Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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Do barro do chão

Gravatá, 26 de agosto de 2015. Meia noite.

“Um passo à frente

E você não está mais no mesmo lugar”

(Chico Science)

 

Talvez eu nunca soubesse a grandeza disso tudo. Talvez nunca ouvisse a risada de J.Borges, nunca visse Lula Vassoureiro dançar frevo e fazer máscara de papangu na minha frente, com a habilidade de menino danado que limpa a mão na bermuda.

Eu vi, e estou decidindo ainda o que e como contar pra vocês.

Memorial J.Borges - Bezerros/PE

Memorial J.Borges – Bezerros/PE

Alguns muitos quilômetros de casa e conheço dois patrimônios culturais vivos do Pernambuco, perambulando entre Bezerros, Gravatá e Caruaru – nome sonoro da cidade de vento frio que esconde, discretamente, ondas de baião, xaxado e xote em cada esquina.

É como se deus irradiasse uma forte energia.

casa-museu Mestre Vitalino - Alto do Moura / Caruaru

Casa-museu Mestre Vitalino – Alto do Moura / Caruaru

Foi ali que caminhei pelo Alto do Moura, onde famílias inteiras vivem da arte que vem do barro do chão. Mestre Vitalino, Zé Caboclo, Eudócio e Galdino. As histórias parecem tiradas de um cordel de enredo fantástico – o vigilante que sonhava com figuras esquisitas, pegou um bocado de argila e deu rostos a elas – mas é tudo verdade, é tudo do agreste, é tudo nordeste.

A mistura de fantasia e arte estende-se até o bairro histórico da Várzea, próximo a Recife, onde o “mestre dos sonhos” construiu seu templo sagrado: a oficina Brennand, levantada nas ruínas de uma velha olaria, fundada em 1917. De suspensório, bengala e barba de nuvem, Brennand estava lá. Pôs-se a falar, flutuou nas palavras e contemplou o silêncio. Sumiu tão mágico quanto apareceu.

“Será se isso aqui é inexistente?”, a voz dele ficou no ar.

Na minha mente, canto gregoriano e baião fazem um mashup que só mesmo o Pernambuco, bruto e polido, poderia oferecer.

vem debaixo do barro do chão

vem debaixo do barro do chão

Debochados desvalidos

Sejam todos bem-vindos à República dos Desvalidos! Uma trupe mambembe anuncia a inauguração de mais um conjunto habitacional com pouca nobreza e desassistido de tudo. Ali, como bem nos apresentam os personagens, se vive com o pé na lama. Mas mesmo na lama se acha algum brilho.

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

Montagem do Grutepe para o texto de 1986 (Foto: Mauricio Pokemon)

A peça teatral parte da busca dos moradores do fictício Itararé por melhorias na comunidade. Todos os personagens do subúrbio estão ali: o bêbado, a lavadeira, a dona de casa, o líder comunitário e a filha que volta de viagem cheia da pose mas também está na miséria. Tudo isso é revelado com muito bom humor e leve pitadas de drama. “Aqui tudo é uma mistura de desgraça com deboche”, diz Joana Maria em uma das cenas.

República é uma peça de José Afonso Lima, dramaturgo piauiense, e estreou pela primeira vez em 1986. Agora, quase 30 anos depois, o texto volta em nova montagem do Grupo de Teatro Pesquisa – Grutepe, com direção de Arimatan Martins e composições de Aurélio Melo – sim, trata-se de uma comédia musical, extremamente bem conduzida pela sonoridade do maestro que volta e meia cai em cena com os atores num misto de improviso e descontração.

O cenário traz soluções simples e de belo efeito visual – o palco às vezes vira rua, praça, inauguração de um centro na comunidade ou mesmo a sala da casa de dona Joana. Lari Sales, Vera Leite, Eliomar Vaz Filho e Fábio Costa já estavam no antigo elenco. Em 2006 entraram Bid Lima e Marcel Julian. A novidade nesta versão está na beata Marta Carvalho, interpretada por Edithe Rosa.

Crítico e cômico, o texto satiriza da religião as políticas habitacionais do governo. “Itararé é um privilégio nacional. Podia ser em qualquer canto do Brasil”, diz um dos personagens pouco antes de entrar em cena uma releitura da lenda mais conhecida – e sempre atual – do nosso folclore: o pescador que mata a mãe por não ter o que comer. Mais uma vez a miséria dando o tom.

