Do outro lado da linha, a voz de locutor questionava o motivo da minha ligação. “Peguei esse telefone numa placa com anúncio de diversos serviços. É você que trabalha com tudo isso?”, perguntei. Sim, era o Evandro. Proponho marcamos uma entrevista com o objetivo de conhecer sua história de vida – e a da placa. “É uma pegadinha, não é?”. Não era.

 

A placa em frente a casa do Evandro foi pintada por ele mesmo e trás letras vermelhas num fundo branco destacando 15 funcionalidades do mesmo Evandro. Apesar do plural em “trabalhamos”, não há equipe. Você demorou anos para se especializar em design? Meses para assumir um cargo de gerência empresarial? Pois o Evandro, 27, é tudo isso e mais um pouco que não coube no anúncio.

Evandro Lopes da Silva nasceu no município de José de Freitas, mas vive desde a infância numa casa construída pelos pais no bairro Monte Horebe, zona sudeste de Teresina. Hoje, apenas um casal de gatos divide com ele os seis cômodos da casa que faz às vezes de escritório, estúdio, sala de entrevistas, marcenaria, locadora de filmes e, nos últimos meses até um restaurante improvisado. É na sala ampla e praticamente sem móveis que Evandro nos recebe. “Eu fiquei ansioso e preocupado com essa ligação. Mas relaxei depois. Pesquisei tudo sobre a revista de vocês na internet”, confessa com ar de investigação. “Detetive particular. Faço também, faltou botar aí”. 

A história é longa, pra quem já fez/faz tantas coisas na vida. Aos 13 anos, Evandro se interessou por música. Confeccionou, sozinho, seu primeiro instrumento: um cavaquinho, com madeira e cordas de cabo de aço tiradas de uma bicicleta e tarraxas de uma cama velha. “Mas eu não sabia tocar”, confessa. Autodidata, começou pela percussão e lembra da primeira vez que tocou um triângulo. De lá para cá não parou: violão, guitarra, contrabaixo, bateria, um cavaquinho novo – agora comprado numa loja – e um repique de mão que ele fez com puxadores de móveis e napa de cobrir sofá. O corpo é de uma lixeira de inox. É o único instrumento ali da marca Tramontina. 

Apesar do gosto por música, nem nisso Evandro resolveu se aquetar e seguir carreira. “Eu não gosto de rotina, tédio. Gosto sempre de tá fazendo coisas diferentes”. Com a música, Evandro segue dando aulas particulares e tocando em bancas como substituto. Até nisso ele é freelancer. “Posso ser o reserva em qualquer instrumento, na hora que precisar”. 

Das cerca de 15 “especialidades” do Evandro, não há dúvidas de que “montador de móveis” é a mais solicitada. No próprio bairro onde mora estão seus principais clientes. “Me chamam mais para montar  guarda-roupa”, afirma. É no atraso das lojas de móveis que Evandro faz a clientela. “Tem gente aqui no monte que passa um mês esperando o montador da loja. Não aparece, eles vem desesperados até mim”. 

Todas os serviços oferecidos na placa de Evandro tem parte da sua história de vida por trás. A placa é uma espécie  de currículo, com experiências e qualificações. O curso de Gerenciamento de bares, restaurantes, pousadas e pequenos negócios, feito há 4 anos no Senac, garante o tópico “gerência de empresas”. O mesmo vale para os cursos de eletricista e bombeiro, todos com certificado, garante. A experiência atendendo no quiosque de um clube na adolescência, abriu mais duas portas: garçom e churrasqueiro. Com a carteira de habilitação, veio o freela de motorista particular. A moto que tem serve para o bico de moto táxi, de vez em quando. Trabalhou numa loja de material de construção onde, embora não fosse vendedor, diz ter aprendido técnicas de venda. Pega CDs, DVDs e MP3s piratas para revenda. Em Brasília, onde passou três meses, trabalhou numa indústria de móveis planejados. Foi quando resolveu acrescentar design de interiores ao currículo de compensado.

Desempregados e autônomos reclamariam das épocas de baixa no mercado de trabalho. Para Evandro, não tem tempo ruim. “Eu nunca fico parado. Estou sempre tendo visão e planejando novos trabalhos. Botar currículo para ficar esperando ser chamado? Talão de luz e água não espera”, justifica. Alguns serviços oferecidos pela placa, despertam curiosidade. É o caso dos tópicos “acompanhante para viagem”, “dicas de empregos” e “dicas de entrevista”. Evandro explica, sorrindo: “acompanhar alguém que vem do interior para fazer consultas, por exemplo, é um ‘acompanhante de viagem’”. “Dicas de emprego”, por sua vez,  funciona como indicações para uma vaga de trabalho.“Leio muito jornal  e anúncios, e sou bem relacionado, então, quando me perguntam se eu sei de algum lugar que está precisando de uma cozinheira, de um mecânico, vendedor, ou etc, eu quase sempre tenho uma indicação”. Já as “dicas de entrevista”, refere-se a entrevistas de emprego – o terror dos candidatos. “Esse é famoso. As pessoas me procuram porque ficam nervosas antes de se apresentarem para disputar uma vaga. Eu estudo o perfil do candidato, analiso a vaga, e aconselho a roupa, os gestos, como deve falar e se comportar para conseguir o emprego”, diz ele que, atua então como conselheiro e costuma cobrar 15 a 20 reais pela consulta. “Mas sou sempre muito franco. Em alguns casos não dá pra fazer milagre”. 

 

Com fala rápida e bom humor, Evandro discorre sobre técnicas, planejamento, habilidade e visão de mercado – muitas vezes baseado em suas próprias teorias e análises. Confiante, garante ser bom em tudo que faz – e não consegue eleger a atividade preferida. Entretanto, não gosta muito dos trabalhos noturnos (o último foi como segurança em um show) , é contra acordar cedo, diz cozinhar bem – há um mês começou a vender espetinho e misto-quente na porta de casa – e nos momentos de lazer gosta de ouvir música e assistir filme. Não tem tempo para relacionamento sério. Não bebe, não fuma e é fã do Roberto Justos. 

“Sou aquela pessoa que todo mundo gostaria de ter por perto: o famoso quebra-galho”, diz enquanto serve bolinhos com coca-cola para nossa equipe. Ele mesmo providenciou – e planejou – o lanche, como faz questão de contar. “Levei em conta o dia a dia de vocês, que, imagino, deve ser corrido, e concluí que não podia ser nada muito pesado como um salgado ou fritura. Então escolhi os bolinhos. E a coca, pra ajudar na digestão”. “Como você aprendeu tudo isso, Evandro?”, eu pergunto. “Sempre tive essa facilidade de pegar as coisas rápido, sou muito observador, atencioso, presto atenção aos sinais, entendo, interpreto, e guardo isso para mim. Sei que vou usar algum dia.”. Ele levanta, vai pegar os copos na cozinha. Por uma brecha na parede, percebo que me observa. “Posso confessar uma coisa?”, ele pergunta e, sem pausa, completa: “Eu estou analisando você”.

 

(Originalmente publicado na Revestrés#09, em julho/agosto de 2013)