Luiz Alberto Mendes
Blog Title

Complexo de Cassandra

Você já ouviu falar em “Complexo de Cassandra”? Pois é, sou curioso até encher o saco. Nem sempre me aguento com minhas pesquisas; elas sempre são copiosas. Então, outro dia li algo sobre isso e fui atrás, saber o que viria a ser aquele nome tão bonito e sonoro (sou metido a poeta, também).

Mas ao tomar conhecimento da definição, fiquei rindo de nós todos, seres humanos. O homem é o mesmo em qualquer condição. Em resumo, o tal “Complexo de Cassandra” nada mais é que um método de sobrevivência prisional dos mais eficientes. Estou vivo e inteiro (emoção e razão afiados, embora a paixão e a insanidade comum a todos) graças a ele. Popularmente, chamamos a isso jogo de cintura.

Diante de uma questão sem solução que nos atinge, primeiro é preciso estar convicto de que não é possível evitar o problema. Depois, então, é preciso agir em consequência disso. Talvez assim seja possível escapar, se houver chances. Só que, na prisão, o espaço é limitado e o ambiente controlado artificialmente. Então é preciso assimilar o fato como real e admitir que só a observação centrada nos acontecimentos trarão alternativas viáveis de sobrevivência. Mas só os que determinam e os que executam as sentenças sabem de fato o que vai acontecer com o apenado. Aqui fora é o medo que tange, limita o espaço e controla o ambiente. Diante dos desastres anunciados como inevitáveis pela ciência, o medo passou a ser tido como o único caminho viável para as pessoas.

A pós-modernidade pressagia o fim dos tempos. Segundo profetas pós-modernos, seremos destruídos pelos nossos esforços em controlar o planeta. Na busca de alicerçar conhecimentos para sustentar o futuro, acabaremos por nos expulsar do “paraíso” que construímos. Acreditam que já cortamos a relação com a nossa história, como quem corta os pulsos e espera sangrar até morrer. Já nos matamos enquanto humanos; somos moribundos a caminhar sem destino (os filmes já nos mostram os “zumbis”), sem futuro e agora também, sem história.

Em consequência, eles não reconhecem nenhum dos valores que até então orientaram nossos caminhos. Afirmam que fomos nós que nos levamos à autodestruição em que já mergulhamos. Concluem que a razão humana somente fez mal ao homem, provocando guerras, doenças e, finalmente, a destruição do planeta. São os anjos anunciadores de catástrofe eminente.

É preciso consciência de que, provavelmente, tenhamos mesmo já destruído o planeta. Os valores antigos, esses mesmos ai, pragmáticos, de competição, “fique rico ou morra tentando”, economia de mercado, individualismo, consumismo absurdo, desmatamentos predadores, poluição do ar e das águas, guerras, divisão de classes sociais e outros, realmente nos tem feito muito mal, senão todos os males. Mas daí a ficar esperando o fim para agir em consequência, não existe. A consequência do fim é nada haver. Parece com o que acontece na prisão em que o controle da vida dos homens aprisionados vem de quem os custodia. Aqui fora há campo. Tudo é plástico, em permanente transformação; se aprendemos a destruir, com certeza aprenderemos a construir também. É dialético. Ao final e ao cabo, o que vai valer mesmo será o gesto, a alegria, mesmo que dolorido, sofrido e indigesto.

**

Luiz Mendes

Amor e Vida

Vivemos a suspirar, alongando o olhar janela afora, em busca de algo que nem sabemos o que seja. Não estamos seguros nem de que exista algo conforme o que sonhamos. No fundo sabemos que não estamos vivos o suficiente. Não somos amados o tanto quanto carecemos; não somos respeitados quanto necessitamos; não temos tudo o que queremos; estamos sedentos do infinito, de algo além do que existe.

Desejamos o suave, a leveza integral de ser, a delicadeza e temos vida pesada, contradições e as deselegâncias que nos cercam. Não nos bastamos e o pior é que não há como ter esperanças de que alguém ou alguma coisa que nos complete. Então, vamos distinguindo, pouco a pouco, a confusão do que somos, e descobrimos o outro. Este ser que tem o fogo do inferno e as plácidas nuvens do céu. A quem somos imperiosamente solicitados à compreensão, na convivência diária.

Nosso futuro torna-se uma relação que aponta para o impossível. Um impossível que movemos com nosso próprio esforço. Partimos do que acumulamos e, aos poucos, a soma de nossos erros e acertos vão se delineando. Serão nossas conquistas permanentes. Forças que nos farão sorrir ao pensá-las. Como nos faz bem pensar tesouros escondidos! Essas qualidades tão duramente conquistadas. Temos valor, e isso significa demais. Mesmo que não estejamos no melhor de nossos momentos, ainda somos capazes, vivemos em latência. Essa esperança, brilhante como clorofila, nos ensina a confiar na impossível lealdade; no improvável amor; e na floração da primavera. Tudo virá novamente, em ciclos.

Quando amamos descobrimos que já não vivemos plenamente sem o outro. E depois de tudo vivido, descobrimos que não era aquele ser que nos completava. Porque ninguém é capaz de completar ninguém. Isso é tarefa pessoal de cada um; completar-se. Pessoas e amores se sucederão até que nos damos conta de que o amor esta em nós. Essa alegria de se sentir tão feliz por estar amando. Somos nós quem possuímos a qualidade de produzir aquela emoção toda. O outro nos recebe e se nos corresponde à altura, produzirá em si a alegria, a felicidade de estar amando. Sentimento próprio, intransferível.

Se bem que é ai que azeda o pé do frango. A convivência é a régua dos sentimentos porque infere renúncia. Renúncia é o suprasumo das qualidades humanas. Capacidade de ser além do que sente, e privar-se

para que o prazer ou a felicidade do outro aconteça. Tanto que para o budismo, renunciar aos desejos pessoais é o caminho para o Nirvana.

É preciso renunciar a muita coisa de si para conseguir compor o nós. Mas não podemos nos desfigurar. Somos infinitos, vivemos nos recriando a partir do tempo e do espaço. Bernard Shaw dizia, em outras palavras, que a única pessoa que o conhecia, de fato, era seu alfaiate, porque sempre que o procurava, este lhe tirava as medidas novamente. O nós não impede ser. Não nos dividimos para criar o nós. Nos multiplicamos a partir do que somos, formamos o nós.

Mas que trabalho dá isso! Porque infere cultivo, abnegação, compreensão profunda em grande quantidade. Somos invasores, é preciso admitir. Fomos feitos curiosos, sedentos de saber e ser. Nossa maior carência não é a emocional e sim a existencial. Não existimos tudo que necessitamos existir e isso nos desequilibra.

Por mais que se ame, tudo é bem menos arrebatador, em se convivendo. É impossível corresponder às expectativas de quem quer que seja. Elas sempre irão além de nós. Imaginar, podemos faze-lo ao infinito. O problema é que a nossa presença no tempo e no espaço obedece equações matemáticas e leis da natureza. Nada dá saltos, tudo é gradativo e contínuo. A nossa finalidade em existir exige de nós métodos, etapas, aprendizados, habilitações e até méritos.

Tudo o que nos aconteceu nos acompanha e incide sobre o que esta acontecendo. O momento presente nos atrai qual imã poderoso. E vamos assim aprendendo que estamos todos aprendendo e que ninguém sabe muita coisa, daí porque tanta dificuldade em estarmos juntos. Nossas arestas se tocam e sangramos. A dor é como pedra que não germina; basta-se. O pior é que, insanos, nos equilibramos precariamente.

Resta viver, superar, sempre que possível, e crescer com tudo isso. Embora a essa altura o sonho de ser feliz possa ter perdido um pouco de seu brilho, sempre haverá possibilidade de alguma felicidade.

**

Luiz Mendes

Felicidade

O que todos queremos? O que todos buscamos? O carro do ano? A casa própria; a namorada linda, gostosa e inteligente; comprar no shopping a roupa de grife famosa; computador com todos os gigas possíveis; televisão de parede inteira, ou o que?

Tudo isso e muito mais, não é mesmo? Talvez tudo o que de bom exista. Nada basta. Mas será que é isso mesmo o que precisamos? Não estamos sendo enganados? Porque coisas exigem coisas. O carro do ano quer o carro importado. A casa própria pede o duplex. A namorada (o) que se fez esposa (o), nos fará pensar em uma (o) amante deliciosa (o). Nada nos será suficiente. Estamos sendo condicionados a nos tornarmos consumidores. Há quem promova essa angústia e ansiedade humana via marketing nas mídias, e é obvio que para aferir lucros.

O que queremos de verdade? Amor? Sim, queremos amor. Mas amor somente não basta. A nossa história nos desmascara: ainda é pouco. Continuamos procurando mesmo tendo vários amores. Liberdade? Somos uma liberdade a se realizar. Toda liberdade que conquistarmos será pouco. Ainda seremos transgressores em busca de mais e mais. Se der o pé, vamos querer o braço, do braço iremos pescoço e deste ao corpo todo. Somos matadores. O Céu e a Terra podem morrer juntos que ficaremos para o enterro.

O que procuramos? Imagino que satisfação de viver e realização de nossos objetivos. Temos um nome para isso: Felicidade. A melhor medida para o momento feliz é quando queremos que ele nunca se acabe. O problema é que vivemos em um mundo de relatividades. Tudo é líquido e não há nada que sempre dure. Não há patamares, a fluência é a constante.

Quando às coisas, há vários caminhos. Adaptar nossa vontade à nossa realidade. Aceitar nossos limites e exigir de nós disciplina compatível às possibilidades que possuímos. Querer apenas o que podemos. Por ai se poderá construir harmonia e paz, que dizem, trás felicidade. Outra opção é enfrentar a realidade e lutar para submetê-la às nossas necessidades. Transformar para encontrar satisfação na existência. Construir um mundo melhor para garantir a felicidade.

O maçarico da vida nos mostra quão avassaladora é a nossa experiência pessoal de sermos o que somos. Vivemos esse tumulto, essa sede com fome. Entre o que somos e o que queremos ser, navegam rios e mares. Todos querem ser felizes. Mas navegamos, ou somos forcejados a navegar, à margem e contra o vento. Nada nos é muito favorável.

**

Luiz Mendes

24/10/2015

Ansioso

Cazuza afirmava-se exagerado, eu sou ansioso. Sim, ansioso. E não aconselho a ninguém que o seja. É terrível não conseguir se contentar em estar somente em si. O que fui e o que sou nunca me foram suficiente.

Vivo a tudo ultrapassar sem perceber que estou passando, sem por mim me dar. Ânsia em mim é voracidade de viver. Uma luta enorme contra o tempo. Vou passando dentro do tempo e sei que é ínfima a parcela que retenho. Ele foge ao longe sem que o perceba. Na verdade, me sinto atrasado, meu hoje não se compromete com o amanhã e por isso sempre é ontem.

Poucas vezes sou saciado em minha necessidade de estar naquilo que estou. Anseio engolir o tempo, dar passos além de minhas pernas. Queimar etapas, pular o método. Traio-me como o amante perdido entre tantos amores. Erro sempre que me projeto e sinto saudades do tempo que perdi sem conseguir viver. Tudo poderia ser mais significativo se conseguisse absorver gomo a gomo. Mas absorvo inteiro por não saber fazer diferente.

Desespero-me a viajar outras vidas. Alastrado para viver outros clarões, já que não posso ser muitos e apenas eu. “Onde existo que não existo em mim?” questiona o poeta português Sá Carneiro que depois se suicidaria estupidamente. Minha ansiedade não é mal de todo, embora seja consumição. Às vezes ocorrem ultrapassagens que me enchem de prazer. É quando me transponho a caminho do outro. A outra pessoa; suas grandezas e mesquinharias, riquezas e misérias intransferíveis. Mesmo para amar, amo ansiosamente e quero completamente. É derramamento ao tempo que esponja a absorver todo ar circundante. Liberdade e sufoco, poucos compreendem ou conseguem suportar.

Liberto-me do descompasso, da angústia e do humano que é sofrer em mim. Escapo de minhas seguranças tão duramente conquistadas. Ultrapasso-me quando aceito a vida como surpresa. O que cada fenômeno se revela. Fico na expectativa, todo ansioso, já que cada um pode vir a ser a esperança de preencher de sentido minha ansiedade.

