Se existe mesmo a possibilidade de uma rápida viagem ao inferno, Lenildo Lima fez em 15 dias. Há cerca de 10 anos, tudo começou a desandar na vida do engenheiro agrônomo: separou-se da esposa, perdeu um terreno, foi vítima da estiagem e deu adeus a sua plantação. “Tudo de ruim aconteceu comigo nesse período”, recorda. Foram 70 mil reais de investimento indo seca abaixo. Cheques voltando. Contas a pagar. “Num domingo peguei o carro e dirigi desesperado pensando em me matar”. Foi parar no sítio de um irmão. Estacionou embaixo de uma árvore, e, enquanto rezava por uma luz de esperança, um caju esbugalhou-se em seu capô.

Todo mundo sabe dos potenciais naturais e econômicos do caju. Mas salvar vida, até agora, era novidade. “Tive na hora a ideia de fazer doce pra vender e ter uma motivação na vida”, conta o, hoje, empresário. Tirou do bolso os últimos trocados que tinha e foi ao mercado comprar uma colher de pau e uma panela. Pôs-se a cozinhar o fruto, até caramelizar. “Quem disse que eu sabia a receita? Inventei ali, embalei em compotas e fui oferecer em um quiosque no Centro de Artesanato de Teresina”, relembra o produtor. Ivanildes, a vendedora franca e atenciosa achou o doce horroroso. Mas, sem querer desmotivá-lo, ensinou algumas técnicas ao moço esforçado. É, até hoje, uma de suas clientes.

Dali em diante Lenildo não se afastou mais do caju, esse fruto do nordeste, matéria-prima de tantas iguarias. Tudo se aproveita no caju – e o Lenildo, por sua vez, se aproveita dele. “Quando eu pego num caju, parece que estou segurando uma pedra de ouro”, confessa. A castanha se come pura ou torrada. Da “carne de caju” se faz o suco, o doce, o cajuzinho, a cachaça, o vinagre, a rapadura e o vinho. E é do suco, clarificado e cristalino, que se extrai a famosa cajuína.

Tudo isso o Lenildo produz hoje, em sua empresa Império Doce. Mas foi em agosto de 2005 que fundou, junto ao Sebrae, a Cajuespi – Cooperativa de Produtores de Cajuína do Estado do Piauí. Hoje, a Cajuespi conta com 120 produtores da bebida, sendo 23 minifábricas em Teresina e 12 em Timon, no Maranhão. A região de maior produção fica entre os municípios de Picos e Santo Antônio de Lisboa, sul do Piauí. O número de produtores independentes em todo o estado passa dos 3 mil. “Eu costumo dizer que em período de safra, todo mundo faz cajuína no fundo do quintal”, diz Lenildo.

Parece fácil, falando assim. A técnica de fabricação da cajuína é indígena, e trata-se de um processo artesanal demorado e trabalhoso. Em três etapas, se extrai o suco da polpa do caju. Logo depois, mistura-se esse suco com gelatina natural. “Ela vai qualhar a acidez que sobe, e separar só o suco limpo”, diz o produtor. Aí vem o passo de filtrar o que restou com funis de tecido (filtro ou brim), engarrafar, e, por fim, cozinhar em banho maria por cerca de 1 hora. “É o cozimento que garante a cor, cristalina”.

Ao longo dos anos, o processo se modernizou graças às tecnologias e ao acesso a informações. “Imagine só, havia a lenda de que, para fazer a cajuína não se podia lavar o caju, e a garrafa tinha que cozinhar em caldeira de lenha. Para qualhar, se utilizava cola de sapateiro”, afirma Lenildo. Hoje, obviamente, tudo isso ficou para trás e Lenildo garante: a única coisa que pode influenciar no gosto é o próprio caju. “Existem três tipos de cajuínas: a do caju nativo, a do caju precoce e a do caju final de safra”, explica o produtor, referindo-se respectivamente as cajuínas produzidas pelo caju comum (azedinha), pelo chamado caju 76 (doce), e, como o próprio nome diz, pelos últimos cajus da safra, que, logo, resultam em uma cajuína um tanto aguada. “Muitas vezes a pessoa sente um sabor diferente e acha que a cajuína está estragada. Há como padronizar a técnica, não o sabor”, diz Lenildo.

Uma cajuína sai, a preço de custo para o produtor da cooperativa, por 2 reais e 50 centavos. Nas contas não bate, portanto, o porquê de em certos restaurantes de Teresina a bebida custar entre 8 e 10 reais. “Isso é péssimo para nós, afasta o nosso consumidor que, mesmo gostando de cajuína, vai acabar optando por outra bebida devido ao preço”, critica Lenildo. E o que dizer sobre bares e restaurantes no Piauí que vendem cajuína produzida no Ceará? “Entra muito, porque os produtores de lá não pagam impostos. É mais barato pro bar. Aconselho a sempre olhar no rótulo antes de consumir, porque há uma diferença gritante entre a nossa cajuína e a deles”, garante Lenildo. “O que eles fazem no Ceará é um suco de caju”.

A briga dos estados vizinhos pela cajuína não fica só em mesa de bar. Os cearenses quiseram, por um tempo, patentear a técnica de produção da bebida. Nada feito. Em 2008, associados da Cajuespi solicitaram ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que a cajuína passasse a ser considerada patrimônio cultural piauiense e, quiçá, brasileiro. Nem a Coca-Cola, na tentativa de batizar seu novo refrigerante de “Crush Cajuína” obteve êxito. O produto já virou patrimônio local e, para ser reconhecido como patrimônio em todo o Brasil, aguarda apenas a liberação da música Cajuína, de Caetano Veloso, como prova da regionalidade. O compositor pode até não engrossar o coro da campanha. Mas foi aqui que ele provou da bebida cristalina e fez um de seus 8 versos mais famosos que, se não por acaso, concluíam o mesmo que Lenildo no dia em que o caju lhe iluminou: apenas a matéria vida era tão fina.

O que é que a cajuína tem?

A cajuína é mais, bem mais que uma bebida cristalina e saborosa, quando servida à mesa, bem gelada. É natural, clarificada e esterilizada, preparada a partir do suco de caju e a cor amarelo-âmbar provém da caramelização de seus açúcares naturais. Pela técnica artesanal de produção, passada de geração a geração, e por ser, ela própria, uma realidade na economia do estado, virou, assim, um símbolo da cultura popular do Piauí.

Para se ter uma ideia, são mais de 200 associações de produtores de cajuína nesse estado, que juntos produzem mais de 4 milhões de garrafas da bebida por safra (referente aos meses de setembro, outubro e novembro). É também no Piauí a maior área de plantação de caju do Brasil. O caju se dá bem por essas terras. Não existem estatísticas atualizadas, mas de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, este é um segmento agrícola que movimenta cerca de 37 mil empregos diretos no campo e um volume de quase R$ 70 milhões por ano.

Além de ser uma bebida refrescante, a cajuína tem vários benefícios a saúde. É rica em vitamina A e C – tem até cinco vezes a quantidade de vitamina C necessária por dia. tanino, elemento presente na cajuína, ajuda a prevenir doenças cardíacas e circulatórias, fortalecendo as artérias e veias. Outro benefício recentemente encontrado na cajuína é a a prevenção de danos ao DNA. A pesquisa da doutora Ana Amélia, da Universidade Federal do Piauí, revelou que o caju e a cajuína oferecem proteção contra a mutagênese induzida por agentes oxidantes e formadores de alterações ao DNA. bebida não contém aditivos químicos artificiais em sua composição e produção.

 

(Publicada na Revestrés#09 em julho-agosto de 2013)