque penetra com força na superfície do sacrifício de massas inteiras. Furio Jesi lembra que “a possibilidade dessa destruição é exclusivamente política”. E aí, certamente, este “necrochorume” toca os conceitos de “necropolítica” e de “brutalismo”, do filósofo camaronês Achile Mbembe: grosso modo, ele entende que estamos numa “era dominada pelo pathos planetário da extração, da demolição e da depleção. […] Quando tudo o que é vivo é assolado por um processo de carbonização e a violência jurídica do poder “se reproduz nos atos de fraturação e fissuração”.

O mais interessante de toda a peça é quando percebe-se uma incorporação política dos textos – é a clara tomada de posição da companhia, como coletividade, em direção ao enfrentamento dessa mitologia cultural secular: a da direita ou à direita. | Foto: Divulgação.

Mesmo que os textos de João Ximenes Braga sejam um cadinho irregulares, há algo neles que se transforma nas encenações e esforço de atuação do elenco da peça. Há uma espécie de “apolitia” nos/nas personagens, essa indiferença com a política que, se ainda uma utopia, poderia engendrar algum projeto de comunidade da vida. E quando se lê a cena como um esforço, lê-se também como força, aquilo que é feito e imaginado com força, muita força, para uma composição de sentido a cada personagem que vem e aparece em cada texto. O que surge, no palco, é uma exigência e uma emergência na participação efetivamente política de atrizes e atores para lançar esses/essas personagens ao princípio seminal de uma cultura de direita, entre manipulação e tecnicização, que tem a ver com operações de fins muito bem definidos, quase planejados, indicando o avanço dessa cultura ao que, agora, instantaneamente, tomamos como extrema direita.

A peça convoca nossa atenção ao tanto que o fascismo pode cumprir para chegar ao poder por meios democráticos e com apoio democrático. Mas, também, numa conversa direta com o público e com Furio Jesi, sentado à esquerda, primeira fila, faz brotar alguma esperança solidária, para expandir pequenas e insistentes alegrias de viver.

O vazio, anunciado por seu mais raro espectador, Furio Jesi, sentado à esquerda, primeira fila, é o que também anuncia a produção do vazio a todos os lados. Daí que nos mínimos gestos, da impassibilidade à velocidade, os/as personagens se debatem entre apontar, designar, falar, dizer e – o que é o mais interessante de toda a peça quando percebe-se uma incorporação política dos textos, inclusive nos seus revezes –, é a clara tomada de posição da companhia, como coletividade, em direção ao enfrentamento dessa mitologia cultural secular: a da direita ou à direita. Esse enfrentamento comparece, por exemplo, quando há um aparente deboche com a linguagem organizada desse mito através de “palavras espiritualizadas” ou “de ordem”, escancarando num primeiro plano o covil social do qual essa linguagem se origina: frases feitas, locuções recorrentes, vocabulário limitado por opções de ignorância, pobreza cultural etc. E, depois, num plano justaposto, a confrontação desse modo ideológico do vazio: ideias sem palavras, ou, num contrário e, ao mesmo tempo, de palavras sem ideias.

E aí a peça, como jogo, nos apresenta a cultura de direita como uma “religião de morte”, os desastres do capitalismo liberal como religião, desde o pacto burocrático que ela estabelece com o objetivo de esvaziar a vida nos traços mínimos de alguma delicadeza cotidiana e, ainda, do quanto essa mitologia desmesurada e fascista é impositiva na defesa de um aniquilamento da Terra, como se a gente pudesse a qualquer momento ir viver em outro lugar. O fascismo, sabemos, é uma forma psíquica, uma peste psíquica. Por fim, a peça convoca nossa atenção ao tanto que o fascismo pode cumprir para chegar ao poder por meios democráticos e com apoio democrático, porque a democracia é cada vez mais meramente parlamentar, entre falta de ar e colapso generalizado do que ainda é conviver, como utopia comum. Mas, também, numa conversa direta com o público e com Furio Jesi, sentado à esquerda, primeira fila, faz brotar alguma esperança solidária, a que é rara e atenta, olho no olho, para expandir algumas pequenas e insistentes alegrias de viver.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou O lado esquerdo [Mórula/Cultura e Barbárie], Leminski: pensador selvagem [Mórula], A guerra da água [7Letras], Jeanne moreau e Xenofonte [Cultura e Barbárie], entre outros. Organizou Uma pausa na luta [Mórula] e coordenou as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés..