Wellington Soares

Coisas e outras

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Deliciosos sucos

IMG_5966-2Quando criança, minha obrigação semanal era ir à novena com dona Mundica, ali na Vila Operária, zona norte de Teresina. Toda terça-feira, se a memória não me trai, estava eu lá, cercado de santos e anjos, aprendendo que melhor do que os pecados cometidos é a sensação de leveza do perdão alcançado. Em troca, exigia apenas umas moedas para comprar picolé e alfinim, condição aceita por mamãe de bom grado, mas só atendida após a celebração religiosa. Com o espírito confortado, retornava feliz para casa, saboreando cada um daqueles momentos com incontido prazer. Deitado na rede pensava, mesmo ainda desconhecendo Bandeira, que a noite podia descer, a noite com os seus sortilégios.

Agora, já adulto e por vontade própria, troquei as novenas de outrora pelos refrescos deliciosos do mestre Abrahão, situado nas proximidades do antigo Instituto de Educação. Quase toda semana apareço lá, como um montão de gente também, para assinar o ponto: tomar um refresco – que de tão espesso parece mais um suco – e comer um pastelzinho caseiro. Dos sabores ofertados, prefiro os de cajá e bacuri, sem igual e que nos levam aos céus. O de abacate é bom nem falar de tão gostoso, covardia das grandes, tomando aos poucos e lambendo os beiços até o fim. Para quem está gripado, ou precisando de um reforço no estoque de vitamina C, a casa prepara um suco de laranja no capricho, adocicado com mel de abelha italiana. Na hora do prejuízo, depois de ter enchido a pança, vem o melhor de tudo: um tantinho de nada cobrado pelo delicioso lanche, com direito a troco e agradecimentos sinceros: “muito obrigado” e “volte sempre”.

E não é que volto mesmo! Na primeira folga dos trabalhos, estou lá novamente, esperando a vez de ser atendido, não só para saborear os refrescos, mas, sobretudo, ouvir as palavras sábias do mestre da Rui Barbosa com Manuel Domingos. Com a invejável experiência de vida que tem, ele nos serve gratuitamente, apesar da pouca escolaridade, lições importantes de humildade, dedicação e amor ao próximo. Através de cartazes afixados nas paredes do comércio, Abrahão da Silva Gama – o popular ASIGA -, este maranhense de São João dos Patos radicado em Teresina há mais de cinquenta anos, planta nas pessoas mensagens perturbadoras e educativas, difíceis de esquecer pelo humor sarcástico e engraçado que destilam: “Prove que é orelhudo, preferindo um refrigerante a um suco”. Ou, então, aos que têm mania de consumir sem querer pagar: “Pagar antes está na moda e virou samba! Siga o ritmo e receba os nossos agradecimentos”.

IMG_5951-2O mais impressionante é que os preços e a qualidade dos sucos permanecem, ao longo dos anos, quase sempre os mesmos, um tantinho de nada e uma gostosura que só provando. Com ou sem crise econômica, a clientela festeja e continua fiel. Todos entram e saem dali com a barriga contente e o bolso satisfeito. Aliás, um ambiente bonito de se ver e estar, com as mais distintas classes harmonizadas pela vontade de beber e comer bem, instante sublime repleto de mistério e primitividade. A imagem comovente de homens e mulheres reunidos em torno do sagrado alimento e de reflexões existenciais. Sempre que converso com seu Abrahão, a quem chamo respeitosamente de mestre, o vejo como um daqueles cidadãos imprescindíveis celebrado em versos por Bertold Brecht. Em 2013, ele se tornou por direito e merecimento, numa iniciativa louvável do deputado João de Deus (PT), cidadão piauiense. Quando sua figura me vem à lembrança, é sinal que preciso dar uma passada lá, durante a semana, a fim de saborear os deliciosos sucos.

