Texto de abertura e edição: Victória Holanda | Fotos: Maurício Pokemon | Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Maurício Pokemon, Samária Andrade, Victória Holanda e Wellington Soares. Convidadas: Jasmine Malta e Fabíola de Azevedo Lemos.

No dia 14 de dezembro de 1979, às 17h, Marcelo Rubens Paiva subiu em uma pedra e gritou: “Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado”. Aos 20 anos, pulou com a pose do Tio Patinhas, bateu a cabeça no fundo do lago e quebrou a quinta cervical – acidente que o deixou tetraplégico.

Essa história está contada em Feliz Ano Velho (1982), livro que se tornou best-seller e foi ganhador do Prêmio Jabuti (1993). A experiência autobiográfica conta, com despretensão, informalidade e doses de humor, a vida estudantil no curso de Engenharia Agrícola da Unicamp, os casos amorosos, a carreira musical e lembranças da infância, inclusive o dia em que, aos 11 anos, na cidade do Rio de Janeiro, onde morava, os militares invadiram sua casa e levaram seu pai, mãe e irmã. Eliana Paiva, de 15 anos, foi solta 24 horas depois. A mãe, Eunice Paiva, foi liberada 12 dias depois. O engenheiro civil e ex-deputado federal socialista cassado pelo Golpe de 1964, Rubens Paiva, nunca mais voltou para casa.

Enquanto Eunice Paiva, exigindo notícias do marido, ouvia explicações do tipo “Seu marido está em Fernando de Noronha. Eu mesmo o levei até lá”, “Está preso no Xingu e passando bem”, “Está internado num hospício como indigente” ou “Está exilado no Uruguai, esperando um momento melhor pra voltar”, a família foi obrigada a voltar para São Paulo, onde Marcelo Rubens Paiva nasceu e morou até os seis anos de idade.

Foto: Maurício Pokemon

Foto: Maurício Pokemon

Mais de 30 anos depois, os fatos foram retomados em Ainda estou aqui (2015), livro que tem Eunice Paiva como protagonista de uma trama em que é mãe de cinco filhos e passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso, torturado e morto por agentes da ditadura. Lutou pela verdade, pelas causas indígenas e, por fim, lutou contra o Alzheimer.

No período entre estes dois títulos, Marcelo formou-se em Rádio e TV pela USP, passou a trabalhar em televisão como produtor, diretor e apresentador na TV Gazeta e na TV Cultura. Depois de ter estudado no Centro de Pesquisa de Teatro (CPT) com o diretor Antunes Filho, escreveu peças como 525 Linhas (1989), No Retrovisor (2003), Amores Urbanos (2016) e E Aí, Comeu? (1998), peça com a qual ganhou o Prêmio Shell de melhor autor em 2000.

Trabalhou como colunista dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo, morou nos Estados Unidos como bolsista da Stanford University, na Califórnia, e escreveu para a TV Globo episódios do seriado Sexo Frágil e para quadro do programa Zorra Total. Foi quatro vezes finalista do prêmio de melhor roteiro pela Academia Brasileira de Cinema e ganhou o prêmio Cinema da Academia Brasileira de Letras pelo roteiro de Malu de Bicicleta (2012), além de ser autor de livros como Blecaute (1986), Bala na Agulha (1992), Não És Tu, Brasil (1996) e Meninos em Fúria (2016).

Em Teresina para participar do Salão do Livro do Piauí – Salipi, Marcelo Rubens Paiva nos esperava em um restaurante da cidade. No meio da entrevista, quando perguntávamos se o autor vinha acompanhando os debates feministas, a escritora Thalita Rebouças, também participante desta edição do Salão e acompanhada por sua equipe, pediu licença para pegar autógrafos. “Momento tietagem. Desculpa tá, gente? É que estamos atrapalhando uma entrevista para pegar o autógrafo dele”, disse, gravando uma live para as redes sociais. “Ontem me ligaram para tomar uma saideira. Não tenho mais idade pra isso, cara. Ah, se fosse em outros tempos…”, contou Marcelo quando elas se despediram.

Usando camisa comemorativa ao centenário da Revolução Russa, Marcelo Rubens Paiva se diz apoiador dos movimentos sociais, faz autocrítica e acha que não dá para frear o avanço do pensamento de direita no Brasil. “Eu sou admirador da Revolução Russa. Errou, errou muito, sabe? Mesmo! Crimes… Mas eu sou admirador do pensamento marxista, do movimento revolucionário, do pensamento de esquerda. Eu sou um homem de esquerda”.

