Luana Sena
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É libertador não estar online

 

Impressões de quem, de uma hora para outra, se desconectou:

  1. Você vai perder a hora sem despertador.
  2. Vai se coçar para twittar enquanto espera o metrô.
  3. Caixa eletrônico ainda existe?
  4. Se você foi num rolê e não fez storie, você não foi.
  5. Mapas na estação e placas na rua nunca tiveram tanta razão de existir.
  6. Antes do waze os motoristas costumavam usar um método infalível para acertar endereços: chama-se “perguntar para as pessoas”.
  7. Você vai perguntar, mas as pessoas não sabem o caminho: elas também estão perdidas.
  8. Existe uma ferramenta ótima para trocar mensagens, enviar fotos, textos e arquivos em geral e com plus maravilhosos: não avisa que você visualizou, não tem grupo da família nem ninguém manda áudio. Com vocês, o novo e revolucionário e-mail. Zero defeitos.
  9. É libertador não estar online.
  10. Olhe ao redor. Sim, essa gente toda sempre esteve aí.

Filhos da Ufpi

 

Era o comecinho de 1980 quando, pra cursar Letras, cheguei à Universidade Federal do Piauí. Que na época, carinhosamente, chamávamos de Federal. Única instituição de ensino superior que tínhamos no estado, criada por Alberto Silva em 1971, marco importante de nossa história. Sem ela, continuaríamos no atraso ainda hoje. Calouro repleto de sonhos, pouco mais de 20 anos, não imaginava os desafios que teria pela frente. Infelizmente, nem o badalado milagre econômico foi capaz de suprir algumas de suas carências: laboratórios, uma melhor biblioteca central, transporte decente, RU de qualidade e ausência de CEU (Casa do Estudante Universitário). Não bastassem esses problemas, dois outros nos incomodavam bastante – professores e funcionários entrando por indicação política, o chamado “pistolão”, e a tentativa de privatizá-la, velho desejo das elites tupiniquins. Sem falar da escolha indireta, sem a participação da comunidade acadêmica, dos reitores biônicos.

Embalados pela bela canção Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, que tocava fundo nossa alma quixotesca, sobretudo, o sugestivo refrão – “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”, fomos à luta pra reverter o dramático quadro da Ufpi. Primeiro, retomando as entidades estudantis (DCE e CAs) dos pelegos, lideranças a serviço dos homi. Segundo, construindo um programa em defesa da universidade pública e de qualidade. Terceiro, definindo a democracia e a liberdade no país, suprimidas pela ditadura militar, como bandeiras prioritárias do movimento. E, por último, ocupando os espaços públicos (universidade, ruas e praças) em defesa de nossas utopias mais caras: Brasil mais justo/  solidário e educação gratuita para todos.

Paralelamente a tudo isso, realizávamos um montão de atividades lúdicas, no campus Petrônio Portella, a fim de deixar claro que, além das pautas educacionais e políticas, não abríamos mão da arte como manifestação de rebeldia e fonte de prazer – “A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte”. Daí o surgimento das Quintas Culturais, no Salão de Jogos, festinhas regadas a namoros, papos legais, beijos e algo mais; dos Festivais Universitários, celeiro de talentos artísticos, nos quais despontaram grandes nomes da música piauiense; da Quadrilhada, no Centro de Esportes, o espírito junino animando nossas tradições sob a benção de Luiz Gonzaga. Fora exposições de pintura e fotografia, bem como apresentação de grupos de teatro e dança. Tudo junto e misturado, sem preconceito e moral fundamentalista – “A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Pra aliviar a dor”, segundo o Titãs, banda de rock nacional.

E não é que os filhos e filhas da Ufpi, como eu e tantos outros de minha geração, estamos voltando à Federal, onde colhemos o melhor de nós, em termos profissional e humano, nesta quarta-feira, dia 29, a fim de defendê-la dos que atentam, novamente, contra suas verbas e autonomia. O objetivo é o mesmo de sempre, asfixiá-la financeiramente para, sem condições de funcionar, ser entregue a grupo privado. A cobrança de mensalidades, igual o modelo norte-americano, viria em seguida, privando alunos pobres de um futuro melhor. Nem criativas, nossas elites, são no modus operandi. Por meio de um show lítero-musical, reunindo poetas e artistas locais, faremos chegar aos representantes do mercado – os tais de rentistas, figuras que ganham sem produzir – que não aceitaremos, em hipótese nenhuma, que eles algarismem o amanhã de nossa juventude.

