Wellington Soares
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Contos avulsos

(I)

Agora é esperar, depois do que fiz, a polícia chegar. Eu mesma liguei, com voz calma e serena. Nem parecia que tinha cometido crime tão bárbaro. Disse apenas: venham rápido, uma tragédia ocorreu em casa. Dei o endereço e desliguei o telefone. Enquanto isto, sentei na cadeira de balanço e refleti sobre o que acabara de fazer. Que tivesse amante, fraqueza de homem. Bebesse fora da conta, tolerável. Ciumento ao extremo, talvez amor. Que fosse grosseiro, dava pra suportar. Mas ao bater em mim, de cinturão, Clegivaldo assinou a própria sentença de morte. Uma pena! Não foi por falta de aviso. Cinco anos de convivência jogados no lixo. Foi ele dormir pra faca acariciar seu belo pescoço, sem dó nem piedade. Na cadeia, ainda hoje sinto o gosto de sangue, abundante e quentinho.

 

(II)

A mãe dele, seu delegado, está desesperada. Aliás todos da família, irmãos e avós, sem falar de mim, o pai. O menino saiu de casa pela manhã e, até agora, não retornou. Já são quatro da tarde, e nada ainda. Diz a empregada que foi ao centro encontrar uns amigos. Trabalho escolar, de história, sobre nossa arte sacra. Valendo nota. Num tal de Museu do Piauí, que nem eu sei onde fica, imagine um garoto criado dentro de condomínio. Mal sabe, o coitadinho, os caminhos do colégio e dos shoppings, todos na zona Leste. E inacreditável, seu delegado, pegando ônibus pela primeira vez na vida. Vê se pode! Indagados, seus colegas afirmam que Serginho não deu a cara na pesquisa. Que foi parar no Porto Alegre, tendo sido convidado pra jogar pelos guris do bairro. Ele não só aceitou, como disse querer ficar por lá, com os novos amiguinhos. Mas desde quando meu filho gosta de bola?

 

(III)

Que Larissa me traía, eu sabia há bastante tempo. Não é de hoje, após casados, como alguns pensam. Suas aprontações vêm desde o começo de nosso namoro. Sofri muito no início, mas relevei depois. Aprendi que o amor supera tudo, inclusive chifre. Ainda mais quando a mulher, insaciável, joga limpo com a gente. Era pegar ou largar. Sem pestanejar, preferi conferir de perto. E não me arrependo até a presente data. Por um simples e único motivo: Larissa me faz um homem feliz e mais generoso. Aos que procuram interferir, mando cuidarem da própria vida, magote de intrometidos de uma figa. Mal governam a própria cozinha, mas querem governar a casa alheia. Daí serem, no íntimo, pessoas amarguradas, tristíssimas. Talvez morram de inveja, queira Deus, ao saber que ela guarda o melhor de si para mim.

 

(IV)

Nunca sofri tanto como naquele dia. Chorava que soluçava, as lágrimas escorrendo igual chuva. Tudo por culpa do vizinho, um desgraçado sem coração. E sem adolescência também. Pegou a bola, que eu ganhara do meu pai, e cortou em pedacinhos. Impossível de remendar. Minha primeira bola de couro. Perversidade das grandes. Só porque um chute quebrou o vidro de sua janela. Tivesse reclamado, meu velho pagaria na hora. Mas a vingança não tardou muito, não. Além de secar os pneus do carro, fiz um risco, de ponta a ponta, na lateral do motorista. Toda vez que fosse abrir a porta, lembrasse que com guri não se mexe nunca. A confusão foi enorme, ele doido pra bater em mim, e papai saindo em minha defesa. Mas como encarar um faixa preta e professor de judô? O jeito foi engolir a raiva e arcar com o prejuízo. O melhor veio depois, sem que o dito cujo soubesse: comecei a namorar sua linda filha.

Nem tudo o que se vive se completa logo (ou: o que você só é capaz de entender um pouco depois)

Por Samária Andrade

No lançamento da edição 38 de Revestrés as três atrações eram de negros: James Brito, Afronto e Coisa de Nêgo. Ou melhor: eram afrodescendentes. Havia pouco tínhamos ouvido do professor Francis Musa Boakari (entrevistado da Revestrés 38): “eu não uso a palavra que começa com ‘n’, eu uso afrodescendente, porque antes de ser conhecido como ‘n’ eu era Mendê”. Era uma posição política, uma recusa a ser chamado por um nome dado por europeus para unificá-los: “nomear é tomar posse”.

Estavam lá James Brito, sorriso quase tímido, uma boa dose de humor para aguentar o tranco, e quando você acha que o cara é inofensivo, ele dispara: “Periferia não é só horror: periferia tem sabedoria, tem criança, tem mulher, tem verdade e tem vovô.”

