“Partindo hoje para ganhar o mundo. Quem quiser me encontrar, vai ser por aí”. O anúncio no banner do perfil de Facebook da aposentada Josefa Feitosa, 62 anos, foi uma decisão tomada em meados de 2008, quando passou a fazer economias para realizar seu maior sonho: viajar pelo mundo. Aposentada em 2016, avisou à família que ia viver onde a mala está.

Jô, como é conhecida, se define como mulher preta, vidóloga, que ama gente “por atacado e varejo”. No auge da sua sexta década, esbanja felicidade ao falar sobre suas viagens. Foi de uma casa alugada em Rio Branco, no Acre, que contou para Revestrés como estava aproveitando os dias para conhecer mais o Brasil, pois não conseguiu atravessar a fronteira de Bolívia e Peru por conta da pandemia.

Em viagem pelo Nepal

Cearense de Juazeiro do Norte, antes de ter os carimbos oficiais de 48 países no passaporte levava vida oposta à liberdade que encontrou nas viagens. Josefa era Assistente Social no sistema prisional em Fortaleza, capital do Ceará. Dos 28 anos de trabalho, os três últimos foram dedicados a lutar pelo direitos das mulheres transexuais e por melhores condições nas cadeias do estado. Desenvolveu projetos sociais com as detentas, como o fanzine “Só Babado”, em que relatava a rotina do presídio, e também produziu um documentário, recebendo convite para apresentá-lo em Portugal – e atendendo a esse convite.

Sair da rotina e viajar sempre fez pulsar forte o coração de Josefa. “Meu pai me perguntava o que eu queria ser, e eu dizia que queria ser passageira, porque achava que passageira era a pessoa que ganhava dinheiro, vivia bem, viajava”, conta, relembrando a época em que visitava a estação de trem e sonhava ir embora da sua cidade.

Em Fortaleza estudou, conseguiu emprego, casou, teve filhos. “Eu seguia todo aquele ritmo, mas tinha vontade de sair, sabe?”. Teve um casamento conturbado, desfeito após 8 anos, criou três filhos e tem um neto.

Quando decidiu viajar pelo mundo, começou a viver com orçamento limitado. “As pessoas diziam: ‘olha, tu é preta, vai ter problema’, ‘tu é preta e não sabe falar outra língua’, ‘precisa de muito dinheiro’. Eu ficava naquela loucura de guardar dinheiro. Quando eu tava naquele desespero que era minha vida – de casa, trabalho e cobrança demais –, sonhava em viajar”.

Santuário dos Elefantes, no sudeste asiático

A aposentadoria veio em meio a uma rebelião no presídio. Quando começou a viajar pelo Brasil, passou 10 dias num barco entre Belém e Manaus. Depois foi para São Paulo e Paraná. As primeiras viagens foram em pacotes turísticos, mas essa forma passou a lhe incomodar. “Nos pacotes, comecei a não querer fazer alguns passeios e sentia falta de conhecer o centro das cidades”, conta.

Em 2017,  após passagem por Portugal para falar de seu documentário, fez a primeira temporada na Europa, conhecendo também Suíça, Espanha e Alemanha. Sem falar inglês, em Munique teve seu primeiro grande perrengue. “Eu perdi o trem e fiquei desesperada. Munique era muito louca, grande, movimentada, e eu não sabia nem por onde andar. Foi aí que realmente percebi que precisava fazer um curso de inglês”.

Para se manter legal na Europa e estudar, passou cinco meses na Irlanda. Morou na casa de uma família em que o anfitrião era brasileiro, e aprendia inglês enquanto cuidava das duas filhas dele e assistia desenhos na TV. “Fui aprendendo tanto com as crianças que abandonei a escola”, diz aos risos. No tempo livre, arrumava trabalhos extras que ajudavam a custear viagens para Bélgica, Londres e Paris.

“Tenho meu dinheirinho, gasto comigo. Nem sempre posso fazer tudo, mas as coisas que quero fazer, economizo e dá certo. Deu para sobrevoar o Everest [montanha mais alta da Terra]”, diz, emocionada. Com a renda da aposentadoria e aluguel do apartamento em Fortaleza, arcou com os custos para conhecer a maioria, mas também adotou o minimalismo para viajar mais. “Aprendi a comer melhor. Você come a comida mais natural, até porque não tem muito dinheiro para ficar comendo carne por aí”, explica.

