“Nenhum alimento é neutro”, diz o historiador Carlos Antunes do Santos, no artigo “A alimentação e seu lugar na história”. Ele analisa como a alimentação invadiu as pesquisas em ciências humanas – e a gastronomia, as prateleiras das livrarias – afirmando: comer é uma prática própria da dinâmica social. O que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como e com quem se come. Então, para começo de história, esta edição de Revestrés foi comer em Picos, sul do Piauí, no “Bode assado do seu Almeida”. 

Ilustração: Jota A.

Não sabemos afirmar com propriedade qual o lugar da alimentação na história, mas o lugar do bode assado em Picos certamente é no bairro Junco. Ali, na Av. Piauí, concentram-se há quase 30 anos os mais tradicionais restaurantes cuja referência alimentar é o bode – macho adulto da família dos caprinos. Assado na brasa, cozido ao molho, no espetinho, tira-gosto ou refeição: há bode para todos os gostos. 

Se você me lê agora de outro canto do Brasil, longe do meu país Nordeste, provavelmente deve conhecer um parente próximo do animal: a cabra, é a fêmea do bode, o carneiro é o macho da ovelha, e juntos geram os cordeiros. As diferenças vão de raça (uns são caprinos, outros ovinos) até genética (glândulas e capacidade de digestão), mas você é capaz de distinguir sozinho só com base na observação: o bode adulto é o barbado. 

Há, segundo os especialistas – em comer e preparar – outra sutil diferença entre os bichos: o bode macho, especialmente se for o reprodutor, tem um cheiro forte característico, que muitas vezes não é eliminado com o cozimento e vai até à mesa. Há quem diga também tratar-se de uma carne menos macia que a do carneiro – uns afirmam até ser uma comida “grosseira”, indigesta. Por essas e outras razões, a maioria dos restaurantes que exaltam o bode assado em suas placas e letreiros, em Picos, servem, na verdade, carne de carneiro. 

“Quando cheguei nesse ponto ele já era famoso pelo bode assado”, explica seu Almeida, que, na verdade, também não se chama Almeida (na cidade onde o bode não é bode, não é de causar estranhamento). Almeida, ou melhor, José Josino dos Santos, é um senhor simpático de 66 anos que morou parte da vida em São Paulo, trabalhando como frentista em um posto de combustível – foi lá que ganhou o codinome Almeida. Cidadão picoense, voltou para a terra natal e viu a oportunidade de negócio – o antigo dono queria repassar o ponto do bode assado na movimentada avenida. Topou investir e está há 18 anos no local.

“A gente serve carneiro, mas o que sempre foi famoso aqui foi o bode”, explica o empreendedor. “Achei que mudar a fantasia ficaria feio”. O alimento é recebido do fornecedor uma vez por semana e é um dia de farra, que começa a meia noite, fim do expediente, e vai até o raiar do sol no dia seguinte, na árdua missão de retalhar e salgar os quase 700 quilos de carne.

No restaurante de Almeida, mesas de plástico são dispostas na calçada larga e emendam-se as do concorrente: ao lado, outros dois restaurantes também estampam o bode carro-chefe nos letreiros. Além do seu Almeida tem “O Pioneiro”, “Bode Assado Renascer” e “Bode Assado O Daniel”. Para Almeida a concorrência é absolutamente sadia: “Você procura melhorar em tudo”.

No cardápio do Almeida, onde o bode reina, a variação diz respeito apenas a quantidade das porções: há refeição individual (28 reais), para duas pessoas (50 reais), para três pessoas (60 reais) e para quatro pessoas (65 reais). Em todas o carneiro na brasa é servido em uma chapa quente, com queijo coalho e acompanhado de macaxeira frita, baião-de-dois, vinagrete e farofa.

Seu Almeida atribui o sabor ao trabalho do forno. “Não é feitiçaria, está relacionado ao fogo da brasa e o tempero que só leva vinagre e sal” – alguns por ali utilizam vinho na preparação. O resto, a própria natureza encarregou-se: a maciez inconfundível da carne de carneiro, ainda que disfarçado de bode.

Bode em pele de cordeiro

O piauiense é sim um devorador de bode – e isso não é ofensa aos carnívoros, pelo contrário: por todo o estado encontramos estabelecimentos e eventos (Bodódromo, Toca do Bode, Festa do Bode, só para citar alguns) que ficaram famosos pela ode a este animal.

Mais do que uma questão de paladar, nossas práticas alimentares têm relação com nossa história e cultura. É o que defende Samara Mendes, pós-doutora em História e professora da Universidade Federal do Paraná. “Nossas práticas e culturas alimentares no território piauiense remontam aos tempos da colonização, que era quando a maioria da população vivia e convivia nas fazendas e no ambiente rural”, explica. “É basicamente desse período que os piauienses, e os nordestinos como um todo, aprenderam a valorizar carnes – especialmente vermelhas – como base e centro da alimentação. Não exclusivamente pelo valor nutricional, mas também pelo valor social que representava consumir certos tipos de carnes”.

E tanto faz se na hora da degustação há quem não consiga distinguir ovinos de caprinos. “Estas pessoas desejam manter simbolicamente e, através do alimento, o vínculo com as tradições de seus antepassados”, diz Samara em entrevista por e-mail. “Comer os pratos típicos piauienses é uma forma de conseguir a manutenção deste vínculo com suas famílias, histórias das cidades, rememorar lembranças e sentimentos”, analisa a pesquisadora.

Somos bons de garfo e de produção: até 2014 o Piauí era o segundo maior produtor de caprinos e o terceiro na produção de ovinos do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2016, com 12,6% do total nacional de caprinos e ovinos, o Piauí perdeu o posto para a Bahia (28,0%) e Pernambuco (25,5%).

De todo modo são cerca de três milhões de animais que representam não apenas uma riqueza econômica, mas também cultural: o significado simbólico da fazenda em nossa mesa.

 

(Publicada na Revestrés#36 em maio-junho de 2018)