Um cesto de maçãs

Por Francisco Amorim de Carvalho

 

A vivacidade se mostra nas maçãs do rosto. Diante da nua verdade, o primeiro que nos delata, além da íris, é o rubor do rosto. Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, considerando o trabalho de Cézanne sublinha que a pintura é, igual que a filosofia, não o mero reflexo de uma verdade prévia, mas sim que ela toma parte na concreção da verdade. Cézanne através da arte, mais que a maçã, queria trazer à presença a sensação-maçã, fazer visível o que nos afeta, a partir da “fonte inapreensível das sensações” e das “raízes do ser”, capturar o “mundo primordial”, a “natureza no seu estado originário”. Também Deleuze, em Lógica da sensação, atento a temas da arte, sobre a pintura de Cézanne escreve que a sensação não está no jogo “livre” ou desencarnado da luz e da cor (impressões), mas sim que “está no corpo, ainda que o corpo de uma maçã”; a sensação [cor, cheiro, textura] está no corpo, o “pintado é a sensação”; o que vemos [sentimos] no quadro é o corpo, não pelo que está representado, mas pelo que é “vivido como experimentando tal sensação”.

A lógica do sentido não está no sensacional, não reside na leitura, nem na espetaculosidade, a lógica da sensação é como pensamento vivente, orgânico: somos unos com o sentido no sentido mesmo que nos acontece; não se trata de algum “aspecto” fenomenológico de descrição, mas sim no corpo mesmo, “é” o corpo mesmo em tanto que acontece; é a maçã de Cézanne, o girassol de Van Gogh, as ninfeias de Monet, o anjo de Klee, o discurso do trabalhador alfabetizado de Brecht. O que se pinta é a experiência mesma da sensação em tanto que acontecimento, experiência viva.

Isto que fazem os grandes pintores é o que realizam políticos autênticos, que são políticos do acontecimento, e expressam a sensação do corpo no contexto. Então transfiguram a representação hegemônica em histórico-dialética. Assim, podem realizar a revolução junto a sua comunidade. Imersos nela, vibram e agenciam no desejo e no corpo se expressa em tomada de consciência e de decisões coletivas: atitudes, e a história se torna matéria de criação, é quando, escreve Deleuze: “A história acontece em desenhos novos”; é dizer: uma poética do político, é a verdade possível.

Mais importante que o pensamento é o que nos move a pensar; não teria êxito a serpente se não fosse a maçã tal que nos apetecera, a maçã é toda para ser desejada, ela foi feita a nossa medida; a cor, o cheiro, o sabor, toda a sensação-maçã é o conhecimento presente da verdade; a arquitetônica poética da verdade está no corpo, ele sabe mais de ti do que tu mesmo, é teu maior confidente; o sentido está no objeto mesmo, no acontecimento todo, o objeto é unido ao sujeito, a árvore foi situada em um lugar preciso, uma paisagem o sustenta e acompanha, lhe constitui; é ser no mundo.

Em La vida de Sir Isaac Newton, Stukeley escreveu: “Disse a mim que havia estado nesta situação quando a noção da gravidade o assaltou a mente. Foi algo ocasionado pela caída de uma maçã enquanto estava sentado em atitude contemplativa.”, relata-se a descoberta de Newton; a contemplação proporciona ser todo no acontecimento, objeto e sujeito são unos na experiência.

O Jardim das Hespérides é o horto de Hera no oeste, onde uma árvore de maçãs douradas proporciona imortalidade. Hera é a filha da Terra (Rea) e do Tempo (Cronos); para os romanos era Juno e sua oferenda um pavão real. As maçãs foram plantadas com ramas da fruta que Gea (Terra) havia dado a Hera como presente de casamento com Zeus (o céu). Neste jardim ninfas cuidam das maçãs de ouro. Se maçã de ouro não se come, o que significa que dê imortalidade a quem a colhe? Newton além de descrever a matéria, buscará compreender suas leis e transformá-la, daí seu interesse por alquimia. Hoje, fora do paraíso, fora de si, e sem árvore de maçãs de ouro e sem alquimia: arte da transmutação, ocorre o acúmulo de ouro não de modo natural nem por arte, o ouro como medida está sem sentido e sem lógica, a uns lhes falta, a outros em excesso, por isso o literal se impõe ao simbólico, míngua o conotativo, a razão necessitada e miserável afasta a razão poética.

Tem notícia de gente indo a restaurantes onde servem pratos com pó de ouro, e comem!