Desbocados e bem piauienses, todos os personagens trazem um drama pessoal – destaque para o canto da lavadeira, a mais radiante e alegre personagem, que conta ter perdido o marido e três filhos para o rio em momento comovente. Nessa hora é Lindalva, a jovem meio patricinha da favela que surpreende ensinando a vizinha: “A dor ajuda a alimentar a alma”, diz, consolando. “Se a gente fraquejar é que a coisa desanda de vez”.

FestLuso –
30/08 | Theatro 4 de Setembro | 20h30
(Entrada franca)

Deus é música

Sempre que eu gosto muito de um cantor/cantora/escritor/artista, eu imagino que barato seria ser amiga dessa pessoa. Sentar pra bater um papo com Manoel de Barros na sua oficina de desocupação. Tirar uma selfie com Caetano de cueca. Ligar para Gal pra saber o que é que há. Jogar futebol (eeeeu?) no sítio dos Novos Baianos. Essas viagens.

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Mãe e filho no show “Baby Sucessos – A menina ainda dança” (2014)

Algumas, que é o caso de quem vou falar agora, eu congelo no tempo, no meu desejo medonho e egoísta de ter sido sua contemporânea: Baby Consuelo. Acontece com a Gal também, eu não sei, eu queria ser sua amiga de praia em pleno os anos 70, show Fa-tal, píer de ipanema, etcétera e tal.

Mas eu não sei se bateria o mesmo lance que eu tenho certeza que bateria com Baby. Eu queria ser aquela amiga que a convidou para fugir de casa. Pintaríamos, juntas, os cabelos. E eu veria sua meia dúzia de filhos nascer – quem sabe seria tia-madrinha da Buchinha, ou botaria Zabelê para dormir cantarolando “Acabou chorare”.

Loucuras à parte, tudo isso é só para dizer que nada me tocou tanto, artisticamente, nos últimos tempos, do que o show “Baby Sucessos – A menina ainda dança”. Eu não queria que isso aqui se transformasse em “crítica de disco”, longe de mim. Mas quero tentar ser clara e precisa sobre tudo que senti vendo/ouvindo esse DVD (que aliás, assisti 4 vezes em dois dias).

Baby sempre esteve na minha memória musical porque minha mãe sempre gostou muito de cantar – e meu pai tocava algumas coisas do Moraes Moreira, mas ambos desprezavam um pouco a parte Novos Baianos, que vim conhecer e curtir na adolescência. Depois veio o Pedro Baby, quarto filho de Baby e Pepeu Gomes, que eu conheci tocando com a Gal – é ele o responsável por aquela parte que todo mundo chora, no Recanto, com o solo de Vapor Barato.

Aconteceu (pelo menos é como eles contam), que Pedro teve a sacada de convidar a mãe para um show revivendo seus grandes sucessos. Baby, que há décadas não cantava nenhuma daquelas músicas (ela virou pastora, ou “popstora”, como ela diz), precisou consultar o senhor seu deus para conseguir o aval, mas ele já estava na voz do Pedro: “Você acha que deus não ia querer ver um filho tocando com sua mãe?”

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Baby e 4 dos 6 filhos. Cantou no Rock in Rio em 85 com barrigão de oito meses.

E ela foi. E o show é simplesmente LINDO. Pedro convidou uns amigos (Betão Aguiar, no baixo, é filho de Paulinho Boca de Cantor), montou o repertório e é quem dirige o show. Escolheu a dedo as canções e, mesmo mantendo os arranjos originais, pareceu dar cara nova a tudo. No set, algumas que eu amo de paixão (A menina dança, Tinindo Trincando) e todo o lado esotérico de Baby. Ela quis acrescentar o gospel e ele, enfático: “Mãe, repare bem nas suas letras e me diga se não há, em todas elas, uma presença divina”.

Sinto mini arreperios quando ele transforma os versos de “Planeta Vênus” em “Estamos com saudade, Baby” e a plateia, quase totalmente tomada por pessoas da minha geração, que nunca tinham visto a cantora mais porralouca do Brasil cantando aquilo, grita eufórica. É muito bonitinho também quando ele toma um afoxé da mão da Baby em “Sorrir e cantar como Bahia” (essa não entrou pro DVD, mas tem demais no Youtube) e tira ela pra dançar. Apenas muito, muito amor.

Pra ficar tudo ainda mais amorzinho, em setembro, Pepeu Gomes se junta a eles e o trio, então, vai se apresentar no Rock in Rio. Tudo em família. Queria, assim, pra minha vida.

E Baby continua lá, cantando rouquinha, doidinha, menininha. E Pedro, na sua timidez destemida, toca demais. Agradeço por ter insistido na ideia de trazer Baby de volta de matrix (hahaha) para a gente. No fundo eu sempre soube que, em algum lugar por aí, a menina ainda dança.