“Eu não gosto dessas colherinhas”, diz, inesperadamente, o homem sentado a minha frente na mesa. “O pessoal adoça o café, leva à boca e depois coloca aí de volta”, justifica após conseguir atenção. Noto que ele se referia a colher que eu acabara de pegar do recipiente plástico onde ficam xícaras, pires e colheres compartilhadas pela freguesia que faz ali sua primeira refeição do dia. Ele levanta e, com ar de quem acabou de dar o seu melhor conselho, vai embora sem se despedir.
Não surpreende que até a colher seja compartilhada no mercado do Mafuá, onde o café da manhã parece cozinha de mãe: sempre cabe mais um à mesa. O mercado fica numa região completamente fora do eixo gastronômico da cidade, na zona Norte de Teresina, mas não tem problema. O importante é ter bolinho frito na hora, manteiga derretendo no cuscuz e o café fresquinho e quente no ponto de queimar a língua de quem bebe.
É ali, naquele espaço onde circulam bêbados sem camisa, donas de casa com bobs no cabelo, homens de negócio, crianças, jovens de ressaca, políticos e doutores, que o café virou tradição e conquistou um público, no mínimo, inesperado. “O pessoal da elite”, como se refere Solimar, dona de um boxe de alimentação da feira e a primeira a lançar a moda do bolo frito.
Solimar conversa comigo enquanto passa troco, frita bolinhos e responde à curiosidade dos clientes: qual é, afinal, o grande segredo do bolinho de goma, crocante por fora e macio por dentro? “Eu tento fazer lá em casa, mas nunca sai gostoso”, revela uma cliente aflita. “Meu amor, é melhor você vim comer aqui mesmo, porque você vai sujar sua cozinha toda, se queimar, e ainda não vai sair no ponto”, aconselha a feirante.
Ouça a voz da experiência. São mais de 30 anos acordando todo dia às 3 da manhã para fritar bolinhos. Mas não pense que sempre foi fácil acertar o ponto da massa. “No começo meus bolos não prestavam”, confessa Solimar. “Hoje eu já sei que tem que botar menos leite do que ovo, e a gordura já esquenta com o bolinho dentro”. E outra: nem sempre a receita certa é garantia de um bolo frito dentro dos padrões exigidos. A uniformidade é utópica. “Você vê: somos três aqui fazendo bolo frito, e nenhum sai igual”
Se dominar o bolo frito, para ela, não é mais problema, a rotina ainda continua puxada. Todos os dias Solimar acorda antes do amanhecer para começar os trabalhos. “4h30 eu tô com caldo (de carne) e café prontos. Às 6h começo o bolo frito”. É o horário em que aparecem os primeiros clientes. O movimento é intenso aos fins de semana, quando são necessários 20 kg de massa de bolo para dar conta. A outra opção do cardápio disputa acirradamente com o bolo frito o pódio de “o mais pedido” – sobretudo aos domingos, quando às 5 da manhã, as mesas do mercado se enchem de boêmios em busca daquele que até hoje é considerado o melhor remédio para o mal da ressaca: o caldo de carne com ovo e pimenta.
Aos sábados e domingos, Solimar chega a vender até 2 mil bolinhos por dia, ao preço de 0,70 centavos cada um.“O tanto que botar, vende. Não estraga”, garante. Não duvidamos, pois somada a seu talento na cozinha está outra característica, indispensável aos feirantes: ser boa vendedora. Nossa entrevista foi várias vezes interrompida para o atendimento .“Só oito bolinhos? Por que não leva logo os 10, senhor?”, e assim Solimar vai convencendo o freguês.
“Todos os meus clientes são meus amigos, acima de tudo”, diz a cozinheira. “Aqui eles não passam fome. Come quem tem dinheiro, e se não tiver, come também”, garante. “Tenho cliente que toma café aqui há mais de 10 anos”, conta Solimar. Maria do Socorro, que está há menos tempo no mercado e também incorporou a receita do bolo frito, compartilha do mesmo carinho com os clientes. Foi um deles, aliás, um médico cirurgião que toma café no mercado às sextas e sábados, que lhe deu de presente a placa que anuncia a sua cozinha “Café da Help”. “Ele disse que botou Help porque Socorro não cabia na faixa. Foi presente, eu não pude dizer nada”, confidencia.
A total ausência de sofisticação, associada a qualidade do que é servido, parece atrair cada vez mais uma clientela sem a menor homogeneidade. Pobre, rico, baladeiro, desempregado, deputado, apresentador de TV. “Até o governador já comeu aqui, sabia?”, gaba-se Solimar. “Em tempos de eleição, muitos encontros políticos acontecem aqui”, diz, cheia de importância.“Mas não é por causa de mim não. É do bolo frito.”
(Matéria publicada na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)