A lenda narra que Gea ordena a um dragão para guardar a estas árvores de maçãs de ouro; nesta e em outras culturas o cuidado está em não permitir roubar as maçãs, o roubo resulta em violência e perda da imortalidade. Que relação existe entre o roubo das maçãs e o roubo do fogo? A queda vem com a perda do seu sentido vital, a medida que floresce e madura. Talvez, o imortal da maçã está naquele que a leva. Holderlin diz que o que permanece, é obra dos poetas, diz também que é poeticamente como o ser humano habita sobre esta terra.

Mais que representar uma maçã, a arte está em fazer presente a sensação-maçã. Os antigos poetas, de acordo com o tema, no início dos seus cantos evocavam a potência protetora dos seus segredos. O poeta extrai de si: poeta-árvore-maçã. O poeta abre o livro da memória poeticamente, e não lhe seria possível de outra maneira. Rubem Alves é que nos mostra esse ethos dos poetas. Em A maçã e outros sabores nos apresenta crônicas escritas desde situações do presente que evocam memórias e sabores. No seu relato sobre conversas com alunos, descreve o outono como a estação das maçãs cujo “cheiro se mescla com o cheiro das folhas que cobrem o chão”. Tendo no centro da classe uma cesta de maçãs como inspiração, viu-se tomado por lembranças de quando era menino. Alves diz que a memória é um poder estranho, a memória guarda coisas nas suas gavetas, coisas que nem sabemos que existam; ainda que tentemos abrir, só se abrem quando querem; certo dia uma de suas gavetas se abriu, conta Alves, e dentro havia uma maçã vermelha, embrulhada em um papel de seda amarelo, era sua primeira maçã, na ocasião era menino pequeno, véspera de Natal. O poeta ensina que transformamos o mundo de acordo com a maneira que o olhamos. Alves, como fez Clarice em A maçã no escuro, mostra essa alquimia que ocorre dentro de nós quando olhamos de outro modo aquilo que sempre esteve ali, uma nota nos toca e despertamos sensações e sentimentos esquecidos, escondidos ou perdidos, em nós mesmos, em nossos internos jardins ou labirintos.

No Juízo de Páris, narra-se que Eris, deusa da discórdia, por não haver sido convidada para o casamento de Peleo, aparece e lança uma maçã dourada com a frase “para a mais bela”, três das deusas presentes Hera, Atenea e Afrodite mais que à maçã desejam o título; como ninguém se vê capaz de decidir, Zeus envia Hermes a ir buscar ao príncipe pastor Páris, para dirimir a disputa. Páris elege a Afrodite, a deusa do amor que lhe promete a conquista do coração de Helena. Isso lhe trouxe consequências fatais. Hesper tem a ver com Juno, também com a estrela vespertina, a estrela da manhã, Vênus. Eva se encanta pela maçã, era preciso não estar com fome, para olhar com outros olhos, por natureza desejava saber. Foi por encanto que evoluímos? No mito grego o dragão Ladón guarda as árvores de maçã de ouro, neste a serpente induz ao desejo do fruto que proporciona a consciência de si (autognosis) e daí, conhecimento do todo, somente assim compreenderia a deus.

Seja com a chapeuzinho vermelho, seja com o aluno que leva para o professor um fruto de cultivo próprio, ali estará a árvore, a serpente e a maçã; todo valor tem duplo aspecto: a inocência e a astúcia. Odisseu com astúcia se livra do peso que Atlas sustenta. A serpente cumpre sua missão secreta: não há nada que não possa ser conhecido ou descoberto. Eva olhando para si, viu que corpo e conhecer, olho e espírito, são um; por isto conhecer fez ruborizar seu rosto. Mas teve vergonha de saber, só quando veio saber, soube que não sabia, antes tudo era um mundo, nada faltava, nem sobrava, tudo só acontecia; o não-entender era maior que o entender. É isto: entender é uma atitude.

Mostra Cézanne que não se pode roubar o ser da sensação-maçã, o ser flui com o rio, não se apressa o rio, é preciso entrar no rio para ser. A compreensão tem seu tempo. O menino leva uma maçã ainda não mordida, por isso brinca de dar diferentes nomes às coisas, seu tempo ainda não tem o peso do metal, não se afunda. É um tempo vivo. A arte política, a arte poética ou a arte filosófica, é fruto que madura, tem raiz e um ciclo de vida, e seu firmamento. As maçãs colhidas antes do tempo, tem preço, mas não valor. O preço é o mercado quem estabelece. Os valores são as pessoas que reconhecem, os valores se mostram sempre em constelações: a verdade, o caminho e a vida; é preciso ter uma filosofia de vida para reconhecer um valor. Cuida que a doce maçã não esteja envenenada, ou dormirás para sempre. Não se rouba um amor, Páris rapta mas ao final não fica com Helena, não se rouba a beleza alheia, as maçãs douradas são valores quando na árvore, em um jardim, à vista de todos e para todos.

