Ainda estou pra ver uma pessoa gostar de ser roubada. Quando isso acontece, a gente perde as estribeiras de vez, fica danado da vida. A vontade é, no íntimo, de esganar o larápio. Tirar o seu couro inteiro para ele aprender a não pegar no que é dos outros. Se quiser adquirir algo, que trabalhe duro e compre, igualzinho ao que fazemos os honestos e direitos. Duro é quando eles levam uma coisa de nossa grande estima, um objeto pelo qual temos apego imensurável. Aí, no caso, a raiva é ainda maior, daquelas de querer matar o infeliz. Que surrupiasse um bem de grande valor, até seria compreensível, mas logo aquilo que tem apenas valor sentimental para o seu dono, é bestial desumanidade.
Como todo mundo passa, mais cedo ou tarde, por tal situação vexatória, comigo não poderia ser diferente. Na época, residindo no bairro Aeroporto, os “amigos do alheio” resolveram levar, além do aparelho de som, também o meu disco preferido: Os Incríveis, uma coletânea dos maiores sucessos de uma banda de rock sensacional das décadas de 60 e 70. Sinceramente, os teria perdoado pelo furto do equipamento, jamais pela desconsideração em me privar de músicas que embalavam o melhor de meus sonhos, a exemplo de “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones” e “O milionário”, versões maravilhosas dos cancioneiros italiano e norte-americano. Não satisfeitos da afronta, deixaram-me a capa do elepê, tortura psicológica das piores, que sangra até hoje.
Basta ouvir uma daquelas músicas para o coração sair a galope, numa mistura paradoxal de alegria e tristeza. Foi o que aconteceu recentemente comigo ao assistir a Árido Movie, belíssimo filme do cineasta pernambucano Lírio Ferreira, que apresenta o dilema de um repórter pressionado pelos familiares a dar cabo do assassino de seu pai. Em uma das cenas, quem aparece dançando é Selton Melo, o extraordinário ator dessa nova geração de talentos. Quando dou por mim, percebo que a coreografia tem como trilha sonora “Czardas”, uma das mais bonitas músicas do disco, totalmente instrumental, com acordes fantásticos e inesquecíveis de guitarra. Na hora pensei, mesmo vibrando de alegria, em amaldiçoar aquele ladrão de uma figa. Que levasse tudo, exceto as músicas de que tanto gosto, sem falar do sadismo em me deixar a capa como dolorosa lembrança.
O jeito, meu caro, foi correr às lojas para reaver todas aquelas músicas, na vã e infrutífera tentativa de apaziguar esse meu eterno desassossego. Embora a cicatriz não tenha de todo sarado, a recuperação já é bastante visível. Nada comparável ao som produzido por esta banda paulista, som esse da melhor qualidade, que toca fundo na alma e sentidos da gente. Danado de suportar é essa sensação de ter sido lesado justamente no que mais apreciamos, sendo obrigados a conviver com ela para sempre. Pior ainda, não saber como se livrar da capa vazia. Enquanto isto, o melhor a fazer é ouvir as outras faixas da coletânea, agora reunidas em CD e remasterizadas. É apenas uma capa vazia, mas como dói.