Rod Stewart

Rod StewartFoi difícil pegar no sono domingo retrasado, com a Globo transmitindo os shows do Rock in Rio 2015, particularmente o de Rod Stewart, cantor britânico de voz rouca por quem sou fã de carteirinha. No palco, ninguém se compara a ele em termos de carisma e empolgação, levando o público ao delírio com seus grandes sucessos: “It’s a heartache”, “Tonight’s the night”, “I do’nt wanna talk about it”, “You’re in my heart”, “The first cut is the deepest”, “Maggie May”   e “Forever young”, música que teve o maior coro da noite. Como dormir quando se está inundado de alegria? Alegria essa não só por estar vivo e curtindo espetáculo tão bonito, como por relembrar o show que ele fizera em 1985, na primeira edição do evento, eu presente na Cidade do Rock, no bairro de Jacarepaquá, entoando suas belas canções e doido para conseguir uma das bolas autografadas pelo ídolo. Deitado agora em minha rede, e com o Split ligado pra espantar o calor, esses momentos provocavam um verdadeiro estado de graça em mim, como se o tempo não houvesse passado.

Há exatos 30 anos, resolvi embarcar num amarelão da Itapemirim, acompanhado do amigo João Fonteles, para conferir de perto tamanha doideira de festival inspirado no mitológico Woodstock. Depois de 48 horas mastigando sonhos, desci na “Cidade Maravilhosa” feliz como nunca, o Rio acolhendo de braços abertos todas as tribos, tanto as brasileiras como as de outros países, da América Latina sobretudo.  Foram dez dias de muita zueira, no período de 11 a 20 de janeiro, reunindo 1,5 milhão de roqueiros, todos entusiasmados pela chance de soltar a voz junto com seus ídolos nacionais e estrangeiros (cantores e bandas), indiferentes a chuvas e lamas que castigavam o espaço dos shows. Foi ali que constatei, no meio daquela galera, o sentido real das palavras paz, amor e rock’n’roll. Descobri também que esse gênero é igualzinho à paixão, pode até demorar a correr pelas veias da gente, mas ao bater no coração o efeito é eterno.

Por falta de grana, infelizmente não pude ir a todos os shows, mas os que assisti foram inesquecíveis, guardados ainda hoje na memória em cantinho especial. Costumo dizer que o Rock in Rio, em 1985, fez minha cabeça para sempre. As guitarras estridentes e as performances dos artistas me levaram a encarar o rock de outra maneira, atualmente um dos pratos preferidos do meu cardápio musical, a começar pelos desbravadores do estilo: Chuck Berry, Little Richard, Jerry Lee Lewis e Elvis Presley. Entre os shows vistos, difícil esquecer os apresentados pelo Scorpions, Yes, Ozzy Osbourne, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Alceu Valença e, como não poderia deixar de ser, o do sensacional Rod Stewart, coberto por uma bandeira nossa e atirando bolas na plateia. Os fãs quase enlouquecemos quando ele, em sotaque de gringo, expressou seu amor ao Brasil. 

E pensar que já se foram 30 anos de lá para cá. O Brasil não é mais o mesmo, embora viva uma situação muito estranha no momento, uma antítese daquela época. Em 1885, festejávamos nas ruas o fim da ditadura militar e a eleição de Tancredo Neves pela via indireta, daí o Rock in Rio surgir para espantar de vez o fantasma da opressão. Infelizmente, não é o que presenciamos hoje. Em plena democracia, com presidente eleito pelo voto, vemos as elites tentando virar a mesa, colocando em risco a estabilidade política alcançada com tanto sangue pelos brasileiros. Alguns imbecis pedindo, inclusive, a volta dos milicos ao poder. Quem assistiu atentamente ao show de Rod Stewart no último dia 20 deste mês, in loco ou pela televisão, deve ter observado que ele trocou o “Brasil, te amo”, dito na primeira edição, por uma expressão que sintetiza, nos dias atuais, o anseio dos verdadeiros amantes da paz, a começar pelo Papa Francisco – “Cuba libre”. 

Vinicius por inteiro

Vinicius

Você pode não acreditar, tudo bem, mas conversei com o Vinicius de Moraes esta semana. Em minha sesta do meio-dia, o encontrava tomando umas doses de uísque no Garota de Ipanema, no Rio. Com humor e a sinceridade de sempre, ele pintou um autorretrato de si mesmo, através do qual passei a conhecê-lo melhor. Além, é claro, de admirá-lo ainda mais. Sonho ou delírio meu, pouco importa. Interessa mesmo é conhecer o “Poeta da Paixão” na intimidade, sem os holofotes da fama que tolhiam sua liberdade.

