Quero falar hoje sobre um homem que me impressionou mais que todos os outros, um velho militante comunista da melhor qualidade já nascido em solo brasileiro. Se duvidarem, um dos mais solidários e destemidos do mundo. Seu nome, verdadeira legenda na esquerda nacional, é Apolônio de Carvalho. Para tanto, preciso de completa atenção. Desliguem os televisores, paralisem os negócios e, acima de tudo, esqueçam os celulares. Afinal, trataremos não de um indivíduo qualquer, mas de uma pessoa que soube dignificar a espécie humana, por meio de um espetacular exemplo de vida e de uma corajosa luta política. Se uma definição lhe cabe bem é, sem dúvida, a de visionário, alguém que acredita ser capaz de transformar utopias em realidade, mesmo contrariando o senso comum e a indiferença geral.

Filho de uma modesta família de classe média sergipana, desde cedo aprendeu, como depois viria a confessar, que “para viver é preciso merecer viver”. Tal sentido existencial só foi encontrado, após largar o sonho de ser médico, na apaixonante carreira militar, que abraçou com o mesmo desvelo e determinação do pai e do irmão, ambos combatentes do exército brasileiro. Sua adesão ao projeto comunista aconteceu somente ao deixar a prisão, ele que havia participado do fracassado Levante de 35, período em que conheceu alguns militantes históricos do antigo “Partidão”, a exemplo de Olga Benário, mulher de Prestes, e Graciliano Ramos, autor de Vidas secas e Memórias do cárcere, importantes livros de nossa literatura.

Apolônio - Foto

 

Em 1936, junto com outros 17 companheiros de partido, Apolônio de Carvalho seguiu para combater na Guerra Civil Espanhola – engrossando as fileiras das Brigadas Internacionalistas -, defendendo a bandeira republicana das ameaças do general Franco. Sob o seu comando, numa tropa de artilharia, chegou a ter entre 300 e 400 homens, merecendo a confiança e o respeito de todos por sua coragem e espírito democrático. Infelizmente, as forças reacionárias levaram a melhor, com apoio de Hitler e Mussolini. Derrotado, mas não vencido, ele desembarca na França ocupada, participando ativamente da Resistência aos nazistas. Na liderança de um grupo de combatentes, foi o responsável pela libertação das cidades de Carmaux, Albi e Toulouse. Terminada a Segunda Guerra Mundial, recebeu do governo daquele país a mais alta condecoração: a Legião de Honra. Foi lá, em 1942, que conheceu o grande amor de sua vida, Renée France, militante comunista, com quem teve dois filhos – René e Raul.

De volta ao Brasil, Apolônio se depara com uma situação inusitada na história autoritária do país, a legalização do Partido Comunista. Sem mencionar ainda, fato que o deixou muito contente, a eleição de uma significativa bancada no Congresso Nacional, incluindo o senador mais votado (Luís Carlos Prestes) e deputados federais do porte de Gregório Bezerra, Carlos Maringhella, João Amazonas e Jorge Amado, que mais tarde se tornaria o maior nome de nossas letras. Como alegria de pobre dura pouco, segundo o ditado popular, o registro do PCB é cassado e seus dirigentes acabam perdendo o mandato. Na ditadura militar, vamos encontrá-lo pegando em arma novamente, desta vez como dirigente do PCBR, sendo preso e torturado. Em troca do embaixador alemão, é exilado na Argélia, retornando com a lei da Anistia, em 1979.

Fui conhecê-lo na década de 80, já como um dos dirigentes nacionais do PT, quando veio a Teresina participar de encontro com a militância local do partido. À noite, livre dos compromissos políticos, fez questão de comparecer aos folguedos juninos da Universidade Federal do Piauí, varando a madrugada em conversa amistosa e marcada pelo humor. Nem parecia haver passado por tantas e boas. Estava feliz e alimentava ainda grandes esperanças, como a fé inabalável na construção de um Brasil socialista, desde que, frisava sempre, com liberdade e democracia. Na despedida, refletia comigo que, diante daquele homem capaz de preservar a ternura de uma criança, era possível continuar acreditando em alguma coisa.  Infelizmente, a indesejada das gentes o levou em 2005, aos 93 anos, vítima de insuficiência respiratória, deixando um livro autobiográfico – Vale a pena sonhar -, transformado em documentário homônimo de grande sucesso, no qual o velho comunista sentenciava: “Quem passa pela vida e não tem nenhum horizonte definido, nenhum ideal que possa e queira lutar, está sujeito à mediocridade”.  Mais atual impossível. Apolônio de Carvalho, presente!