Luana Sena
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Diz que fui por aí

Tenho uma amiga que trabalha dois turnos, malha, faz balé, prepara a própria comida e ainda faz a sobrancelha no salão a cada quinze dias. Eu admiro, queria estar: no peso ideal e por dentro das polêmicas do facebook. Meus outros amigos que não trabalham ou estudam (porque ninguém é obrigado), estão por aí acompanhando a agitada vida noturna da cidade, o que, também admito, exige invejável esforço.

Tem essa sensação, que é muito real e cruel, do mestrando ver a vida passando ao seu lado e só observar. Sim, é verdade. E olha que eu só tenho aula três vezes na semana, pago um estágio e faço uns freelas. Minha ex-chefe terminou o mestrado dividindo a rotina com três empregos, dois cachorros e uma dissertação – e estava sempre maquiada, vestido passado e disponível 24h no whatsapp.

Eu não tenho uma meta, sempre estou a um passo de perder os prazos. Mas isso não quer dizer que não me esforce. Assim como eu, meus livros sempre chegam com um mês de atraso às discussões, minhas roupas perderam as expectativas, a sobrancelha saiu da linha e minha bicicleta cansou de esperar o dia em que sairia para passear.

Lembrando um pouco de que sim, um mundo externo existe, de vez em quando vale a pena pegar o carro, cair na estrada, e ver o mundo sob a ótica da embriaguez. É ali, numa bodega de calçada, com meia dúzia de pessoas escolhidas a dedo, que você se dá conta do quanto é pertinente debater a origem semântica do “ó do borogodó” e se o método de almoçar criando barreiras entre os ítens no prato – ou misturar o feijão com o arroz até que não se distinguam – diz algo relevante sobre o jeito de ser de cada um de nós. Dadas as conclusões, pode voltar para casa sentindo-se vivo – como o cão que quase salta a janela ouvindo o vento passar, fechando os olhos, sorrindo.

Tem algo de muito urgente e belo em tudo isso.

Novembro Azul

Quando entrei na casa dos 50 anos, resolvi encarar o temível toque retal. Queria saber como andava a próstata, evitando qualquer surpresa desagradável. Afinal, longe de mim querer partir tão moço, sem ter amado ainda o suficiente. Confesso que a posição do exame não é das melhores, mas não chega a ser também o inferno pintado por aí. Tudo feito com profissionalismo e num piscar de olhos. Com a mão envolvida por uma luva e usando vaselina, o médico introduz o dedo no “forever” da gente, conforme gíria usada pela rapaziada. Estranho mesmo é o desconforto sentido depois, sobretudo, no dia seguinte, uma dor resultante de algo que entrou em lugar indevido e desconfortável. A compensação, por outro lado, chegou com a boa notícia de que a próstata estava no tamanho normal. Não era dessa vez, portanto, que a morte iria me envolver em suas ardilosas tramas.

O câncer de próstata, conforme dados oficiais, tem matado um número significativo e desnecessário de homens. Não só no Brasil como no restante do mundo. Um monte deles por simples desinformação, alheios aos cuidados que o sexo masculino deve ter com o desenrolar dos anos. Outros tantos, talvez a maioria, ainda presos a tabus machistas antiquados, do tipo de recusar qualquer procedimento ou exame que ponha em dúvida a sua masculinidade. Parte das campanhas educativas sobre o assunto, inclusive, reforçam tais preconceitos, a exemplo da que vi estampada na camiseta de um humilde senhor: “Sou homem com H. Não dou chance pro câncer de próstata”. Intrometendo-se assim, de maneira indevida, na opção sexual dos homens. Depois por não informar corretamente que todo homem, independente de sua opção sexual, deve se submeter a uma avaliação clínica anual a partir dos 50 anos.