Máquina do tempo

A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz.
O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.

(Walter Benjamim, tradução Sergio Paulo Rouanet)

 

Entrar em uma cidade medieval, atravessando suas muralhas e torres, é se permitir ser tragada pelo tempo. Não como se estivéssemos em um túnel cuja direção fosse o passado, mas como em um caleidoscópio que por meio dos seus efeitos visuais nos faz ir e voltar no mesmo instante. Ou, talvez, nos permita viver outro tempo com olhos de hoje.

Foi assim que em 2017 fui apresentada a Nürnberg. De cara me jogaram no Castelo Imperial Nuremberg, com seus pesados portões de madeira e degraus de pedra que datam do século XI, para em seguida ter acesso à vista panorâmica da cidade pulsante em pleno século XXI.
Depois descer ladeiras para me descobrir no século XVI diante da Albrecht Dürer Haus e da imponente estátua daquele que foi considerado o artista mais importante do Renascimento Nórdico. E a ordem era seguir sem me deixar sucumbir à tontura das imagens nos espelhos.

Segui misturando-me à alegria viva da feira, saboreando linguiça fininha e frutas vermelhas que hoje nos fazem salivar no mesmo local em que no início do século XX homens alimentados pelo ódio se reuniram para queimar livros. Segui tentando decifrar nos espelhos expostos à luz do dia, razões que levam algo sórdido a se tornar banal. E no Complexo do Congresso do Partido Nazista tudo está aberto à reflexão mais de oitenta anos depois. Seja no ar de abandono do pátio do Kongresshalle, na organização do Dokumentationszentrum, ou na aparente decadência de arquibancadas e tribuna no Zeppelinfeld. É impossível passar por ali e não repensar o nosso estar em um mundo que caminha a passos largos para a desumanização. Sem refletir sobre o que existe daquilo nos nossos gestos cotidianos quando silenciamos, ou não nos posicionamos criticamente diante dos fatos ou do que nos é dito sobre eles.

E isso ainda não seria tudo. Era preciso ir um pouco além e chegar até o Memorium Nürnberger Prozesse. Entrar na sala do julgamento de Nuremberg, ouvir atentamente o áudio, ver fotografias e documentários. Entender o ponto de vista dos vencidos que ali são tratados como a encarnação do mal. Entender o heroísmo arrogante dos que ali se declaram o bem. Ponderar a equação com seus pesos, seus excessos, suas crenças, suas necessidades, como caminho para entender a condição humana. Homens tão únicos e tão iguais, a repetirem em nossos dias os mesmos gestos. Entendê-los parece ser a nossa única chance de contrabalançar os efeitos colaterais de uma sociedade que cria autômatos capazes apenas de olhar para si mesmos, embriagados pela busca incessante de sua própria felicidade.

Eis que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Em uma calçada, que eu era obrigada a atravessar no trajeto hotel-centro histórico, estava exposta a Herzstück. Uma obra em granito da escultora alemã Michaela Biet, que reproduz um enorme coração. Paro. Contemplo. Fotografo. Um casal de idosos também para, os dois olham para mim e dizem na língua deles algo que não consigo entender. Abro um sorriso, daqueles que não precisam de estudos linguísticos para serem decifrados. Ela acena sua mão trêmula e seguimos cada uma o seu rumo. Sento-me na calçada de um pequeno restaurante italiano em que jovens tatuados, de origens diversas, brilham em seus piercing se abastecendo para uma noite que apenas começa, enquanto ao fundo a Frauentorturm guarda registros de entrada/saída do século XIV espelhando o que eu julgava ser o último contraste.

Reescrevo este texto, dois anos depois de obter a graça de observar tais imagens relampejantes, enquanto leio nos portais e vejo na TV cenas estarrecedoras do nosso cotidiano. Sim, a história parece ser intermitente assim como o tempo. Suas glórias e horrores não ficam enterrados em uma caldeira distante. Pairam sobre nós como ameaça ou esperança. Teimo em captar nas ruas a esperança. Às vezes uma centelha brota da arte que faz pulsar na rocha, ou no palco, um coração.