“Avó não foi feita para cuidar de neto”

Jô ficou conhecida na internet em 2019, após uma frase sua viralizar: “Avó não foi feita para cuidar de neto” – dando título a uma notícia veiculada pela BBC Brasil. A matéria foi compartilhada pelo humorista Whindersson Nunes no Twitter, brincando com a situação das mães que dizem “qualquer dia vou sumir” e ninguém acredita até que, 40 anos depois, ganham o mundo – como Josefa. A frase ganhou repercussão em outros países, como Colômbia, Equador e Argentina.

Para Jô, as pressões sobre a mulher se estendem pela vida inteira. “Após certa idade, ainda dizem: ‘tá velha e não sabe de nada’”

Jô acredita que as pressões sobre a mulher se estendem pela vida inteira. “Após certa idade, ainda há o preconceito de pessoas que dizem: ‘tá velha e não sabe de nada’”, comenta. “É muito cruel. Além disso, ainda há obrigações com netos, pois os filhos casam e separam e voltam pra casa trazendo netos, que muitas vezes ficam sob a responsabilidade da avó”.

Ela conta que a filha Isabel Feitosa teve um filho cedo, aos 17 anos, e garante que, à época, deu o suporte que a filha precisava. “Amo demais meu neto. Mas  fiquei com ele quando estava com tempo e disponilidade”. Fala que ganhar o mundo melhorou até a relação com os filhos.“Não queria que meus filhos tivessem preocupação com minha velhice. O começo foi difícil. Minha filha dizia: ‘aqui foi o contrário:  minha mãe é que deixou o ninho vazio’”. Josefa se desfez do imóvel que alugava e passou tudo que tinha para os filhos. Sua única preocupação é o próximo destino.

“O mundo é muito grande para você ficar apenas em um lugar”

 

 

 

 

A lacuna deixada em casa passou a ser preenchida com relatos das viagens para a família, através de cartas. A filha Lilith Feitosa sugeriu à mãe que publicasse fotos no Facebook. Josefa, mesmo tendo dificuldades para usar redes sociais, começou a compartilhar a experiência. Mas as fotos não tinham foco e a filha chamava sua atenção. “‘Mainha, que diabo é isso que tu botou aqui?’ E eu respondia: ‘Minha filha, estou em Londres’. E lá vinha ela com o sermão: ‘Mãe, tanta coisa pra você ver em Londres, você vem botar uma porta, uma calçada, uma plantinha’”, gargalha.

A relação com a internet cresceu à medida que Jô foi ficando conhecida. Isso lhe rendeu entrevistas no programa Encontro, com Fátima Bernardes, algumas participações em publicidade e parcerias. No entanto, ser uma “vovó influencer” de viagens não era sua pretensão. Recusou trabalhos por não fazer parte da sua filosofia viver em função da internet. “Venho tentando ser uma pessoa, aí vem alguém dizer que sou um produto?! Não quero isso pra mim. Abandonei essa história e fiquei com esse ranço”, conta sobre o que disse a uma ex-agenciadora do seu perfil do Instagram: @joviajando.

“O mundo é minha escola”

Com colegas de hostels, Jô aprendeu como usar o celular para se desenrolar pelo mundo. “No início não sabia olhar mapa, não sabia comprar passagem, dependia das pessoas”, relata, acrescentando que adota netos por onde passa e considera o mundo sua maior escola.

Com mulheres da aldeia Ifugão, nas Filipinas

Em relação às barreiras com os idiomas, lembra como passou sufoco no Egito ao tentar explicar que queria chegar às pirâmides. “Eu parti para a mímica, mas fui mal interpretada”, conta aos risos.  Em sua passagem por 18 países do continente africano, Jô foi presa no Quênia, após ser confundida com refugiados. Sem celular, esquecido no hostel, só após uma noite angustiante conseguiu ajuda para sair. “A gente que é viajante é muito protegido, aparece anjo demais. Já entrei em casas sem saber falar nada, fiquei uma semana e ainda ganhei presente! Na Índia, morei com uma família”. Tantos aprendizados ela compartilha também em eventos, como no Encontro Brasileiro de Mulheres Viajantes, realizado em março, em São Paulo, pela jornalista e turismóloga Gilsimara Caresia.

Jô é inspiração para as pessoas que lotam de comentários suas redes sociais. Ela já trocou a mala de rodinhas por mochila, teve romance na estrada, retoca o azul do cabelo quando pode e soma mais de cinco anos percorrendo o mundo. Em sua lista de destinos dos sonhos, diz já ter riscado todos – embora siga montando um roteiro para conhecer a América Latina, quando a pandemia amenizar. “O mundo é muito grande para você ficar apenas em um lugar”, finaliza.

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Publicado na Revestrés#51. 

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