Por que Vinicius?

– O Quo Vadis, saído em 13, ano em que nasci.

Vem de onde o sobrenome Moraes?

– De Pernambuco, Alagoas e Bahia (que guardo em mim).

Local de nascimento?

– Sou carioca da Gávea, bairro amado, de onde nunca deveria ter saído.

Altura?

– Um metro e setenta, meão, pois.

Colarinho?

– Trinta e nove e o pé quarenta.

Peso?

– Uns bons setenta e três (precisam ser reduzidos…).

Estado civil?

– Fui, sou e serei casado.

Quantos casamentos ao todo?

– Nove.

Lembra do nome de todas elas?

– Beatriz, Regina, Lila, Maria Lúcia, Nelita, Cristina, Gesse, Marta e Gilda.

Avaliação como marido?

– Apesar do que se diz, não me acho tão mau marido.

Filhos?

– Cinco, quatro mulheres e um homem.

Profissão?

– Dizem-me poeta; diplomata eu o sou, e por concurso.

Mais alguma outra?

– Jornalista por prazer, nisso tenho um grande orgulho. Em breve serei cineasta (Ativo).

Religião?

– Sou materialista.

Curso superior?

– Formei-me em Direito, mas sem nunca ter feito prática.

Seria o quê, caso voltasse atrás?

– Gostaria de ser médico, pois sou um médico nato.

E a infância?

– Pobre mas linda, tão linda que mesmo longe continua em mim ainda.

Prefere vitrola ou rádio?

– Vitrola.

Automóvel ou trem?

– Automóvel.

Trem ou navio?

– Trem.

Navio ou avião?

– Navio.

Frutas prediletas?

– Caju, manga e abacaxi.

Quem o levou à poesia?

– Foi com meu pai, Clodoaldo de Moraes, que aprendi a fazer versos.

Chegou a furtar algum poema dele?

– Sim, para dar à namorada.

Com que idade publicou seu primeiro livro?

– Tinha dezenove anos quando lancei O Caminho para a distância.

De qual gosta mais?

– Meu preferido é Poemas, sonetos e baladas.

Toca algum instrumento?

– Violão, de ouvido.

Gênero musical?

– Faço sambas de bossa.

Luta marcial?

– Garoto, lutei jiu-jitsu razoavelmente.

Outra prática esportiva?

– No tiro, sobretudo, em carabina, sou quase perfeito.

Coisas de que mais detesta?

– Viagens, gente fiteira, fascistas, racistas, homem avarento ou grosseiro com mulher.

E das que mais gosta?

– Mulher, mulher e mulher.

Só?

– Sem falar de meus filhos e meus amigos.

Lugar bom para se viver?

– Moro em Paris, mas não há nada como o Rio para me fazer feliz.

Bebida preferida?

– Uísque, com pouca água e muito gelo.

E de dançar?

– Gosto muito também, daí me chamarem boêmio.

Como gostaria de morrer?

– De repente, não mais que de repente, e se possível de morte natural.

O que pediria caso lhe fosse dado o direito de viver outra vez?

– O pau um pouquinho maior.

Um gosto de beijo na boca

para Clarice Lispector

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Tive um namorado a quem amei muito. Um dia, porém, ele me causou uma grande mágoa. Tudo começou quando lhe perguntei se já havia beijado outra garota antes, o que ele respondeu afirmativamente.

Ele contou que seu primeiro beijo acontecera durante uma excursão, quando, sentindo uma enorme sede, encostou seus lábios sedentos a um orifício de onde jorrava água. Ao abrir os olhos, ainda sob o impacto da vida renascendo, percebeu que o filete de água deslizava através da boca gélida da estátua de uma mulher nua.

No momento, adolescente que saboreia pela primeira vez o gosto do amor, bem como corroída por umas pontadas doloridas de ciúme, não pude deixar de me sentir traída e, sem maiores explicações, resolvi acabar ali o meu primeiro namoro, com lágrimas deslizando pelo rosto ingenuamente magoado.