André Gonçalves (editor) chama Washington Gabriel, o W.G., e explica: “o som tá meio improvisado”. Recebe de resposta mais um sorriso e a afirmativa: “Improvisado? Disso a gente entende”. Não era amadorismo, era a sabedoria de quem sabe inventar e reinventar. De quem sabe se reinventar. Junto com Gilsão (que está na seção 10 Dicas): -“tem que ter protesto” – e com Laura – que levava a filha para lhe ver soltar o cabelo e tomar a sala – formam o Afronto e cantam: “Afronto representa a força que não quebra”. Eles têm o poder. Começaram meio desconfiados, terminaram donos do pedaço.

No final, Coisa de Nêgo, o bloco afro que é força e alegria, bate um tambor que está dentro da gente. “A minha voz, uso pra dizer o que se cala” – imagino que diria Elza Soares, caso os visse.

Entre uma música e outra, Andreia Marreiro, professora, pôs a sala em suspensão ao convocar: “brancos, vocês têm que reconhecer seus privilégios!”. Ana Carolina Magalhães Fortes, advogada (participa da entrevista com Francis), diz o quanto os ativismos lhe ensinam todos os dias e que tem até medo de retomar a entrevista que deu à Revestrés em 2015 e avaliar o quanto aquelas falas ainda lhe representam ou não. Assunção Aguiar, ativista, do Memorial Esperança Garcia (onde estávamos) e também do Coisa de Nêgo, sem precisar explicar nada, ensina o que é acolher. Rogério Newton, cronista dos bons, faz críticas à imprensa, que também devem ser refletidas por Revestrés.

Por fim, Welligton Soares (editor) olha pra mim e pergunta: “foi bom?”. Eu não lembro se respondi. Eu não sei se já sabia a resposta. Vai agora, Well: “Foi lindo!”.

Eu pensava que eu tinha ido ao lançamento da Revestrés 38. Foi muito mais. Tornou-se um ato. Um ato para maturar sobre racismo, desigualdades, preconceitos, diferenças, pequenezas. E também sobre afeto, companhia, empatia, afinidades, grandezas.

Para ilustrar tudo isso, peguei de empréstimo a imagem produzida por Tássia Araújo, produtora audiovisual, fonte na matéria sobre cinema no Piauí, porque acho que pode ser a imagem que melhor representa essa noite, esses dias.

Praia de nudismo

 

No congresso da União Nacional dos Estudantes de 1983, em Cabo Frio, cidade praieira do Rio de Janeiro, ocorreu um fato que marcou indelevelmente o evento. Não estou me referindo às discussões acaloradas protagonizadas pelas várias correntes políticas do movimento estudantil, mas a um simples cartaz colado nas portas dos alojamentos da estudantada ali presente. Um cartaz escrito à mão e prenhe de sentidos, ainda mais por se tratar de um convite inusitado, pelo menos para a turma do Piauí: um banho naturista numa das lindas praias da cidade. O alvoroço provocado foi enorme e imediato, com as delegações dos estados se reunindo a fim de debater o assunto. Afinal, o tema do nudismo, além de fugir da pauta da UNE, mexia com uma série de valores. Depois de pesar os prós e os contras, apenas uns cinco a sete piauienses, todos homens, resolvemos conferir a parada.

E o prazer não podia ter sido maior diante de tanta beleza, nascendo em cada um a sensação de termos chegado, enfim, ao almejado paraíso, de onde jamais deveríamos ter sido expulsos. Lá experimentamos o verdadeiro significado da palavra liberdade, já livres do cárcere das roupas e acariciados pela brisa. Nada mais emocionante que entrar pelado no mar, feito menino travesso, e deixar que a água salgada limpe as impurezas recônditas de nosso corpo. Vontade de não sair mais dali, virar peixe de vez e mergulhar sem destino. Mas deslumbramento mesmo, colírio para os olhos, foi presenciar a sensualidade da mulher brasileira, espontânea em mostrar “suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.”

Vexame pra valer, daqueles de corar o rosto, passamos quando as universitárias mineiras, talvez ignorando nossa secura, nos convidaram para uma partida de frescobol, o jogo com raquetes na praia. Com os “mastros” levantados e desfraldando bandeiras vermelhas, a saída foi recusar o convite alegando estarmos de partida por mares nunca dantes navegados. Logo, sem tempo suficiente para a prática esportiva na qual se “cultiva a amizade e o comprometimento nas jogadas”, segundo conceito da Federação Gaúcha de Frescobol. Se, para elas, o naturismo era algo normal, sem pudor em mostrar as partes íntimas, a coisa soava ainda estranha para nós, sobretudo, em momento de carência tão grande como aquele. Ao contrário do que imaginávamos, as pessoas se comportavam com espontaneidade, do jeito que vieram ao mundo, puras como crianças, isentas de maldade e outras intenções.

