Em dias de chuva, como esses ultimamente, bate uma malemolência gostosa, daquelas de não querer sair de casa, corpo estirado numa boa rede, coberto por lençol quentinho, esquecido do mundo lá fora, ouvindo a bela sinfonia das águas se esparramando pelo chão, o cheiro da terra exalando vida que desabrocha das árvores, um friozinho espantando pra longe o calorzão de Teresina, nem que por um final de semana apenas, fazendo a gente se sentir do Sul, das bandas de Sampa ou Curitiba, tomando uma cachaça Lira pra aquecer o peito, embora prefira, eu que não bebo, um chocolate quentinho com bolo de rosca, feito por dona Raimunda, minha mãe de 92 anos, que faz bolo delicioso como ninguém, e botando pra escutar, feliz da vida, o novo CD de Chico César, Estado de Poesia, esse trovador paraibano que toca fundo, com suas músicas lindíssimas, nossa alma sedenta de amores, tanto as de hoje quanto as de outrora, sentimento mágico que, ao surgir ou desaparecer, deixa cicatrizes indeléveis em nossa pele, a gente não sendo, nunca mais, mesmo querendo, a pessoa segura que fomos um dia, sem falar da grande emoção ao constatar que ele, o autor de Mama África, incluiu nesse biscoito fino, assunte bem, uma letra estupenda de nosso “Anjo torto”, a instigante Quero Viver, na qual Torquato Neto expressa, de forma cristalina e direta, que devemos “cuidar da vida / já que a morte está parida”, repetindo outra vez, a fim de não esquecermos, que “a morte não é vingança / beija e balança”, e fecha o repertório, como artista engajado nas lutas de sua época, criticando duramente os Reis do Agronegócio, “produtores de alimento com veneno”, latifundiários desalmados, obcecados em algarismar os amanhãs, que desmatam e poluem o meio ambiente todo santo dia, sem que nada, absolutamente nada, proíba sua ganância mórbida, tampouco sejam punidos pelo crime praticado, dentro e fora do Brasil, contra milhões de pessoas indefesas, tudo isso digerido e assimilado, no aconchego da rede, enquanto relia, maravilhado, depois de vários anos, um romance dos mais arretados, OEncontro Marcado, saído da mão talentosa de Fernando Sabino, autor mineiro que encanta seus leitores, hoje mais do que nunca, tanto pelos temas abordados como pela escrita envolvente, de fácil compreensão, a nos restituir o sossego, embora duvide disso, somente ao concluirmos a leitura da narrativa, livro de quase 400 páginas, edição Record, história dramática de uma geração de jovens, numa Belo Horizonte ainda provinciana, em busca de respostas para inquietações existenciais típicas da idade, dificilmente respondidas até na fase adulta, com a vivência dos anos, tampouco encontradas em livros e bebedeiras homéricas, até porque, basta lembrar outro mineiro dos bons, um tal de Guimarães Rosa, sábio por natureza, que dizia, e não pedia segredo a ninguém, que “viver é negócio muito perigoso… Por que aprender a viver é que é o viver… Travessia perigosa, mas é a da vida”, pena Eduardo Marciano (alter ego de Sabino) e seus amigos Mauro (Hélio Pellegrino) e Hugo (Otto Lara Resende) tenham sofrido bastante para compreender tirada filosófica tão didática e atual, essa travessia penosa que tento superar curtindo, agasalhado numa rede macia, esse chuvaceiro que cai sobre a nossa querida Chapada do Corisco. Nonada!
Wellington Soares
Coisas e outras