Gastronomia

Comida é política

Opostos à ideia de moda ou tendência, jovens apresentam o veganismo popular como luta pelo fim da exploração animal e pela alimentação saudável e acessível, com justiça social e sabor.

Apesar de insistentes vozes a negar, são fatos as mudanças climáticas e os desastres naturais. A conta não fecha entre a capacidade humana de produção em relação à distribuição de produtos básicos, como os destinados à alimentação. Mas o que isso tem a ver com o pão nosso de cada dia chegando à mesa? Ou essa seção de Revestrés não é mais gastronomia? Talvez o questionamento correto seja: como comida e política precisam ser cada vez mais misturadas em nossos pratos? É como nos provocam os adeptos do movimento vegano, mais precisamente os do veganismo popular. 

Caso você não conheça o movimento vegano, corra, pois está em atraso. O termo surge em 1944 na Inglaterra, do inglês vegan, e passa a figurar nas bandeiras das juventudes revolucionárias da década de 1960 com força, com o dia 1º de novembro se tornando o Dia Mundial Vegano. O eixo principal, desde o nascimento, é a luta contra a exploração dos animais – e violência – para qualquer finalidade. No Brasil, para se ter uma ideia de como crescem os adeptos do veganismo, uma pesquisa realizada em 2018 pelo Ibope revelou que 14% da população se declara vegetariana. Importante destacar que o termo vegetarianismo pode ser confundido com veganismo. Simplificando, o veganismo vai além e pauta uma negativa ao consumo de alimentos e outros produtos de origem animal, como roupas e cosméticos. Ao tornar-se um movimento, uma ética de vida, o veganismo ganha pluralidade e as vertentes surgem abordando questões políticas em diversos tons. 

Um acidente ocorrido no Rodoanel de São Paulo, em 2015, foi o início da virada de Eduardo Santos para o veganismo. Ex-funcionário de uma das maiores redes de fast food do mundo (Mcdonald ‘s), percebeu que os porcos – que eram o carregamento do veículo tombado – sofriam, sentiam dores, sentiam medo. “Nas redes sociais de ativistas vi que uma delas tinha escrito na camiseta a frase ‘leite é crueldade’. Tudo me levou a pensar que aqueles animais precisavam de uma chance de viver”. Foram oito meses até que ele pudesse compreender melhor o funcionamento das indústrias, das testagens, de toda a cadeia produtiva até o consumo. 

Irmãos Leonardo e Eduardo Santos durante participação no Festival Vitalize, que reuniu veganos de diversos países, em fevereiro de 2020 | Foto: arquivo pessoal

Mesmo com pouca informação e sem nenhum exemplo vegano na família de origem humilde, da região periférica de Campinas, interior de São Paulo, Eduardo conta que passou um ano se alimentando exclusivamente de arroz, feijão, couve e suco de laranja. “Não sabia direito o que estava fazendo, não sabia o que botar no prato. Assistia vídeos, pesquisava, lia e aí comprava o suficiente para não passar fome. Eu consumia uma quantidade grande de comida”. Ele afirma que, mesmo com a dieta mais restritiva no início, tudo ia bem com a saúde. 

Durante a transição de Eduardo, Leonardo Santos via o movimento com certo preconceito, distante da sua realidade social e financeira. A virada ocorreu repentinamente, de maneira, para ele, definitiva. “Um dia eu decidi me tornar vegano. Fui dormir onívoro e acordei vegano, e a partir daí nunca mais coloquei nada de origem animal para dentro do meu corpo. Passei a ser ativo, lutar pelos direitos dos animais junto com o Du”, conta. 

Os primeiros questionamentos de Leonardo eram sobre a ausência de alimentos industrializados nos mercados do bairro Itajaí, em Campinas, além de considerar a linguagem dos veganos inacessível aos moradores de periferia, chegando apenas para pessoas de classe média ou com alguma formação acadêmica. 

“Quando me tornei vegano, trabalhava de garçom e via as pessoas falando que ser vegano era caro. Hoje posso dizer que a base teórica que construímos veio de muita prática, participações em eventos, de reunir com pessoas e mostrar que, na essência, o veganismo é prático, simples e objetivo”. Leonardo completa com um exemplo. “É preciso perguntar: por que, ao invés de comprar uma caixa de leite por R$20,00, você não pode fazer leite de aveia, em que um litro sai por R$ 0,80 centavos? ”. 

O perfil no Instagram tem essa finalidade também: mostrar que a alimentação vegana é possível para um periférico, é mais barata e eficaz – Natanael Silva, O Vegano da Vila.

Eduardo e Leonardo Santos são irmãos gêmeos. Juntos eles administram no Instagram o perfil no Vegano Periférico, com mais de 357 mil seguidores, além de um site e um documentário divulgado gratuitamente. 

Em Teresina, quem segue o veganismo popular é Natanael Silva. Para ele, é um encaixe perfeito para um estilo de vida minimalista e dentro de sua condição financeira. É assim que percebe o veganismo, e diz que consegue provar como este pode ser acessível. Natanael busca dar visibilidade para a causa na capital piauiense desde a primeira postagem, em 2019, no perfil O Vegano da Vila, marcando seu local de moradia, a Vila da Paz, em região periférica da zona sul da cidade.  