Tendo sido presidente do Centro Acadêmico de Engenharia Agrícola e integrante da diretoria do DCE da Unicamp quando estudante, Marcelo filiou-se ao PT logo após sua fundação, em 1980. Hoje, tece críticas ferrenhas ao partido. “Eu vi o Lula falando: ‘Nunca o PT foi tão necessário’. A vontade que eu tenho de responder é: ‘Nunca o PT foi tão necessário que acabasse’”, diz. “Eu sabia que o projeto do PT ia falir, tinha certeza absoluta disso”.

Usa com frequência a palavra “absolutamente” quando quer dar ênfase a uma ideia e diz não ter medo de Bolsonaro para a eleição de 2018. “Ele é uma pessoa absolutamente desprezível. Tem seus seguidores, mas basta ver o que ele fez ou escreveu para você criar um julgamento claro”. Hoje, aos 58 anos, com dois filhos e casado com a filósofa Silvia Feola, diz que o Brasil é complacente com a preguiça, e que não superou nada porra nenhuma. “Eu vou confessar para vocês: Eu não superei porra nenhuma!”.

Foto: Maurício Pokemon

Samária – O sucesso de Feliz Ano Velho, que marcou uma geração no início dos anos 1980 e lhe tornou um ídolo pop, o surpreendeu? De que forma? O que esse livro significa pra você? 

Marcelo Rubens Paiva – A única pessoa que sabia que o livro ia vender em torno de 10 mil cópias era o editor Caio Graco. Ele foi até minha casa e falou: “Escreva o livro sobre isso que você está vivendo”. Ele não me pediu para escrever um livro sobre como é ser filho de um desaparecido político. Eu falei: “Mas Caio, quem vai se interessar por uma questão tão agressiva, violenta e trágica que aconteceu com um garoto de 20 anos?” Quando você sofre um acidente como o meu… Aliás, como o da maioria, né? Você não sabe como vai ficar. Não teve nenhum médico que chegou para mim e falou: “Você está tetraplégico, sua vida vai ser assim e assado”. Ainda mais nos anos 80, em que ainda não havia nem Símbolo Internacional de Acesso (representado por uma cadeira de rodas branca sobre fundo azul, instituído pela ONU em 1981, Ano Internacional das Pessoas Deficientes). E, aí, eu peguei quatro ícones literários: Machado de Assis, com Brás Cubas, o primeiro autor bra-si-lei-ro (fala separando as sílabas) que escreveu em brasileiro e não em português. Peguei O Apanhador no Campo de Centeio, um livro do Salinger (Jerome David Salinger, escritor norte-americano). Coitado do Salinger! Morreu sem ser reconhecido como um grande autor. O problema do Salinger é o mesmo problema do Lima Barreto. O Salinger não era beat, ele foi sucedido pela força da literatura beat. E não era Geração Perdida do Hemingway (Ernest Hemingway, escritor norte-americano, conhecido por obras como Por Quem os Sinos Dobram), do Fitzgerald (F. Scott Fitzgerald, romancista, contista, roteirista e poeta norte-americano). Ele era depois, ele tá no meio-termo e isso para o mercado é muito cruel porque, se o mercado não encontra o que é você, você se torna, praticamente, um pária da literatura. É o que ocorreu com o Salinger. Com o Lima Barreto também. Ele nasceu em um momento posterior ao Realismo e anterior aos modernistas. E o Lima Barreto, para mim, é o segundo maior autor brasileiro. Absolutamente genial! A literatura tem esse paradoxo de ser um ambiente de muita liberdade criativa, muito mais que o teatro, o cinema, a televisão. Você não tem amarra nenhuma e isso é uma coisa que, autores como eu, que não são presos no sucesso, apegam-se a isso de uma forma quase como condutora da nossa literatura.  

Victória Ainda sobre Feliz Ano Velho, há passagens no livro em que você reconhece atitudes machistas. Você tem acompanhado discussões sobre os movimentos feministas? 

Como deficiente, sofro muito preconceito e isso me revolta. Então eu me identifico totalmente com o movimento das mulheres, dos negros, dos homossexuais.  

