“Moradores preparam boneco para malhação e o batizam de Temer”, dizia a manchete em uma página de jornal do dia 16 de abril. Arrancada abruptamente, ela virava agora lençol para uma garrafa de Antárctica a poucos graus célsius de congelar. Cilindricamente, a garrafa manchava o papel – borrando o boneco Temer desengonçado na fotografia . “Meu pai que criou essa moda”, diz o gentil rapaz atrás do balcão. “Há quem diga que funciona como isolante térmico”.

Cosme tem, pelo menos, 30 anos do lado de lá do balcão. Ele já nasceu ali, no “Bar e Mercearia São Francisco”- este é o nome que aparece na placa, acima do telhado desgastado, sucessor do antigo teto de palha. No cruzamento da rua das Rosas com a avenida Dom Severino, ergueu-se um templo da boemia e da resistência: o bar do Zé de Melo.

Foto: Maurício Pokemon

Foto: Maurício Pokemon

Era metade dos anos 1970 quando José de Melo Lira chegou por ali, acompanhado da esposa, Maria de Lourdes. Ele, vinha da Meruoca, região entre Teresina e o município de União. Ela, de Aprazível, em José de Freitas. Se conheceram quando ele era “cabo de turma”- o chefe que botava ordem nos vaqueiros e trabalhadores rurais. Vieram para a capital por oportunidade de trabalho – Zé de Melo comandava uma vacaria onde o serviço ia de botar ração a tirar leite de gado.

Nos resquícios do coronelismo que caracterizava a vida interiorana, a primeira missão foi coordenar o trabalho dos peões na construção do bairro Morada do Sol – o conjunto de casas começava a surgir urbanizando a região antes tomada por chácaras e fazendas. Difícil imaginar esse cenário hoje enquanto a conversa é interrompida por buzinas de carros e fumaça numa das avenidas mais movimentadas da cidade. “Quando eu cheguei aqui, da Kennedy à Homero era tudo piçarra e arame farpado”, diz o senhorzinho de cabelo de algodão e óculos com armação grossa (ele parece o senhor Fredericksen do flme Up – Altas aventuras). Não havia casas, não havia comércio. E ali Zé de Melo montou o seu rancho.

“Botamos o bar para atender os operários da construção, os caminhoneiros e viajantes”, relembra hoje, aos 85 anos. “O camarada bebia cachaça, comia uma rapadura e caía no mundo”. Assim, da casa simples com janelinha para a rua, surgiu a necessidade do bar. Mas nem só de operários sustentavam-se as vendas. “Cansei de vir da farra de madrugada, com amigos, batia na janela e dona de Lourdes preparava um bife acebolado pra gente”, diz Sena Filho, um dos clientes mais antigos do local (qualquer semelhança de sobrenomes entre ele e a repórter que aqui escreve não é mera coincidência).

Os anos foram passando e Zé de Melo, de mercearia, recebeu o status de confraria. Pessoas de classes sociais distintas e com estilos de vida completamente diferentes se reúnem ali aos sábados à tarde, seja pela cerveja gelada a cinco reais no coração da zona Leste, ou pela roda de chorinho que se forma embaixo de uma árvore ao cair da tarde. Alguns sentam na calçada, outros pedem no balcão. “Tem cliente aqui que vem religiosamente todos os sábados há 40 anos”, garante o proprietário que, além de amigos, cultivou ao longo do tempo uma fama de mau. O mal-humorado favorito dos boêmios é personagem principal de muitas histórias no melhor estilo seu Lunga de ser. “A minha formação é essa, eu fui criado assim”, defende-se. “O bebo que abusar eu ponho para fora”.

Zé de Melo cedeu o comando do balcão para o filho Cosme (gêmeo de Damião), com muita luta. Ele estudou sociologia e teologia, mas a matemática aplicada foi o que sobressaiu na hora de fechar o caixa. “Papai não queria que a gente se envolvesse com o comércio, era proibido cruzar aquela porta”, diz, apontando para a passagem que divide a casa da família, aos fundos, e o balcão do bar. O lado mercearia não deixou de existir nem com a chegada dos hipermercados que vendem de cebola a celular – atrás do Zé de Melo há uma unidade do supermercado Extra, mas ele garante que a freguesia do caderninho segue fiel como nunca.

Naquele sábado de julho, um cliente pedia a Cosme um cigarro, outro comia um pastel quase cativo daquela estufa e Zé de Melo dividia a mesa com um bicheiro frequentador assíduo do local. O ambiente é estritamente masculino, mas existe uma teoria que um cliente que apostava ali no burro pausa, para revelar: “Não é que aqui não ande mulher”, ressalta. “É que as mulheres que aparecem não são as dos homens que andam aqui”. A turma ri da piada longe de qualquer problematização.

Zé de Melo até se ofende se você perguntar o quanto ele quer para mudar-se dali – a última oferta estava na casa dos três milhões, com plus de um lugar para morar nos próximos dez anos. “Não tenho interesse”, afirma categórico. Dono de alguns dos metros quadrados mais valorizados da região, observou muitos negócios ao redor – inclusive mais sofisticados, como o MPBar – terem seu apogeu e declínio. A internet diria que não há espaço, ali, para barzinho nutella. E Zé de Melo, totalmente de raiz, resiste.

(Matéria publicada na Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017)