Poucas pessoas ficam à vontade na frente de uma jornalista. Não é o caso da Cafira Foz, que fala pelos cotovelos de forma didática e divertida, como se estivesse sempre dando uma entrevista. Ou ensinando uma receita. O jornalista gosta de histórias. A cozinheira também.
Pelo menos sempre foi assim para Cafira, cearense por acidente. “Eu nasci no Ceará, mas vim para o Piauí com dez dias de nascida”, diz enquanto passa a mão no cabelo cortado como Amelie Poulain. “Minha memória afetiva da cozinha se construiu toda entre o Piauí e o Maranhão, onde meus avós tinham um sítio”.
Cafira comemorou os 34 anos em algum lugar entre São José do Piauí e Picos – no sul do estado, a cozinheira participava de uma viagem-expedição por comunidades produtivas, do sertão ao litoral. Em meio ao caos acelerado da vida em São Paulo, onde mora há 10 anos – quase dois dedicados ao Fitó Cozinha – ela tirou alguns dias de férias mas, como uma workaholic que se preza, aceitou um convite que acabou sendo o presente de aniversário dos sonhos: fazer uma viagem em busca de temperos e sabores pelo Piauí.
“Eu comecei a cozinhar já morando em São Paulo, mas lembro que o start veio em uma viagem que fiz pra França, enquanto comia num restaurante asiático e me emocionei”. A lembrança vem em cheiro e cores: “A comida tinha sabores da minha infância e naquele instante eu soube que era isso que eu queria fazer”. Os amigos viraram cobaias, para quem organizava pequenos jantares no apartamento que dividia com o ex-marido e sócio, Thomaz Foz.
O Fitó veio primeiro como casa – não à toa a logo do restaurante, que já foi recomendado pelo New York Times como um dos melhores programas para se fazer em São Paulo, é uma simpática casinha amarela em fundo rosa, com telhado assimétrico. O prédio ficava no caminho que Cafira fazia todos os dias para chegar em casa. Certo dia olhou-o com outros olhos e decidiu: ali seria seu restaurante.
Localizado no movimentado Largo da Batata, o Fitó é tido como um oásis entre seus visitantes – amplos janelões, cores claras, samambaias e chifres-de-viado. O charme fica por conta da cozinha envidraçada, que permite acompanhar o passo a passo de cada pedido até chegar à mesa, e do bar em 360 graus, onde são servidos drinks artesanais e refrescos da casa – o restaurante não vende cerveja nem refrigerantes industriais. Cabeça de Cuia, Maria da Inglaterra e Diga Meu Bem são alguns dos drinks infusionados, xaropes e bitters de produção própria cujos conterrâneos de Cafira facilmente pegarão a referência. Para deixar tudo ainda mais atraente, o ambiente é totalmente bike e pet friendly.
O cardápio do Fitó passeia por pratos tradicionais da culinária piauiense como maria isabel, paçoca e carne de sol, embora a chef evite rotular-se. “Eu acho que minha cozinha é brasileira e tem memórias afetivas da minha infância que, por acaso, foi no Piauí”. Tapioca, cupuaçu, caju, taperebá, manteiga de garrafa e óleo de babaçu são alguns dos ingredientes que formam os pratos e convidam para um passeio que começa no sertão (carne seca, tapioca) e culmina no litoral (o peixe do dia e a casquinha de siri) – tudo através do paladar.
Não por acaso, a expedição pelo Piauí em julho deste ano tocou tão a fundo as emoções da chef – que, aliás, prefere ser chamada de cozinheira. “Meu tipo de pesquisa é muito de vigília”, diz. “Eu fico observando um cheiro que passa, uma flor que cai… alguém perto de mim falou a palavra ‘péba’ e eu já imagino ‘opa, isso aí dá um drink”.
Naqueles dias de viagem pelo Piauí, Cafira andava sempre com um caderninho a punho, perguntando, provando, anotando. De camisão Adidas e óculos escuros, o visual contemporâneo contrastava com as cores e o clima quentes do sertão. Apesar da tentativa de desconectar, deixar o celular de lado foi difícil – dali a uma semana ela participaria do Festival Fartura – comidas do Brasil, em São Paulo. Cafira, chef convidada para o evento, orquestrava tudo à distância – precisava preparar quase mil porções do seu arroz de capote, um arroz caldoso com favas, maxixe, barriga de porco e farofa de miúdos.
Foi na praia do Coqueiro, aliás, em uma das paradas da expedição, com sinal de internet sofrível, que ela atendeu a uma repórter de São Paulo. A chamada no domingo era para uma matéria especial a respeito do Fartura. Do outro lado da linha, a repórter parecia buscar uma declaração polêmica, insistindo na pergunta sobre sexismo na cozinha. “Eu não acho que mulheres são melhores do que homens em nada”, disse Cafira, já irritada. “A minha preferência por contratar mulheres é apenas o meu posicionamento, uma forma de tentar uma reparação histórica”.
É quase unânime que as críticas sobre o Fitó citem a equipe essencialmente feminina como um diferencial do restaurante. Este fato, estrategicamente bem colocado nas redes sociais, foi o marketing espontâneo perfeito para o efeito Fitó: o restaurante virou a pauta do dia nos cadernos e revistas de gastronomia. “Uma cozinha de força (só de mulheres)” foi a manchete da revista Cláudia em março deste ano.
Durante os dias em contato com o que há de mais profundo na cozinha piauiense, Cafira andou de pés descalços, cochilou na rede, provou uma receita de torta de pequi, cozinhou de maiô para os amigos e viu a tarde cair ouvindo Luiz Melodia. Olhando de perto, ninguém dizia estar à frente da cozinheira que em menos de um ano entrou para o Guia Michelin – uma das classificações mais importantes do mundo da gastronomia. Na cidade mais populosa do país, ela inventou um lugar com cara de mundo e gosto de nordeste, mas segue na simplicidade: “Minha comida preferida até hoje é pão com ovo”.
Fitó Cozinha
Rua Cardeal Arcoverde, 2773
Pinheiros São Paulo
O que provar?
Bife de carne-de-sol com
purê de cará e vinagrete.
(Matéria publicada na Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018).