MRP – Muito, muito. Até porque minha mulher é feminista, minhas irmãs são feministas, minha mãe era uma feminista. Não sou de uma geração que assedia as mulheres como fez o José Mayer, que culpou a geração: “Ah, minha geração…”. Não, mentira. Não é a geração, é o caráter mesmo. Não é não e pronto. A gente vive em uma realidade em que nunca tinha olhado para isso com a atenção que merece. As mulheres, no Brasil, até demoraram um pouco a nos alertar. Como morei nos Estados Unidos já tinha noção do problema do assédio. A minha mulher me ensinou muita coisa, como a gravidade do assédio no trabalho, assédio nas universidades, assédio no metrô, nos ônibus. Eu tenho uma peça chamada E aí, comeu? que, na verdade, não é sobre a cultura do estupro, é o contrário, é uma crítica a ela. São três machões que são destronados por uma mulher e humilhados no final da peça, depois de horas de discurso machista. Não tenho a menor vontade de remontá-la, justamente, por causa disso. Eu não quero fazer parte de nenhum movimento que desrespeite as mulheres. Tenho quatro irmãs em casa, uma mãe muito militante, casei com mulheres muitos antenadas – casei duas vezes-, eu tenho muitas amigas e isso me muda como homem. Eu tenho adorado as iniciativas de mulheres muito corajosas que rompem com a barreira do machismo, do medo, da vergonha e expõem o abusador. Quando um amigo vem fazer uma piada homofóbica ou sexista, eu já me incomodo, já peço pra parar. Eu me incomodo com a agressividade contra as pessoas… Antigamente a gente dizia minorias, né? Vou dizer oprimidas, tá? Eu não acho um movimento chato. Eu não acho o politicamente correto chato. E Feliz Ano Velho tem esses problemas, mas eu não posso fazer nada em relação a isso porque eu escrevi o texto em 1982. Para você ter uma ideia, em 1982 falar “crioulo” era menos agressivo que falar “negro”. No livro, eu uso a palavra “crioulo”. Nos últimos tratamentos eu tirei essa expressão. É um aprendizado porque são novos tempos. Vivemos o tempo do respeito às diferenças. Eu, particularmente, como deficiente, sofro muito preconceito e isso me revolta. Então eu me identifico totalmente com o movimento das mulheres, dos negros, dos homossexuais.  

André – Por conta de seu posicionamento, muita gente reclama que você é um tanto rabugento, às vezes, por ser crítico e por ser militante. Tendo em vista o que tem acontecido no Brasil e no mundo, de um modo geral, você acha que não temos outra escolha, que é preciso ser assim?  

MRP – Tem uma coisa no brasileiro que me incomoda muito: brasileiro não fala a verdade, brasileiro mente. Se você fala a verdade, no Brasil, você é censurado. Você pede uma informação na rua e o rapaz é incapaz de dizer: meu irmão, eu não sei. Não, ele fica sem graça e fala: “Entra a primeira à esquerda e sobe à direita”. E é mentira. O empregado, às vezes, mente para o empregador porque fica sem graça. O marido mente para a mulher porque fica sem graça. Faz tempo que eu não sou rabugento. Isso aí é uma visão da época em que eu fazia televisão. Mas por quê? Porque na televisão eu exigia que as pessoas fossem elas mesmas e elas não eram. Eu tinha um programa, nos anos 90, na TV Cultura. A plateia era de estudantes e, no final, abria para perguntas. Só que eles faziam as mesmas perguntas, e perguntas preguiçosas. A primeira sempre era: “Como você começou sua carreira?”. Eu falava: “Não, não, não, faz outra pergunta”. Foi daí que surgiu a fama de rabugento. As pessoas diziam “Ah, tem que tratar bem o estudante jovem”. E eu tinha menos de 30 anos, eu era jovem também. Eu não tinha essa complacência. Hoje em dia eu tenho, se você me lê no twitter, vai ver que eu sou paciente pra caramba com as pessoas. Às vezes me fazem umas perguntas: “Onde eu acho seu livro?”. Eu digo: “Você já ouviu falar de um negócio chamado livraria? Uma coisa chamada internet?” Eu não respondo isso, mas eu acho que é uma falta de respeito com o escritor você perguntar esse tipo de coisa. São pessoas acostumadas a receber uma cultura mastigada e a literatura é uma busca pelo pensamento, é uma realidade contada por outra pessoa, você precisa imaginar. Eu acho que o Brasil é muito complacente com a preguiça. 

Jasmine – Ser escritor mudou em que a sua trajetória? Além disso, ao circular pelo Brasil em eventos literários e culturais, você tem notado que as pessoas estão realmente lendo mais ou estão mesmo ficando na superficialidade dos debates? 

Mataram meu pai, mas, até hoje, não sei por que não mataram minha mãe ou minha irmã. Foi um rasgo na minha alma. Ainda estou aqui é um livro que nasceu da necessidade de voltarmos ao tema da ditadura, as pessoas não sabem o que foi a ditadura militar.

