O oriente que buscamos para nos orientar, está sempre mais ao oriente. Até meus 20 anos, tratei meu corpo com toda violência que minha inconsciência foi capaz. Fugi de casa aos 11 anos de idade. Fui morar na cidade, essa mãe desnaturada. A liberdade me atraia. Ficava febril olhando os meninos de rua indo e vindo, pulando, brincando e rindo sob as luzes dos neons.

Nas ruas, pedia comida nas mesas dos restaurante até, com os meninos da cidade, aprender a roubar. Comecei cheirando éter e acetona. Aprendi a beber desde muito pequeno, do fundo do copo de meu pai. Depois conheci a maconha. Em seguida vieram as “bolas”. Preludin, Anorexil, Perventin, Estelamina, Ferlantin, dexamil, um monte. Remédios que vendiam nas farmácias e eram a base de anfetaminas. Comecei a me aplicar com cerca de 14 anos. Primeiro foi Instilaza e Risnoteg. Depois vieram as célebres “garrafinhas” de Perventin. Furei as veias enfurecidamente. Vivia para sugar todo prazer que pudesse atingir com meu corpo.

Preso, fiquei na maconha e no cigarro. Bebia quando conseguíamos destilar ou decantar algum álcool. As pessoas sequer imaginam a luta que desenvolvíamos para tomar um gole de “Maria Louca”. Destilávamos de tudo: arroz; beterraba, batata, cascas de frutas, frutas, açúcar e tudo que desse álcool. E o ferramental? Artesanato puro misturado à nossa inigualável capacidade de improvisação e invenção.

Aos poucos, fui largando. Tudo era escasso e parco, nem valia a pena tamanho esforço. Paulo Freire afirma que na medida em que o ser toma conhecimento dos códigos de comunicação da humanidade, faz uma releitura do mundo. Comigo se deu exatamente assim. Digo sempre que os livros me salvaram, salvam e salvarão sempre. Só depois que os livros penetraram em minha vida é que pude entender que existiam outros caminhos, outros campos de ação.

Só então comecei a me tratar melhor. Até então, era apenas o corpo, minha única fonte de prazer e liberdade. Não havia nada além dele. Aos poucos, fui conhecendo o pensamento, a imaginação e a capacidade de criar espaços de vida além do corpo. No decorrer dos anos, os conceitos foram mudando e o corpo foi se tornando veículo através do qual eu podia chegar à liberdade, ao prazer e à felicidade (mesmo que fugaz, mas absolutamente necessária). Não era mais o fim que justificava meios. Não era mais um corpo. Eu agora tinha um corpo e estava aprendendo a colocá-lo a serviço de minha alegria de viver.

Aprendera a fazer ginástica na cela forte da Penitenciária. Através do encanamento da privada, (nosso nauseabundo telefone), um companheiro explicava as posições e eu executava. Venho sendo preso e espancado desde pequeno. Primeiro ao preconceito porque nasci bastardo. Depois às neuroses alcoólicas de meu pai que me espancava e prendia em casa. Nas ruas eram os comissários de menores e os policiais que prendiam e espancavam. No Juizado de Menores os funcionários e os meninos maiores abusavam. Imediatamente ao ultrapassar os 18 anos, fui preso e só sai em 2004, com 51 anos de idade. Mas depois que aprendi o valor de ter um corpo sadio, nunca mais parei de me cuidar. Atendimento médico e medicamentos aqui fora, é uma grave preocupação da população. Imagine lá dentro, à mercê, sem poder sequer reclamar.

Fiz de tudo para manter a forma e a saúde. Improvisei pesos com canos de ferro e latas cheias de concreto. Bancos de caixotes de banana. Cabos de vassoura, grades, pátio de recreação, tudo era ferramenta para meu esforço. Aprendi séries de ginástica, boxe, corrida, capoeira, um monte de modalidades esportivas. Gostava de esportes em que eu era o desafiante e desafiado. Ao sair, passei por uma avaliação física na Fórmula Academia. O médico veio me cumprimentar pelo excelente estado físico que me encontrava.

De lá para cá, cometi alguns excessos. Cedi em algumas disciplinas e tentei algum equilíbrio. Não podia mais ficar me prendendo, me segurando. Havia um limite. De um certo ponto em diante, vira obsessão e opressão. Com descabida alegria, bebi um pouco e participei mais abertamente da vida. Estava aprendendo auto controle, quando adoeci. Recente, 10 anos depois, em exames clínicos, descobri que estava doente de verdade. Meu corpo estava cobrando excessos da juventude. Estou fazendo um monte de exames e vou entrar em tratamento severo. Provavelmente serei operado ou passarei por rigoroso tratamento quimioterápico. Queria envelhecer bem e chegar seguro na outra ponta da corda, mas parece que vai ser impossível.

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Luiz Mendes

03/12/2015.