Segundo dados do Ministério da Saúde, o câncer de próstata já é o terceiro tumor maligno mais diagnosticado no Brasil e o quinto que mais ceifa vidas. Ainda que esteja se sentindo bem e não tenha histórico familiar, o homem deve procurar um urologista a fim de realizar dois procedimentos essenciais e complementares – o exame de sangue e o toque retal. O primeiro aponta, através da dosagem do Antígeno Prostático Benigno (PSA), a existência de algum tipo de problema. Quanto ao segundo, embora constrangedor, confirma ou não a necessidade do médico agir sem demora. Descoberto precocemente, o câncer de próstata apresenta um grande potencial de cura por meio da radioterapia ou de cirurgia. Não esquecer que a maior incidência do tumor ocorre entre homens acima de 65 anos, notadamente negros.

Morrer é inevitável, queiramos ou não. Geralmente independe de nossa vontade. Entretanto, bobeira é o termo empregado para quem resolve se encantar de vez, vítima de sua própria ignorância ou de seus lamentáveis tabus. Quantos caras interessantes partiram antes da hora por receio de enfrentar uma inofensiva dedada. De cor, enumero alguns nomes bastante conhecidos e que deixaram saudade: Valdick Soriano, seresteiro-mor das cantigas de dor de cotovelo; Johnny Alf, precursor da bossa nova; Frank Zappa, guitarrista e compositor norte-americano; e, por fim, Telly Savalas, ator que encarnava o detetive “Kojak”. Lembro-me agora, nessa difícil escolha entre a vida e a morte, da sábia tirada filosófica de Quincas Borba, o mais instigante personagem da vasta galeria machadiana: “verdadeiramente há só uma desgraça: é não ter nascido”.

Felicidade

O que todos queremos? O que todos buscamos? O carro do ano? A casa própria; a namorada linda, gostosa e inteligente; comprar no shopping a roupa de grife famosa; computador com todos os gigas possíveis; televisão de parede inteira, ou o que?

Tudo isso e muito mais, não é mesmo? Talvez tudo o que de bom exista. Nada basta. Mas será que é isso mesmo o que precisamos? Não estamos sendo enganados? Porque coisas exigem coisas. O carro do ano quer o carro importado. A casa própria pede o duplex. A namorada (o) que se fez esposa (o), nos fará pensar em uma (o) amante deliciosa (o). Nada nos será suficiente. Estamos sendo condicionados a nos tornarmos consumidores. Há quem promova essa angústia e ansiedade humana via marketing nas mídias, e é obvio que para aferir lucros.

O que queremos de verdade? Amor? Sim, queremos amor. Mas amor somente não basta. A nossa história nos desmascara: ainda é pouco. Continuamos procurando mesmo tendo vários amores. Liberdade? Somos uma liberdade a se realizar. Toda liberdade que conquistarmos será pouco. Ainda seremos transgressores em busca de mais e mais. Se der o pé, vamos querer o braço, do braço iremos pescoço e deste ao corpo todo. Somos matadores. O Céu e a Terra podem morrer juntos que ficaremos para o enterro.

O que procuramos? Imagino que satisfação de viver e realização de nossos objetivos. Temos um nome para isso: Felicidade. A melhor medida para o momento feliz é quando queremos que ele nunca se acabe. O problema é que vivemos em um mundo de relatividades. Tudo é líquido e não há nada que sempre dure. Não há patamares, a fluência é a constante.

Quando às coisas, há vários caminhos. Adaptar nossa vontade à nossa realidade. Aceitar nossos limites e exigir de nós disciplina compatível às possibilidades que possuímos. Querer apenas o que podemos. Por ai se poderá construir harmonia e paz, que dizem, trás felicidade. Outra opção é enfrentar a realidade e lutar para submetê-la às nossas necessidades. Transformar para encontrar satisfação na existência. Construir um mundo melhor para garantir a felicidade.

O maçarico da vida nos mostra quão avassaladora é a nossa experiência pessoal de sermos o que somos. Vivemos esse tumulto, essa sede com fome. Entre o que somos e o que queremos ser, navegam rios e mares. Todos querem ser felizes. Mas navegamos, ou somos forcejados a navegar, à margem e contra o vento. Nada nos é muito favorável.