Hoje, mulher já madura e tendo vivido várias relações amorosas, percebo o quanto fui boba. Como pode alguém, afinal, ser traída por uma estátua? Naquele tempo, infelizmente, só vi a traição, incapaz de reconhecer a sinceridade da confissão e a importância do beijo no amadurecimento daquele jovem.

Se o tempo pudesse retroceder, pediria a ele que beijasse meus lábios com a mesma sofreguidão que beijara a boca da estátua, pois, ao longo da vida, nenhum outro homem se doou a mim com a mesma sede.

Címbalos, lutas e olhares

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Nada mais recomendável que abrir este Blog falando de um velho e querido amigo: Emerson Araújo, professor e poeta da melhor qualidade. Natural de Tuntum, interior do Maranhão, onde voltou a residir novamente, ele se formou em Letras na Universidade Federal do Piauí e atuou no magistério de Teresina por anos, lecionando literatura em várias escolas de nossa capital.

Na Federal, fizemos parte da mesma gestão do Diretório Central dos Estudantes (DCE), chapa Espinho, e travamos lutas memoráveis em defesa da melhoria do ensino superior e contra a ditadura militar. Há poucos dias, Emerson voltou à Verde Cap para lançar seu mais novo livro de poesias: Címbalos, lutas e olhares – obra patrocinada pela antiga Fundação Cultural do Piauí (Fundac), através do Sistema de Incentivo Estadual da Cultura (Siec), e com selo da Editora Quimera.

O livro é dedicado ao pai já falecido, Hiran Silva, e conta com a bela apresentação de Assunção Sousa, professora de literatura da Uespi e Ufpi. Após tantos anos sem publicar, o poeta retorna mais amadurecido e zeloso no manejo das palavras, combinando com maestria conteúdo e forma, de tal maneira a sensibilizar o leitor com os seus textos.

Bom tê-lo de volta em livro outra vez, o Emerson Araújo, sacudindo nossas emoções e pondo abaixo algumas certezas. Saravá, poeta!

 

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O tempo parece ter feito bem ao poeta, igualzinho a vinho, pois cada poema lido deixa um gostinho de prazer e leveza na gente. NOVA POÉTICA, em versos metalinguísticos, é um ótimo exemplo disso: “Juntar a palavra medida / Num cálice de diversas linguagens // Sorver em goles pausados / Todas as letras / Todos os sons // Só depois burilar / A palavra rendida na temática / E ofertar ao ávido leitor / Uma fruta lambida.”

Um tema presente nas páginas do livro, abordado por todo grande poeta, é o do lirismo amoroso, mas desprovido, como deve ser, da carga de pieguice e sentimentalidades que infestam a poética nacional. Em Emerson Araújo, o amor brota natural e com delicadeza, sem assustar nem provocar desconfiança na musa inspiradora, como ilustra O NOME DELA:

A palavra que cultivo neste início de verão
Não traz novidades e nem espumas
Há um sol querendo vencer matas secas
Sinais de pés pela estrada
Em lençóis perfumados.

A cantiga de amigo não é minha
Não há vozes profundas nela
Apenas uma mocinha acenando
E um olhar de devorador de estrelas
Pulsação e vertigem no umbral.

Somente o beijo que te dou
Faz poeira e sedição
Há um sol vencido no fim de tarde
Ovelhas no pasto, mulher cortando arroz
O sertão imaginado no nome dela.

Bonito ver o poeta homenagear nos seus escritos, sem cair em louvores estéreis, figuras que o marcaram profundamente, tanto do ponto de vista artístico (Torquato, Borges, Neruda, Rimbaud, Niemeyer) quanto político (Mandela, Marighella) e religioso (Jesus). Ao escritor argentino, ele dedicou um quinteto dos mais bonitos: “Nesse meu tempo de maio / Não sou de mim / Labiríntico / Vou manipulando dédalos / Até o fim”.

Num tributo a Tuntum, Emerson Araújo expressa, em linhas telúricas, sentimentos dolorosos de saudade e crítica: “O poeta canônico volta e meia / Canta a saudade da sua terra / Em versos de extensas frases / Mas o poeta anatômico / Não tem disso não / Ele nem canta / Rabisca palavras ao léu / Para dizer apenas / Que a sua terra é / Um tristecéu.”