De qualquer maneira, apesar de ansioso, penso e pensar me torna parte do tempo e da paisagem. Pairo, solúvel no ar, compondo, fazendo parte da vida.

**

Luiz Mendes

20/10/2015.

Cenas do Cotidiano

Pendurei-me. O ônibus estava abarrotado de gente. Gente contrariada, nervosa. E assuavam o nariz, esbravejam e disputam cada centímetro de espaço. Uma longa briga. Não podiam se dar ao luxo da educação. Antes, tinham que picar o cartão no horário determinado e sobreviver a cada dia.

No empurra-empurra, quase como um caroço de abacate expelido, cheguei ao cobrador. Difícil até para retirar dinheiro do bolso. O cobrador batia uma moeda no ferro de sua mesa, acelerando: “Um passinho à frente”, dizia. Paguei a contragosto. Devia ser muito bem pago para agüentar aquilo. Fui sendo levado pelo povo que entrava a cada parada do ônibus. Lá fora chovia. O fedor de cachorro molhado só era superado pelo nauseabundo creme que as mulheres usavam no cabelo úmido.

Não dá para comparar aquela compressão com uma lata de sardinha. Na lata, as sardinhas estão ajeitadas com um oleozinho e tudo. Submetido às exigências brutais da vida cotidiana, meu corpo era parte de todos os corpos; um imenso corpo de ferro sacolejante.

À custo, fazendo uso de toda minha habilidade e força, encaixei-me em um vão. Alguém se jogara na correnteza que desaguava na saída do veículo. Recobrando o fôlego, observei as pessoas sentadas. O privilégio dos bancos nos diferenciava. Invejei cada um dos ocupantes. E o ônibus corcoveava, sacudia e embrulhava o estômago. Corria, parecia estar fugindo do inferno tendo todos os demônios atrás. Do lado esquerdo, um sujeito parrudo, através olhares, dizia: “Não empurre, senão…” Lancei olhar de desdém à sua ameaça: “Grande coisa!” Que pensava ele: eu era excelente espadachim de olhos!

Ao meu lado direito, uma moça segurava um pacote rosa que lhe tomava todo tronco. Reparei, puxa, era um bebê! A garota segurava a alça do banco com uma mão e com a outra, aparava sua delicada carga. Automaticamente olhei para os bancos. Ninguém se preocupava com o perigo que corria aquela criança. Vibrei a espada dos olhos como uma metralhadora a derramar balas censoras no povo sentado.

Um rapaz, sentado à janela, pareceu ler meus pensamentos beligerantes. Depois de complexa manobra, posicionou-se em pé. Uma senhora tentou adiantar-se para sentar. Barrei sua passagem acintosa e brutalmente. Com um jogo de corpo, dei inteiro acesso à garota.

Acomodada a garota agradeceu com os olhos, após longo suspiro de alívio. Observei-a lidar com seu bebê. Ela parecia a mais dedicada das mães. Mas seu semblante denunciava preocupação. Estava atenta demais. Sei lá porque, impulsivamente abaixei até a jovem e perguntei:

-O que tem o nenê?

Olhou-me assustada, com jeito de pássaro indefeso. Ao notar meus olhos desarmados, respondeu apressada:

-Nasceu doente. Estou levando ao Hospital das Clínicas para hemodiálise. De dois em dois dias ela necessita de transfusão de sangue. A voz era um fiapo de manga.

Seus olhos ficaram úmidos. Uma doce, estranhamente doce dor, esparramou-se em seu rosto, empalidecendo-o. Havia enorme aflição no que dizia. Aquilo me atingia em cheio, chegava a doer em mim. Acordava uma agonia antiga, escondida pela claridade do dia. Não tinha intenção de me apiedar e muito menos sentir compaixão pôr alguém. Não queria me envolver em dramas alheios. Os meus já estavam pesados demais para mim. E ali estava eu; nu e sem palavras, embaraçado, de repente quase chorando.

A garota voltou aos seus cuidados com o nenê, toda compenetrada. Toda minha humanidade se derramou sobre ela. Eu a senti mãe, como minha mãe. Desejei, do fundo do coração, toda saúde e felicidade do mundo a ela e seu bebê. O ônibus foi esvaziando e pude me sentar também, agora já humanizado.

**

Luiz Mendes

10/10/2015.