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Luiz Mendes

24/10/2015

Enfim, embora com atraso, o tão bem guardado segredo

Antes que me ponha, finalmente, a revelar o tão bem guardado segredo que é a receita obtida por meu tataravô a duras penas nas ilhas geladas da Rondívia em fins do século 18, deixo aqui registrado, para toda a não-eternidade, que o universo não é composto por terra, água, ar e fogo, como vem da filosofia grega clássica e posteriores.
A Rondívia, este país situado em algum ponto a leste da rua Humboldt, cujo único cidadão caucasiano branco bípede com polegares opositores, barba, bigode e cabelo quase nenhum e que algum dia tenha escutado a quinta sinfonia a visitá-lo foi meu tataravô, é pródiga (a Rondívia, caso já tenha se esquecido tão longa foi a frase anterior) na produção de duas coisas: vento e filósofos. Tanto assim que os filósofos da Rondívia são absolutamente desconhecidos em qualquer parte do mundo mas, caso se desse o contrário e o mundo inteiro tivesse se dobrado à sapiência filosófica desses gênios desconhecidos, diria-se desses serem os filósofos cabeças-de-vento.
Os filósofos da Rondívia há muito sabem que tudo o que existe, existiu ou haverá um dia de existir é composto por cinco elementos essenciais: sal, peixe, vinho, música e amor. Desses cinco elementos deriva-se todo o universo. O corpo, a pedra, a folha, o mar, o sol, as pilastras dos palácios, os livros, os macacos, as bactérias, e até mesmo os políticos e os árbitros de futebol,  ou seja, tudo que há, houve e haverá, tem a gênese nesses elementos, o que foi muito tempo depois interpretado um tanto erroneamente por Aristóteles e pelos alquimistas e por Jorge Ben Jor. Isso gerou a ilusão dos quatro elementos, a quintessência e outros enganos, coisa que deixaremos para comentar em outra oportunidade caso ela ainda nos surja em vida, assim como os motivos e circunstâncias que levaram meu avô a aportar na Rondívia e tudo o que sucedeu após esse fenomenal evento.
O fato é que o universo é composto por sal, peixe, vinho, música e amor. E é daí que vem a receita mais famosa da Rondívia: dos cinco elementos, mais a sextessência rondiviana, que é o macarrão. Hoje, através da ciência pós-moderna, sabe-se que o macarrão é fonte de carboidratos que são fundamentais para nossa sobrevivência, e daí se percebe a sabedoria do povo rondiviano transformada em culinária: os cinco elementos essenciais, mais a sextessência, fazem a Bacalhonada, o prato fundamental em torno do qual se reúne todo o conhecimento dos filósofos da Rondívia e, portanto, o conhecimento humano.
Tudo isso foi dito para que você perceba a necessidade de se reverenciar a receita que segue, e transformar o ato de prepará-la em evento ritualístico e sua deglutição em uma festa que deve ser anunciada aos quatro ventos antes, durante e após todo o ritual, até mesmo pelo rádio ou, quem sabe, por pombos correio, muito mais modernos.
Uma última observação antes da receita propriamente dita: siga rigorosamente as quantidades determinadas, para não correr o risco de um resultado absolutamente cartesiano. Assim como na vida, quanto mais se segue as regras menos se controlam os resultados, e é isso que faz, desse prato, um símbolo indelével da sabedoria dos mais sábios de todos os sábios de toda a história humana.

Bacalhonada

Ingredientes:

* 500g de bacalhau em lascas
* 1kg de macarrão (qualquer formato, mas preferencialmente talharim, para que possam todos passar alguma vergonha ao enrolar o macarrão no garfo)
* 12 garrafas de vinho (algumas de vinho branco, outras de vinho tinto)
* um tantinho de azeite
* algumas cebolas
* alho em pasta
* uns poucos tomates
* um pouquinho de sal
* azeitonas sem caroço, pretas e verdes
* música a gosto
* uma ou mais pessoas as quais se ama

Modo de preparo:

Mergulhe o bacalhau em lascas (previamente dessalgado mas não muito) em meio litro de vinho branco. Deixe que o bacalhau fique um tanto bêbado, o que deve levar cerca de 45 minutos. Beba o meio litro restante.
Coloque música a gosto no ar, e convide a(s) pessoa(s) que você ama para dançar. Abra outra garrafa de vinho. Distribua vinho para todos a cada 5 minutos, talvez um pouco menos.
Faça o macarrão à parte: (fazer o macarrão é tão óbvio que não merece instruções).
Em uma panela média coloque o azeite, deixe esquentar; coloque o alho em pasta, doure as cebolas cortadas em rodelas; quando douradas, beba um copo inteiro de vinho, dê dois rodopios com cuidado para não se queimar e beije o(s) ser(es) amado(s).
Ponha na panela o bacalhau e mexa bastante, no ritmo da música previamente escolhida; coloque os tomates picados; mexa mais lentamente; experimente e vá colocando sal a gosto.
Acrescente ao conteúdo da panela dois copos de vinho branco, para fazer um caldo leve; deixe esquentar até quase ferver, mas não ferva; beba mais vinho.
Ao perceber que o bacalhau está suficientemente cozido, o que vai depender mais de quanto vinho tomou do que qualquer outra coisa, apague o fogo.
Em uma travessa coloque o macarrão, jogue o molho de bacalhau por cima, decore com as azeitonas pretas e verdes e mais rodelas de cebola, que foram fritas no que restou na panela.
Beba mais vinho, cante alguma coisa como “Corrientes, Tres Cuatro Ocho” ou algo que o valha, bem alto, e sirva.
Todos devem estar embriagados do vinho.
A música deve estar no volume suficiente para que todos cantem, mas que possam eventualmente trocar ideias e desconvicções e delírios sobre futebol, amores, Paris, Oeiras ou qualquer coisa que encante a alma.
Essa receita serve entre duas e 6 pessoas. Ou mais. Quem há de saber quantas paixões cabem dentro do peito?

P.S.: em breve, novas delícias culinárias típicas da Rondívia e seus arredores.

Ansioso

Cazuza afirmava-se exagerado, eu sou ansioso. Sim, ansioso. E não aconselho a ninguém que o seja. É terrível não conseguir se contentar em estar somente em si. O que fui e o que sou nunca me foram suficiente.

Vivo a tudo ultrapassar sem perceber que estou passando, sem por mim me dar. Ânsia em mim é voracidade de viver. Uma luta enorme contra o tempo. Vou passando dentro do tempo e sei que é ínfima a parcela que retenho. Ele foge ao longe sem que o perceba. Na verdade, me sinto atrasado, meu hoje não se compromete com o amanhã e por isso sempre é ontem.

Poucas vezes sou saciado em minha necessidade de estar naquilo que estou. Anseio engolir o tempo, dar passos além de minhas pernas. Queimar etapas, pular o método. Traio-me como o amante perdido entre tantos amores. Erro sempre que me projeto e sinto saudades do tempo que perdi sem conseguir viver. Tudo poderia ser mais significativo se conseguisse absorver gomo a gomo. Mas absorvo inteiro por não saber fazer diferente.

Desespero-me a viajar outras vidas. Alastrado para viver outros clarões, já que não posso ser muitos e apenas eu. “Onde existo que não existo em mim?” questiona o poeta português Sá Carneiro que depois se suicidaria estupidamente. Minha ansiedade não é mal de todo, embora seja consumição. Às vezes ocorrem ultrapassagens que me enchem de prazer. É quando me transponho a caminho do outro. A outra pessoa; suas grandezas e mesquinharias, riquezas e misérias intransferíveis. Mesmo para amar, amo ansiosamente e quero completamente. É derramamento ao tempo que esponja a absorver todo ar circundante. Liberdade e sufoco, poucos compreendem ou conseguem suportar.

Liberto-me do descompasso, da angústia e do humano que é sofrer em mim. Escapo de minhas seguranças tão duramente conquistadas. Ultrapasso-me quando aceito a vida como surpresa. O que cada fenômeno se revela. Fico na expectativa, todo ansioso, já que cada um pode vir a ser a esperança de preencher de sentido minha ansiedade.

De qualquer maneira, apesar de ansioso, penso e pensar me torna parte do tempo e da paisagem. Pairo, solúvel no ar, compondo, fazendo parte da vida.

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Luiz Mendes

20/10/2015.