Quem gosta de boas notícias na entrada de ano novo, esta não poderia ser mais alvissareira: Macunaíma, de Mário de Andrade, texto fundamental da ficção nacional, entrou em domínio público no início deste mês. Qual o significado de tal fato, cara pálida, deve alguém indagar? Simples, o livro poderá ser copiado, xerocopiado, reproduzido e adaptado livremente por qualquer pessoa. E o que é melhor, sem restrições ou necessidade de autorização e pagamento de direitos autorais. Isso ocorre porque, no Brasil, as obras ficam livres no 1º dia do ano seguinte em que se completam 70 anos da morte do autor – Mário faleceu em fevereiro de 1945. O restante de sua obra está liberado também, incluindo os vários livros de poesia, romance, carta e ensaio, merecendo destaque ainda Pauliceia desvairada e Amar, verbo intransitivo, textos consagrados de nosso modernismo.
Um dos líderes do movimento que revolucionou a cultura brasileira em 1922, através da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, Mário de Andrade era um escritor de rara sensibilidade e um homem apaixonado pelo seu país. O legado da obra produzida é imenso, abrangendo da literatura à música, passando pela filologia e desaguando no estudo das tradições populares. Mas de todos os livros lançados, são as peripécias de Macunaíma que conquistam o imaginário dos leitores. Não à toa, pois as histórias do lendário “herói sem nenhum caráter” nos deixam bastante comovidos. Ele é filho de índios, mas nasce preto retinto e depois vira branco, síntese de nossa miscigenação. Desde cedo faz coisas de sarapantar, a começar passando mais de seis anos sem falar, decepando cabeças de saúvas, bolinando as cunhãs, cuspindo na cara dos marmanjos, mijando na mãe, dando pra ganhar dinheiro e, como se não bastasse, “brincando” com as cunhadas. Para enganar os outros, desde novo criou um bordão que o acompanharia ao longo da vida: “Ai! que preguiça!”.
Após a morte da mãe, que ele mesmo provocara, Macunaíma parte com os irmãos Maanape e Jiquê para conhecer o mundo. Nessas andanças, conhece Ci, guerreira amazona com quem casa, tornando-se Imperador do Mato Virgem, de quem ganha a muiraquitã, pedra mágica que proporciona fortuna. Ao perder o amuleto, que cai nas mãos do mascate peruano Venceslau Pietro Pietra, nosso herói parte para São Paulo a fim de recuperá-la. Para tanto, recorre a várias artimanhas até derrotar o Gigante Piaimã, comedor de gente – macumba, disfarce de francesa, engolir sapos -, resgatando o talismã recebido da saudosa Ci, falecida logo depois da perda do filho. Missão cumprida, Macunaíma volta à Amazônia, deparando-se com o fim do seu povo, a tribo Tapanhumas. Por desavenças com os irmãos, provoca a morte deles, ficando sozinho no mundo.
Num dia de calor insuportável, ele vai tomar banho na lagoa quando, seduzido pela Uiara, que se faz passar por uma cunhã muito bonitinha e fogosa, tem a perna e outras partes do corpo devoradas, numa vingança torpe da Vei, a sol, pelo simples fato de o nosso herói não ter casado com uma de suas filhas. Para completar, ainda perde a muiraquitã novamente. Sentindo-se muito sozinho e triste, bem como sem ter ninguém com quem “brincar”, Macunaíma parte para o céu e, chegando lá, depois de perambular de porta em porta, é transformado por um amigo na constelação Ursa Maior: “É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu”.