 

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)

 

O amor de Sophia

o mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Se compreendermos que cada poeta arrasta em sua natureza uma, e, somente uma palavra, para que, a partir daí, ele ou ela possa expandir sua escrita rumo aos encantamentos do amor e da liberdade, certamente, as letras depositadas em Sophia de Mello Breyner Andresen formariam a palavra “mar”. Uma das mais destacadas poetas da língua portuguesa do século XX, Sophia elevou a poesia ao status de instrumento sinalizador de justiça e verdade. A poesia que brota do sentimento que somente ao mar, reduto de amor e de liberdade, soube sussurrar em seus ouvidos, ainda que seus poemas não pareçam obedecer a nenhum plano. Aos doze anos, a poeta portuense esboçou seus primeiros versos sob a tutela da poesia de Camões e de Antero de Quental.

Sua estreia se dá com o livro Poesia (1944). Nele, Sophia apresenta ao mundo as luzes que iriam guiar sua poética por toda a vida. Nele, já temos o mar. O mar com suas lendas, mitos e encantamentos. O mar cheio de terror. O mar dos deuses. O mar de Atlântida. O mar transformado em canal de encantamento e de riqueza. Portanto, se é do mar que vem o sustento do corpo e do sonho, não é de se admirar que seja também de suas dimensões que brote a poesia de Portugal, país de vocação marítima por excelência e, por conseguinte, acostumado aos sentimentos de solidão e de saudade. No dizer de Michel Mollat du Jourdin, os povos portugueses: “viveram do mar, através do mar e para o mar”. Mas, em Poesia, há também poemas dedicados à mitologia grega e à cidade, reduto avesso à natureza. Sua poesia segue em Dia do Mar (1947), Coral (1950) e Tempo Dividido (1954). E segue abordando temas diversos do mar, mas, sem abandoná-lo: a morte, a busca da união do Ser, o descontentamento com o mundo e com a política de seu país natal. Não há medo de excessos em suas louvações desenfreadas ao mar. Sophia não se afasta da Praia da Granja, seu baú de espelhos, e diz: “A Granja é o sítio do mundo de que eu mais gosto. Há aqui qualquer alimento secreto.”

Mas ainda há o Mar Egeu e as praias do Mediterrâneo. Portanto, ao que parece, é nesse amalgama de mito e maresia que sua poesia habita. Essa atmosfera velada de bruma, nevoeiro e claridade está explícita em poemas como Foi no mar que aprendi, do livro O Búzio de Cós (2004):

 

Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos da espuma
Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia.

 

Nota-se como Sophia posiciona as esculturas: elas surgem e desaparecem formando o mesmo movimento das ondas do mar. Suas convicções literárias protegiam-na dos rótulos da moda, a exemplo do poeta Eugénio de Andrade. O amor e a liberdade nascem e atingem a plenitude na imensidão que a natureza carrega. Seja pelo caráter múltiplo de sua formação, seja pela perfeição e pela beleza, provenientes de suas combinações. Sophia deixa-se encantar pela noção de belo da cultura grega antiga. Em seus versos, ela resgata personagens marcantes dessa vertente: Orfeu e Eurydice, Dionísos, Endemyion, Electra, Ariadne, Antínoo, ou as Parcas, somente para citar alguns. No entanto, sua comunicação com as divindades dá-se mesmo com o Deus Cristão. Sua poesia é substantivada, optando pelos concretos, e, assim, atinge uma originalidade lexical.

Porém, a poeta, em muitos momentos, se utiliza de várias figuras como repetições, paralelismos, anáforas e aliterações, tropos como comparações, gradações e metáforas de forte teor expressivo. Nas palavras de Rita de Oliveira, Sophia “reata o elo do mundo dividido ao criar uma outra realidade; ela vive ao ser pronunciada; é descoberta quando os homens estão atentos para o que está a sua volta; materializa-se no texto com obstinado rigor; e é livre até do poeta.” Sophia não é afeita à pontuação. A estrutura vai das elegias ao verso livre. Conforme David Mourão-Ferreira sua produção era “completamente isenta de biografismo, de expressão retórica, de teatralidade, de pitoresco – de toda aquela imediatez interjectiva, tão frequente na poesia feminina.”

