Antes que me ponha, finalmente, a revelar o tão bem guardado segredo que é a receita obtida por meu tataravô a duras penas nas ilhas geladas da Rondívia em fins do século 18, deixo aqui registrado, para toda a não-eternidade, que o universo não é composto por terra, água, ar e fogo, como vem da filosofia grega clássica e posteriores.
A Rondívia, este país situado em algum ponto a leste da rua Humboldt, cujo único cidadão caucasiano branco bípede com polegares opositores, barba, bigode e cabelo quase nenhum e que algum dia tenha escutado a quinta sinfonia a visitá-lo foi meu tataravô, é pródiga (a Rondívia, caso já tenha se esquecido tão longa foi a frase anterior) na produção de duas coisas: vento e filósofos. Tanto assim que os filósofos da Rondívia são absolutamente desconhecidos em qualquer parte do mundo mas, caso se desse o contrário e o mundo inteiro tivesse se dobrado à sapiência filosófica desses gênios desconhecidos, diria-se desses serem os filósofos cabeças-de-vento.
Os filósofos da Rondívia há muito sabem que tudo o que existe, existiu ou haverá um dia de existir é composto por cinco elementos essenciais: sal, peixe, vinho, música e amor. Desses cinco elementos deriva-se todo o universo. O corpo, a pedra, a folha, o mar, o sol, as pilastras dos palácios, os livros, os macacos, as bactérias, e até mesmo os políticos e os árbitros de futebol, ou seja, tudo que há, houve e haverá, tem a gênese nesses elementos, o que foi muito tempo depois interpretado um tanto erroneamente por Aristóteles e pelos alquimistas e por Jorge Ben Jor. Isso gerou a ilusão dos quatro elementos, a quintessência e outros enganos, coisa que deixaremos para comentar em outra oportunidade caso ela ainda nos surja em vida, assim como os motivos e circunstâncias que levaram meu avô a aportar na Rondívia e tudo o que sucedeu após esse fenomenal evento.
O fato é que o universo é composto por sal, peixe, vinho, música e amor. E é daí que vem a receita mais famosa da Rondívia: dos cinco elementos, mais a sextessência rondiviana, que é o macarrão. Hoje, através da ciência pós-moderna, sabe-se que o macarrão é fonte de carboidratos que são fundamentais para nossa sobrevivência, e daí se percebe a sabedoria do povo rondiviano transformada em culinária: os cinco elementos essenciais, mais a sextessência, fazem a Bacalhonada, o prato fundamental em torno do qual se reúne todo o conhecimento dos filósofos da Rondívia e, portanto, o conhecimento humano.
Tudo isso foi dito para que você perceba a necessidade de se reverenciar a receita que segue, e transformar o ato de prepará-la em evento ritualístico e sua deglutição em uma festa que deve ser anunciada aos quatro ventos antes, durante e após todo o ritual, até mesmo pelo rádio ou, quem sabe, por pombos correio, muito mais modernos.
Uma última observação antes da receita propriamente dita: siga rigorosamente as quantidades determinadas, para não correr o risco de um resultado absolutamente cartesiano. Assim como na vida, quanto mais se segue as regras menos se controlam os resultados, e é isso que faz, desse prato, um símbolo indelével da sabedoria dos mais sábios de todos os sábios de toda a história humana.
Bacalhonada
Ingredientes:
* 500g de bacalhau em lascas
* 1kg de macarrão (qualquer formato, mas preferencialmente talharim, para que possam todos passar alguma vergonha ao enrolar o macarrão no garfo)
* 12 garrafas de vinho (algumas de vinho branco, outras de vinho tinto)
* um tantinho de azeite
* algumas cebolas
* alho em pasta
* uns poucos tomates
* um pouquinho de sal
* azeitonas sem caroço, pretas e verdes
* música a gosto
* uma ou mais pessoas as quais se ama
Modo de preparo:
Mergulhe o bacalhau em lascas (previamente dessalgado mas não muito) em meio litro de vinho branco. Deixe que o bacalhau fique um tanto bêbado, o que deve levar cerca de 45 minutos. Beba o meio litro restante.
Coloque música a gosto no ar, e convide a(s) pessoa(s) que você ama para dançar. Abra outra garrafa de vinho. Distribua vinho para todos a cada 5 minutos, talvez um pouco menos.
Faça o macarrão à parte: (fazer o macarrão é tão óbvio que não merece instruções).
Em uma panela média coloque o azeite, deixe esquentar; coloque o alho em pasta, doure as cebolas cortadas em rodelas; quando douradas, beba um copo inteiro de vinho, dê dois rodopios com cuidado para não se queimar e beije o(s) ser(es) amado(s).
Ponha na panela o bacalhau e mexa bastante, no ritmo da música previamente escolhida; coloque os tomates picados; mexa mais lentamente; experimente e vá colocando sal a gosto.
Acrescente ao conteúdo da panela dois copos de vinho branco, para fazer um caldo leve; deixe esquentar até quase ferver, mas não ferva; beba mais vinho.
Ao perceber que o bacalhau está suficientemente cozido, o que vai depender mais de quanto vinho tomou do que qualquer outra coisa, apague o fogo.
Em uma travessa coloque o macarrão, jogue o molho de bacalhau por cima, decore com as azeitonas pretas e verdes e mais rodelas de cebola, que foram fritas no que restou na panela.
Beba mais vinho, cante alguma coisa como “Corrientes, Tres Cuatro Ocho” ou algo que o valha, bem alto, e sirva.
Todos devem estar embriagados do vinho.
A música deve estar no volume suficiente para que todos cantem, mas que possam eventualmente trocar ideias e desconvicções e delírios sobre futebol, amores, Paris, Oeiras ou qualquer coisa que encante a alma.
Essa receita serve entre duas e 6 pessoas. Ou mais. Quem há de saber quantas paixões cabem dentro do peito?
P.S.: em breve, novas delícias culinárias típicas da Rondívia e seus arredores.