Tudo começou quando Natanael tentava ajudar a ex-namorada, cozinhando comidas veganas. “Depois criei o perfil no Instagram para mostrar que o veganismo é simples. Temos poucas referências de pessoas pretas, pobres e que seguem um estilo de vida assim, por isso é complicado atingir as camadas populares. O perfil no Instagram tem essa finalidade também: mostrar que a alimentação vegana é possível para um periférico, é mais barata e eficaz”, afirma Natanael, enfático ao declarar sua opção pelo comunismo, que o impulsiona também na atuação em movimentos sociais.   

É possível 

Mas como esses jovens provam suas bandeiras? Na divulgação do veganismo popular, eles apostam em receitas simples, com aproveitamento de alimentos de consumo fácil, dicas promocionais, indicações de frutas e verduras de época. O ponto mais difícil das receitas só depende do “eu chef” vegano em cada pessoa, e isso está mais na criatividade que em grande investimento nos ingredientes. 

Nos registros fotográficos, muitas cores e sabores: tomate, alface, batata, repolho, feijão, beterraba, cenoura, melancia, mamão, abóbora, banana, farinhas e grãos. E, em relação aos fornecedores, a principal dica é comprar do pequeno produtor, dos mercadinhos locais, dos assentamentos, da agricultura familiar, das feiras ou investir em produção caseira, sempre que possível. 

“Quando cheguei em um restaurante vegano de Campinas, elitizado, me deparei com pessoas consumindo, os donos, e as únicas pessoas com as quais senti empatia foram os funcionários. Eles não eram vegetarianos ou veganos. As pessoas brancas, de classe média, estavam propagando veganismo com camisetas escritas em inglês, um hambúrguer custando R$ 22,00. Era um mundo completamente diferente do que eu vivia”. Após esse momento, conta Eduardo, veio seu primeiro texto para as redes sociais. Ao entrar no ônibus para casa, pegou o celular e escreveu refletindo seu mal-estar, lembrando que aquela cena o fez pensar que o veganismo, daquela forma, não chegaria para seus amigos da periferia, nos jovens negros, em quem cresceu ao seu lado. Foi um desabafo. 

Devemos dizer para as pessoas que elas não precisam comer salsicha, que podem comer outras coisas – Eduardo Santos, Vegano Periférico.

Em 2020, os irmãos Santos protagonizaram um documentário produzido de forma independente, com a direção de Rauany Nunes. A distribuição tem apoio do Mídia Ninja, em parceria com o Xepa Ativismo, e pode ser assistido pelo YouTube e no Instagram Vegano Periférico. Logo na cena inicial, os gêmeos aparecem lendo sobre Marx, organização do trabalho e lucro. Enquanto preparam uma refeição, discutem a relação entre machismo, homofobia e consumo de carne. 

“Tem documentário que fala de dieta, com especialistas, bons registros. Mas o Rauany achou relevante mostrar dessa forma, com vida real, pessoas pegando ônibus. Para nós, o maior retorno é o impacto para a causa, pois a gente acredita no que faz”, diz Leonardo. O filme estreou em 1º de novembro de 2020, e acumulava 90.570 visualizações no YouTube até a finalização desta edição. 

Natanael Silva na foto que usa no perfil Vegano da Vila: “Espero ser útil para o povo da Chapada do Corisco” | Foto: arquivo pessoal

Um vegano popular deve entender que sua relação com a alimentação faz parte do seu lugar no mundo, onde isso não se trata de opção, mas de um curso natural de pertencimento. “É na consciência que as pessoas vão entender que empresas exploram animais, exploram pessoas. Há necessidade de informação, pois esse veganismo elitista faz uma propagação gigantesca de produtos, mas sem recorte nenhum de classe. Devemos dizer para as pessoas que elas não precisam comer salsicha, que podem comer outras coisas, fazer uma transição mais consciente, mais saudável”, defende Eduardo Santos. 

Usando como exemplo levantamento feito pela organização WWF, Leonardo expõe a preocupação de que mais de 79% da soja no mundo são destinados à produção de ração para animais, além dos problemas ambientais relacionados ao uso da terra. Ele ainda relaciona o consumo de carne ao desmatamento da Amazônia, e fala também da falta de incentivo aos produtores comunitários. 

Natanael Silva acredita que “devemos tocar uma luta coletiva e nos organizar em nossos locais de atuação, seja em partidos políticos, sindicatos, associações de moradores, coletivos do movimento estudantil e afins. Se o veganismo é popular, ele tem que atender as necessidades das camadas populares”. Ele Ele reforça a visão sobre um veganismo popular contra o capitalismo, lutando por soberania alimentar e associado a causas contrárias às opressões de gênero, desigualdade social, preconceito, racismo, o especismo. E, claro, contra a fome. 

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ESSA EDIÇÃO TEM APOIO CULTURAL DA EQUATORIAL ENERGIA POR MEIO DO SIEC (Sistema Estadual de Incentivo à Cultura) da SECRETARIA DE CULTURA do GOVERNO DO PIAUÍ.
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