A exemplo do poeta pernambucano, João Cabral de Melo Neto, Sophia não se permite praticar o alto-relevo de seu próprio nome. Seu ponto de partida é o Caos. Sua rota é a passagem para o Cosmo, donde se percebe certa influência dantesca de transmutação. A simbologia do rio serve como veículo de ligação do sujeito poético ao mar, morada do Caos. Assim, tanto o mar quanto o rio, representados em suas imagens fixas, estanques, voltam-se para o arquetípico da figura materna, como já ressaltou Carl G. Jung.

Em seus versos, o retorno e o recomeço surgem de formas variadas (recomeçar, renascer, regressar, ressurgir…). Observa-se uma unidade de resgate da moderna teologia, com seu conceito de ressurreição como ato de recriar essa unidade. Mas, ainda assim, não há dúvida de que o sujeito poético, em Sophia de Mello Breyner Andresen, nasce, avança e regressa no espaço marinho e no espaço da sua pessoal adjacência, até admitir que o mar possa ser o reduto final da jornada humana na Terra. Em um dos seus dísticos mais conhecidos, Sophia diz: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto do mar.”

Nota-se que, o elemento que percorre a linha lírica da poesia, anuncia o desejo de atingir o ponto de plenitude na relação morte/mar. Nesta relação, a poeta não demonstra vontade deliberada de antecipar o ato, tampouco medo. Sua principal preocupação é com a preservação da integridade. Integridade que foi concebida na sabedoria dos gregos da antiguidade. A poesia de Sophia é de louvação ao retorno como forma de alimentar as virtudes do Homem. Observemos o poema “Ítaca”:

 

Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os panos pretos da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília dum segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto

 

Na poesia de Sophia de Mello, o mar é o viés escolhido pelo sujeito poético para que ele encontre o seu “eu” mais profundo. Ora num processo contínuo, ora como segundo nascimento. Daí se justifica o fato de a poeta ter feito várias referências ao renascimento, onde o mundo grego encontra-se intimamente ligado ao mar, local de ressurreição, tais como a cidade de Delphos.

Assim, o mar é, na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, um elemento-raiz. Daí, ser o ponto de partida e de chegada da vida. Uma espécie de acerto de contas com a natureza, dado o seu caráter cíclico. É através do mar que o sujeito poético mira seu norte e sua própria face diante dos encantos e desencantos do mundo em que vive. Neste percurso, Sophia delineia uma navegação nada uniforme, mas, onírica, imagética, mítica. Onde o sujeito poético encontra-se no afã de se deparar com sua plenitude, liberto e perfeito. Para tanto, a poeta, em certos momentos, se vale da promoção de figuras reconhecidas da história portuguesa das conquistas ultramarinas.

É de se destacar a ambiguidade do caráter maternal do mar na concepção de Gaston Bachelard, de onde se pode concluir que o final da jornada humana, ou seja, o retorno ao mar, pode ser também encarado como um reencontro com o elemento mãe. Ainda assim, não se trata de morte física, mas de um processo de renovação à maneira dantesca, como afirma Helena Langrouva:

“A ideia de viagem que subjaz implícita e explicitamente no âmago das viagens literárias está profundamente ligada às experiências humanas de fuga, … regresso à pátria, ao desejo de procurar o desconhecido e à procura de crescimento espiritual; está também relacionada com os ritos de passagem que exprimem a necessidade de renovação e de regeneração, num tempo e num espaço cíclicos.”

Denota-se que há o medo das profundezas do mar ao mesmo tempo em que é clara a necessidade que o sujeito poético tem de conhecer sua vida inconsciente. Daí, a poeta se faz valer de símbolos metafóricos para o desbravamento desses mistérios, especialmente no mar de Creta, referência primordial da autora de O Cristo Cigano (1961). Do azul da água como símbolo de sabedoria, e da estrela como símbolo de perfeição e do divino (a deusa Afrodite). Sophia cita animais marinhos para consolidar sua simbologia poética. Menciona o golfinho, símbolo de salvação e de alegria, em poemas como “Crepúsculo dos Deuses”, “Em Hydra, Evocando Fernando Pessoa” e “Cíclades”: “Estes são os arquipélagos que derivam ao longo do teu rosto/Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria/Que os deuses não te deram nem quiseste.” Nota-se que o sujeito poético não procura exclusivamente a imortalidade, mas também a unidade completa das coisas, o sentido da existência. E a opção por essa busca é, para Sophia de Mello, uma via que só poderá ser seguida através da tranquilidade que o mar proporciona, por geralmente se encontrar longe do tumulto dos grandes centros e, mesmo estando na costa das grandes cidades, o mar representa o espaço de meditação e de distanciamento do caos que a complexidade social cria e recria.