Eram meados de 1982 e o dia corria como outro qualquer na lanchonete de dona Marlene. Ela fritava salgados em sua loja, no centro de Teresina, até que sobrou um pouco de massa, que ela preencheu com presunto e queijo. “Passei ovo, farinha de rosca, botei em cima da mesa e falei para meu irmão: quando terminar de fritar os pastéis, frita aí essa bomba pra mim”, conta Marlene Ferreira, aos 83 anos.
Depois de pronta, dona Marlene serviu a quem estava por ali presente – experimentaram e aprovaram. Dias se passaram e a cozinheira resolveu repetir o experimento, mas decidiu expor o resultado no balcão, juntamente, com os outros salgados. “Os meninos do colégio Diocesano passaram e disseram: ei, dona Marlene, que bola é essa? Eu disse: né bola não, isso é bomba! E ficou”, conta aos risos. Assim surgiu a bomba, salgado teresinense que marcou a vida de várias gerações de estudantes na capital.
O salgado se popularizou e pode ser encontrado nas lanchonetes cidade afora, mas dona Marlene garante que nenhum deles se compara a sua receita. “As bombas não são a mesma”, afirma. Diferente do que se encontra, a bomba original não leva queijo mussarela e mortadela, mas sim presunto e queijo coalho. “Tudo cortado miudinho, não existia máquina de cortar nesse tempo”. O recheio tem selo de qualidade e o preparo da massa é criterioso: leva farinha de trigo, sal, manteiga, leite e fermento. “Mas o sal não pode ficar junto com o fermento, você coloca o fermento no leite”, explica.
O processo pode até parecer simples, mas só as décadas de prática diária garantem o tempo de espera e fritura corretos. “Não pode fritar na mesma hora”, diz taxativa. O que garante que a massa fique macia são os minutos de reserva – pular essa etapa é arriscar que o salgado murche ou, literalmente, exploda, como o próprio nome sugere. “Só então coloca para fritar. Depressa fica virando e, quando está coradinho, tira, coloca na peneira e depois sobre o papel”, detalha dona Marlene.
Tanto cuidado rendia cerca de 500 bombas por dia, fora os demais salgados como kibes, esfirras, pastéis e coxinhas produzidos e vendidos diariamente na lanchonete e fornecidos para escolas e gabinetes políticos. A produção chegava a 5 mil salgados se somados às demais lojas pertencentes aos irmãos e sobrinhos de dona Marlene. Ela garante que compartilha suas receitas sem ciúmes: “se quiser eu ensino, mas se vai sair igual ao que faço eu já não sei”.
A aptidão para cozinha é de família e atravessou os mares: de descendência síria, o conhecimento em culinária árabe foi passando de geração para geração. Fugindo da guerra, Zacarias Habdah, avô de dona Marlene, instalou-se em Parnaíba, cidade em que ela nasceu. Por lá inaugurou uma loja de tecidos, mas não largou o preparo caseiro de kibes, charutos e outras iguarias árabes.
De uma família com nove filhos e já morando em Teresina, tudo começou com as viagens para visitar a irmã que seguia carreira de cantora em São Paulo. “Ela me levava nas lanchonetes e fui criando as ideias na minha cabeça”, diz, sobre o conhecimento que adquiriu de forma autodidata. “Nunca tive professor, nunca tive curso. Só via, comia e gostava”, conta sorridente.
Seu primeiro negócio foi em 1958. Com a permissão de seu pai, dona Marlene e a irmã Maria José abriram a loja de bombons e sorvetes Bomboniere, entre o Theatro 4 de Setembro e o Cine Rex. As jovens empreendedoras foram as primeiras a servir sobremesas incrementadas e bolos confeitados. “Fui eu quem trouxe sundae e banana split”, conta sobre as receitas de gelados e doces arrojados para a época.
Na loja, testou o preparo dos primeiros salgados. Uma de suas clientes foi Adélia Salomão, também de descendência síria e esposa do seu Cornélio, conhecido pelo seu famoso pão de queijo no centro de Teresina. “Toda vez que eu passava pra ir ao banco ela dizia: vem comer um pão de queijo aqui. Eu digo: eu lá quero esse teu pão de queijo!”, conta dona Marlene sobre as brincadeiras com a amiga. Certa vez, dona Adélia encomendou uma bandeja de croquetes à dona Marlene. “Do jeito que eu mandei, ela serviu, sem fritar!”, relembra divertindo-se com a história.
Da Praça Pedro II, a Bomboniere chegou a funcionar na rua 13 de maio, mas foi no cruzamento das ruas 24 de Janeiro com a Félix Pacheco, nos anos 70, que a marca dos salgados de dona Marlene ficou conhecida até hoje. A garagem da casa da família deu lugar a Majer Lanches: a lanchonete foi batizada em homenagem às proprietárias e é a junção dos nomes Marlene e Maria José. A lanchonete passou por endereços na zona Leste mas, hoje, está somente na memória de quem lembra com carinho de dona Marlene.
(Matéria publicada na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)