Na noite daquele 11 de dezembro milhares de telespectadores estavam na frente da TV esperando o prato sair. O jantar era servido em rede nacional, na Band, onde três cozinheiros se enfrentavam na semifinal do programa MasterChef Brasil – a versão samba e caipirinha do reality show de culinária que conquistou o mundo. Nunca uma panelada valeu tanto como naquela noite.

Luis Henrique, finalista do 1º Masterchef Brasil (foto: Mauricio Pokemon)

Luis Henrique, finalista do 1º Masterchef Brasil (foto: Mauricio Pokemon)

Quem assistiu acompanhou a aflição de Luis Henrique – o piauiense que decidiu fazer das tripas coração (com o perdão do trocadilho) para transformar a panelada em um prato que agradasse aos chefes “carrascos” do programa. Na prova, que valia uma vaga na final, ele arriscou: escolheu a parte mais difícil entre as opções e investiu numa receita que, embora nossa velha conhecida, era nova e ousada para os jurados. Para ele, claro, não foi novidade: a vida do Luis sempre foi de riscos. Fez vestibular para Matemática aos 18 anos, desistiu, quis estudar designer, mudou-se para Brasília, foi parar num tribunal na cidade de Manaus. Aos 32 anos, viu a notícia do MasterChef em um site de fofocas de TV. Pensou que podia inscrever-se. Desistiu de novo.

“Eu sempre ficava assistindo esses programas e pensando: se eu estivesse lá, faria uma panelada”, me conta o MasterChef piauiense, na banca da Paixão, mercado da Piçarra, Teresina. O endereço é um espaço de memória. “Vim muito aqui depois de festa, com os amigos, aos 20 e poucos anos. Ou mesmo ainda garoto, fazer compras”.
Era o Luis que fazia a feira da casa onde morava com a mãe e os três irmãos. Cresceu entre mercados e a fazenda do pai, em Valença, onde passava férias. Conhecia a terra, o cheiro, as cores, os sabores. Aprendeu a ler em livros de culinária. “Naquela época toda dona de casa que se preze tinha que ter seus cartões de receita”, lembra. “Minha mãe não cozinhava nada, mas colecionava esse livros”.

 A primeira lembrança que tem de si mesmo na cozinha foi aos oito anos, fazendo traquinagens gastronômicas. Ali ele misturou abacate com rapadura, Mucilon com caldo de carne e paçoca com açúcar. “Eu fazia uns acidentes, de vez em quando prestava alguma coisa”, diz, enquanto esperamos o almoço. Depois de quase dez anos fora, ele volta ao mercado, a convite de Revestrés, para comer a famosa panelada da Paixão. “Olha, o rapaz do MasterChef!” – nosso papo é interrompido pelo grito de uma mulher. Um casal vai ao encontro de Luis cumprimentá-lo. “Eu torci muito por você, acho que você foi o melhor, merecia ter levado”, diz o rapaz. “É, mas acho que foi justo. Elisa é muito talentosa”, diz Luis, agradecendo aos elogios com algo entre a timidez e o orgulho.

Panelada da Paixão, famosa no mercado da Piçarra, em Teresina-PI.

Panelada da Paixão, famosa no mercado da Piçarra, em Teresina.

Voltamos para julho de 2014, quando Luis estava frente à tela do computador, indeciso sobre mandar ou não sua ficha de inscrição para a Band. “Foi respondendo ao questionário que eu percebi que tinha um perfil”, conta. Na despensa de Luis não tem biscoitos nem enlatados. Miojo é assunto proibido e molho pronto, há uma década, não dá as graças por ali. Após decidir parar de se auto-boicotar – nas palavras dele – enfim, inscreveu-se. “Cheguei à conclusão de que eu não ia aguentar ficar em casa assistindo e pensando ‘poderia ser eu  ali’”. Após três etapas de seleção, lá estava Luis, driblando mais de cinco mil inscritos para chegar até a cozinha mais espiada do país.

 Mas, do inscrever-se até chegar ao dia da final, o chefe piauiense protagonizou cenas de um roteiro mambembe e atrapalhado. “Minha vida é cheia de histórias malucas, e o MasterChef é só mais uma delas”, diverte-se. A seleção final reuniria 300 cozinheiros no estádio Pacaembu, em São Paulo, todos levando um prato feito de casa – no caso do Luis, a casa ficava a mais de três mil quilômetros de distância. Era preciso ser estratégico e talentoso para não levar aos chefes um prato frio e com cara de dormido. “Minha saída era meu irmão que mora em Brasília e podia me dar um auxílio. Em compensação, ele não tinha uma panela”, relembra. Sim, o prato que Luis apresentou aos chefes no primeiro dia de programa foi feito em uma ponte aérea Manaus-São Paulo, com escala de oito horas na capital federal. Para completar, a companhia perdeu suas malas, com mais panelas do que roupa. “No programa eu apareço quase sempre com as mesmas camisas. Juntei tanta panela e utensílios que esqueci das roupas”. O cardápio escolhido foi um ragú de linguiça mineira, com vinho branco e cuscuz de milho para acompanhar. Levou no avião o prato distribuído em compotas bem armazenadas, só no ponto de montar. “Foi o que deu pra fazer naquela circunstância, mas apesar de aparentar simplicidade, usei uma técnica de cocção para impressionar os chefes, e acho que funcionou”, comemora, como se revivesse tudo. Os jurados saíram entregando colheres para os selecionados. “Quando o Fogaça me deu aquela colher de pau, a viagem começou a melhorar”.