Hoje existem, no mundo e no Brasil, várias praias com o nudismo liberado, gerando emprego e renda a milhares de pessoas através do turismo. Em novembro de 2014, a título de ilustração, a Prefeitura do Rio sancionou lei oficializando a Praia do Abricó, na zona Oeste, como área de naturismo, dando amparo legal a sua prática de 20 anos. Caso alguém pense que isso está restrito somente ao Sudeste, engana-se redondamente, uma vez que o nudismo toma conta praticamente de todas as regiões do país. E precisa saber que tal prática não é modismo dos dias atuais, mas vem de longas datas, como é o caso da Praia de Tambaba, no interior da Paraíba, a primeira do Nordeste a ser oficializada ainda no distante ano de 1991, sendo também uma das poucas a proibir a entrada de homens solteiros. Daí eu indagar aos meus botões, quando tomado pelas lembranças de Cabo Frio, por que não separarmos um pedaço de nosso belo litoral piauiense ao naturismo. Sem dúvida, os amantes dessa prática e da liberdade iriam adorar bastante. Resta saber se o moralismo do Brasil atual, hipócrita e fundamentalista, que contamina o Piauí também, não apedrejaria tal iniciativa e seus defensores.

É preciso não dar de comer aos urubus

É preciso seguir em frente. É preciso seguir criando, realizando, questionando. Ninguém solta a mão de ninguém e isso quem faz cultura, arte, educação, produz conhecimento e pensamento crítico sabe muito bem há muito tempo e, por isso, muito bem. É preciso fechar para balanço e reabrir, já disse Torquato, e vamos não só nos reabrindo e rearranjando e nos reamarrando ao mastro para sobrevivermos à tempestade, mas nos reencontrando umas com as outras, uns com os outros e com nós mesmos.

Ninguém solta a mão de ninguém e a mão que estendemos até você em nossa capa é a mão de um rei. Um rei que deixou seu reino do outro lado do oceano e veio cometer o maravilhoso desatino de ser professor nessas plagas onde ninguém é mais plebeu do que quem ensina, ninguém é mais servo do que quem educa. Nosso rei de mão estendida é Francis Musa Boakari, que veio de Serra Leoa para o Brasil e não pronuncia a “palavra começada com ‘n’“ e, assim, nos ensina muito sobre muita coisa sobre ser livre e ser inteiro.

Ninguém solta a mão de ninguém e é assim no teatro nacional: todo mundo precisa de todo mundo para seguir, seguir em frente, enfrentamento e resistência, que  mostramos um pouco na reportagem dessa edição, com A vida sob atos. É preciso nesses tempos, e nunca foi tanto, deixar os corpos livres. E nossa repórter mostra, de Viena, na Áustria, como é passar um dia em uma praia FKK: corpos livres e nus em áreas públicas, sem classes sociais, só as marcas nos corpos contando histórias e vivências. É preciso seguir em frente e as editoras independentes abrem espaço Brasil afora, publicando livros e novos autores e poesia e resistindo, demarcando novos territórios para o conhecimento e a literatura. Também falamos sobre isso nessa edição #38. E também falamos outra vez de resistência e de independência apesar de tudo: falamos do cinema nosso, nosso do Piauí, de couro grosso e feito por gente que se dá as mãos para realizar, ninguém solta a mão de ninguém. Isso, tem cinema na Revestrés.

E tem mais: tem piauiense conquistando São Paulo pelo estômago, com a Fitó. Tem José Bezerra, o “rei dos cantadô”, que aos 89 anos segue fazendo rima e resistindo, que resistência é palavra que rende verso bom. E tem fotografia: o projeto Revelador H2O2, de Alex Oliveira, descolore e reinventa identidades em um jogo de visibilidades e invisibilidades que é inquietante e a cara do nosso momento atual.

É preciso não dar de comer aos urubus, é preciso sobreviver para verificar, disse nosso Torquato. E aqui estamos, seguindo em frente porque da gente urubu não vai se alimentar.
Esperamos que goste da Revestrés #38.

Por André Gonçalves

Editorial da Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018.

Crescer

era um menino
que contava estrelas
amanhecia o dia
guardava as estrelas
no bolso traseiro esquerdo
nos dianteiros
pirulitos zorro de morango jujubas amendoim torrado pipoca doce
ploc de hortelã figurinha de jogador de futebol garrafa de grapette
medalha de segundo lugar patuá
um sorriso
uma camisa dez azul
bala chita
dois lápis um com a ponta quebrada borracha azul e rosa
uma marta rocha
dois quase afogamentos
um gol de bicicleta
dente de leite
brigadeiros, amassados
um monstro peludo sorridente
um chimpanzé
três índios de forte apache um corneteiro da cavalaria yankee
um foguete
as perguntas
juca chaves
cheiro de flamboyants
e um chico

um dia
as estrelas explodiram
no bolso traseiro esquerdo
e o menino
desolado
ficou adulto
vestiu calças compridas
e arrumou um emprego