“Eu como todos os dias, tem ocasiões que é no café da manhã e na janta”, diz Júnior Viana, aos risos, sobre fazer parte do clube de pessoas que amam cuscuz. Ele, que desde os sete anos de idade é fiel comedor dessa iguaria feita em diversos lugares do globo – mas, com sabor de manteiga derretida, só no Nordeste –, relata já ter tido até festa de aniversário com o tema cuscuz.

A paixão pelo prato é tanta que Viana não tem um tipo preferido. “Gosto de qualquer um, não tem tempo ruim para cuscuz” – com ovo, queijo, carne de sol e outros aperitivos. Mas cozinhar o cuscuz não está nas especialidades desse fã. “Depois de muita luta eu aprendi a fazer. Não é lá essas coisas, mas dá para comer de boa”, conta. E destaca que o cuscuz combina com praticamente tudo. “Realmente, é um sentimento de amor por esse alimento”, afirma o office boy.

Cultuado no Nordeste como um patrimônio culinário, o cuscuz, para as regiões sertanejas do Brasil, representa muito mais que alimento. A história com a massa flocada cozinhada no vapor, seja na cuscuzeira, no pano ou em outro utensílio doméstico, vem de 300  anos antes de Cristo. “O milho é um alimento tradicional das culturas indígenas, que vem desde a cultura Asteca e a cultura Maia, chegando aqui, nas ameríndias, pela Amazônia e indo até o Sul do Brasil”, explica Marcelo Reges, antropólogo e professor de Sociologia da Universidade Estadual do Piauí.

Ele conta que o cuscuz é um alimento importante no processo da colonização e que a relação do país com o cuscuz é anterior ao Brasil ser conhecido como Brasil. Os invasores europeus, assim como os africanos que vieram escravizados, trouxeram o cuscuz. Mas os indígenas já possuíam a cultura de plantar milho, e houve uma troca de experiências sobre o que era comestível e adaptável na alimentação de cada povo.

A história com a massa flocada cozinhada no vapor, seja na cuscuzeira, no pano ou outro utensílio doméstico, vem de 300  anos antes de Cristo.

“O cuscuz se relaciona com a tradição e com técnicas de países da África que tinham muita relação com a Europa através da Península Ibérica, como Marrocos, Argélia, Turquia, Líbano. Então alimentos e tradições de técnicas culinárias entraram nesse circuito”, comenta o pesquisador.

Desde que o cuscuz passou a fazer parte da alimentação dos brasileiros, muitas variações foram criadas e adaptadas à realidade de cada região. No Nordeste, por exemplo, é feito no vapor, na maioria das vezes. Em São Paulo, já é como uma torta. No Norte, se come mais a farinha de milho esfarinhada. “O que caracteriza a história desse prato no Brasil é essa dinâmica. Em São Paulo e na região Sul, foram os bandeirantes que levaram o cuscuz até lá. No Nordeste, foram africanos e indígenas. Essa dinâmica é muito diversa”, explica o docente.

Os dados registrados sobre a história do cuscuz no Nordeste são incipientes. O que se tem conhecimento é que, ao longo dos anos, as técnicas de manipular a massa de milho para o preparo foram ganhando variações. No Piauí, há precariedade de dados históricos e científicos sobre o prato. “Por que essa precariedade? Porque não havia interesse em registrar receitas”, argumenta Marcelo. “Em Minas Gerais, é mais fácil encontrar um caderno de receitas de 1800 ou 1900. No Piauí isso é extremamente fragilizado, e isso está ligado a uma diminuição do processo educativo formal também. A tradição é muito oral. A  maneira como eu faço cuscuz, como faço cajuína, é transmitida oralmente, não houve registros”, acrescenta.

Na história do Brasil, registros sobre o alimento cuscuz aparecem em autores como Luiz Câmara Cascudo, em História da Alimentação no Brasil (2011) e Gilberto Freyre, em Casa Grande Senzala (1933), Soldados e Mucambos (1936) e Açúcar (2007). A Revestrés também encontrou na internet livros que falam sobre o cuscuz, como o dos autores Hossin Houari, Paulo Drumond Braga, Isabel Drumond Braga, Ariza Maria Rocha: Cuscuz: Identidades e Recriações (2019), e de Germana Gonçalves de Araújo e Breno Loeser: Cuscuz: um livro de memórias afetivas (2020).

Receita de mãe para filha

“Se formos avaliar a história do Brasil, é muito recente a entrada do homem na cozinha”, analisa Marcelo Reges. “Então, nesse contexto de domínio feminino, quem estava em contato com a cozinha eram as mulheres negras, indígenas, europeias, que trocavam conhecimentos a respeito do preparo e cozimento dos alimentos”.

Essa troca de receitas se estende até hoje. Maria da Guia, do Box Mariquinha, no Mercado do Mafuá, aprendeu com a mãe a fazer o cuscuz na cuscuzeira. Depois que começou a trabalhar com a venda do alimento, no ano 2000, aprendeu a fazer no pano de prato também, e diz que faz a mesma receita sempre: goma, sal e massa de milho ou arroz. Além de sustento econômico, o cuscuz é presente na alimentação da feirante. “Adoro cuscuz. Só tomo café com ele e gosto mais do de milho”, diz, aos risos.

A cultura do milho também está ligada à questão econômica, sendo uma monocultura, com facilidade de plantação, o que ajudou a permitir o sucesso do cuscuz no Nordeste.

Auricélia Paula, que também vende cuscuz no Mercado do Mafuá, no Box 23, aprendeu com a mãe a técnica de molhar a massa, colocar para descansar e cozinhar no pano. Os mesmos ensinamentos que recebeu, repassou para sua ajudante, Francisca Ferreira. Há 10 anos elas trabalham juntas, de domingo a domingo, com venda de cuscuz. “Temos muitos clientes”,  e comenta sobre um casal que frequenta o box: “Todo sábado é sagrado”.

O professor Marcelo Reges ressalta que a cultura do milho também está ligada à questão econômica, sendo uma monocultura, com facilidade de plantação. Ou seja: é produto bom, barato e acessível, que ajudou a permitir o sucesso do cuscuz no Nordeste.

No mercado do Mafuá você encontra a fatia de cuscuz por R$ 3,00. O alimento, que era responsável pela boa venda nos boxs de Aurinha e Mariquinha, na pandemia sai mais devagar. “No final de semana, a gente vendia três vezes mais. Usava três pacotes de massa para fazer um cuscuz. Hoje, o cuscuz sobra no balcão”, lamenta dona Maria da Guia.

Mas o cuscuz também ficou “cult” quando passou a ser vendido em cafés mais requintados. Acompanhado de queijo coalho e carne de sol, por exemplo, chega a custar entre R$10,00 e 20,00.

Em 2020, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) registrou o cuscuz como Patrimônio Imaterial da Humanidade. No Piauí, ele ainda representa hospedagem e receptividade. “É um símbolo de comensalidade, como a gente chama na antropologia (o termo significa conviver à mesa). Quantas vezes não fui recebido no Piauí com um cuscuzinho? Nesse sentido, ele é a alma piauiense, a alma do Nordeste”, finaliza Marcelo Reges.

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Publicado em Revestrés#49.

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