 Dali em diante, após conseguir sua vaga na competição, seriam meses em um hostel na Vila Madalena, dividindo quarto com turistas americanos que foram ficando por ali desde a copa. “Eram 12 horas diárias de gravação na Band, eu praticamente tinha tempo só para dormir e voltar para a TV no dia seguinte”, diz Luis, que deixou para trás o emprego fixo (pediu licença não remunerada) e a esposa grávida. “Toda prova que eu vencia era um misto de alegria e desespero. Eu queria continuar, mas me sentia culpado por não estar em casa”.

Luis: “Eu ficava assistindo e pensando: se eu estivesse lá, faria uma panelada”

Luis: “Eu ficava assistindo e pensando: se eu estivesse lá, faria uma panelada”

 Até que, finalmente, chegamos ao grande dia. Mais conhecido como o dia em que o Luis fez os chefes durões se renderem a sua panelada. A prova, que valia uma vaga na final do programa, dava aos concorrentes o desafio de preparar um prato sofisticado com as partes menos nobres do boi. Ao ver as opções de carne disponíveis (coração, fígado, bucho e língua), Luis nem pensou duas vezes. Para a surpresa dos chefes, agarrou-se ao bucho e foi cozinhar. “Era a hora de imprimir o nome do Piauí ali”, pensou. Ao longo dos 17 episódios Luis ficou famoso por apostar em ingredientes regionais, que resultavam em pratos bonitos e sofisticados. Ele passeou sua brasilidade que vinha de Minas, Manaus, Pará, Brasília, mas faltava alguma coisa, algo que vinha da memória de infância, das lembranças de Valença, do mercado, da Paixão. “Foi uma das provas mais difíceis, sobretudo pelo critério rígido de avaliação dos jurados”, acrescenta. “Mas eu estava decidido que faria aquilo. Se eu fosse eliminado por causa da panelada, mesmo assim, valeria a pena”.  Assumido o risco, Luis arrumou alguns problemas: servir era um deles, uma vez que os participantes ficam esperando sua vez de apresentar o prato aos chefes, com a comida pronta – mas panelada, como sabemos, não é um prato que se come frio. “Aquele caldo dela é uma emulsão entre o colágeno, água e gordura, ele deixaria um aspecto ruim”, explica. O outro e, talvez, mais grave problema, era a rejeição declarada do chefe Fogaça a dobradinhas e afins. No episódio, Luis repete decidido: eu vou fazer o Fogaça mudar de opinião comendo essa panelada.

Após toda a tensão, Luis foi aprovado pelos chefes, ao experimentarem seu “ensopado”. Fogaça comeu sem fazer careta. O francês Jacquin sugeriu vinho para deixá-la menos gordurosa. Deu briga no estúdio pós-gravações para ver quem comia a tal da panelada do Luis. Paola, a jurada argentina, disse que Luis era uma mistura interessante de humildade e confiança. “Eu sempre arrisquei demais. Preferia perder ousando do que ganhar fazendo sempre o comum”, analisa Luis, passado o episódio.

Com Paixão, dona da banca mais famosa do mercado na zona sul de Teresina. (foto: Mauricio Pokemon)

Com Paixão, dona da banca mais famosa do mercado na zona sul de Teresina. (foto: Mauricio Pokemon)

A mesma ousadia que levou Luis ao programa pode ter sido responsável por sua derrota no dia 16 de dezembro. Ele foi eliminado na primeira prova da final, ficando em terceiro lugar na disputa por 150 mil reais, um Fiorino refrigerado, a publicação de um livro com suas próprias receitas e mais um curso no liceu culinário Le Cordon Bleu, em Paris. “Eu sabia que uma hora ia dar errado”, revela. “Mas em nenhum momento eu fui muito diferente do que o que sou de verdade. E isso já me deixa muito feliz”. O cozinheiro voltou para suas origens – trouxe à esposa para dar à luz a Mariana, sua primeira filha, em Teresina. “Eu queria que ela fosse piauiense”, diz o chefe, que voltou a cozinhar para a família, e, em sua estadia na capital da panelada, comeu em vários restaurantes, não mais como um cliente comum. “Uma coisa boa do programa é que agora aonde eu chego para comer as pessoas querem me apresentar a cozinha, revelar seus segredos. Isso é ótimo!”.

Na banca da Paixão, em meio ao mercado, em uma tarde indecisa entre sol e chuva, o cozinheiro mais famoso da TV virou fã – posou para foto com a Paixão, comeu panelada, trocou figurinhas, entrou na cozinha, passeou pela feira. Foi notícia em sites, deu entrevista para o jornal. “Panelada na Tia Paixão com o pessoal da Revestrés”, dizia a legenda de uma selfie do nosso almoço, que conseguiu quase 500 likes. Três dias depois, a foto do encontro com Paixão foi parar num quadro que ele mesmo se encarregou de levar para a cozinheira por no seu mural da fama. “Agora posso me considerar, de fato, um piauiense realizado”.