MRP – Ser escritor não mudou muito porque eu fazia faculdade de Rádio e TV. Eu escrevia contos, roteiros, projetos de cinema e teatro e, inclusive, depois de Feliz Ano Velho, eu fui trabalhar em televisão, na TV Cultura, na TV Gazeta, com a Olhar Eletrônico (produtora independente criada, entre outros, por Fernando Meirelles, em 1981). Ser escritor me deixou famoso, mas isso não alterou muito, eu continuei sendo o que eu sempre fui. Eu sou de uma época em que ser famoso não era mérito algum, pelo contrário, era demérito. Meu último livro, Meninos em fúria, fala sobre isso. Fala de uma época em que fazer sucesso não tinha a menor diferença, o importante era o que a gente queria dizer. Importante era você expressar sua dor da forma mais livre possível. Aliás, sucesso até atrapalha. Comparando: quando um autor ganha um prêmio Nobel ele acha que morreu. Tudo que ele fizer de agora em diante tem que ser digno de um Prêmio Nobel. E, às vezes, eu não tô com vontade de ser digno de prêmio algum. “Preferia não ter ganho”, muitos falam isso. Fazer sucesso mata o escritor porque passam a ter uma expectativa em torno do 2º, do 3º livro, que o tiram a independência de ser um desconhecido analisando a sociedade de uma forma absolutamente isenta, sem autocensura. Então, eu sentia muita falta do fazer literário. De me trancar, de viver uma realidade paralela. É como uma droga, é como um videogame. Você transforma alguns minutos do seu dia a dia em outro universo, que é o universo dos seus personagens, da sua trama, do ambiente que você tá, da sua pesquisa. Tanto que no começo da minha carreira eu lançava um livro a cada quatro anos. Quando eu vi que Feliz Ano Velho fez sucesso eu deveria ter escrito um livro a cada ano. Eu escrevi Blecaute quatro anos depois. Escrevi Bala na Agulha seis anos depois. Fiz a peça No Retrovisor, fiz a peça E aí, comeu?, crônicas para o jornal Folha de S. Paulo, programas de televisão… Aí fui morar nos Estados Unidos e voltei literato, com vontade de escrever sobre meu pai. Eu lancei Não és tu, Brasil, que é um livro sobre o período em que meu pai foi preso. Lancei alguns livros sobre casamento e separação e lancei Ainda estou aqui, que foi uma retomada do Feliz Ano Velho. Em outro estilo, outro formato, um pouco mais amadurecido. Mataram meu pai, mas, até hoje, não sei por que não mataram minha mãe ou minha irmã. Foi um rasgo na minha alma de um jeito que poucas crianças experimentaram. E o meu acidente, aos 20 anos de idade, foi outro rasgo. Dessa vez vertical, como um personagem de Tarantino, que leva uma espadada de cima a baixo. Ainda estou aqui é um livro que nasceu da necessidade que nós, escritores, historiadores, tínhamos de voltar ao tema da ditadura quando a gente percebeu que as pessoas não sabiam o que foi a ditadura militar. Principalmente a partir de 2013, com esses movimentos que pediam a volta da ditadura, a intervenção militar, ou defendendo generais e torturadores. Descobrimos que as novas gerações não sabem o que foi a ditadura e nós, os velhos escritores, cineastas, professores e acadêmicos, precisávamos retomar o tema porque não é possível que a gente tenha parado o debate sobre a construção do Brasil nesses anos todos.  

André – Você falou dessa “necessidade” dos escritores e intelectuais informarem essa geração que não discutiu o tema. Você acha que ainda dá tempo de evitar esse avanço do pensamento de direita? 

MRP – Não. Eu acho que a direita avançou porque é um espaço que foi deixado vago pela incapacidade da esquerda de mobilizar, pela falta de moral da esquerda de mobilizar. Sem falar no descrédito da política em todos os poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Foi revelado que o Brasil estava tomado por uma corrupção endêmica enraizada como uma praga no projeto de nação – esse é o momento perfeito para nascer o movimento de direita extremista. Se dá pra frear? Não, não dá pra frear. É um movimento que vai ter sua importância política como tem na França, como tem nos Estados Unidos e até em países como a Holanda. Sempre vai haver a extrema direita, o preconceito contra o estrangeiro, o movimento mais individualista, de pessoas que querem apenas que sua família tenha conforto e dane-se o outro. O resultado das eleições agora, na França, (Emmanuel Macron venceu a candidata da extrema-direita, Marine Le Pen, tendo sido eleito presidente da França) já deu uma mudada. O impeachment de Collor (Fernando Collor de Melo, ex-presidente do Brasil e atual senador pelo estado de Alagoas) foi isso. Perceberam a burrice que foi botar um ser politicamente estranho e absolutamente louco. Não dá pra frear, mas dá para esclarecer melhor os princípios fundamentais do centro e da esquerda. Hoje, não tem nenhuma corrente política no Brasil capaz de fazer isso. Eu vi o Lula falando: “Nunca o PT foi tão necessário”. A vontade que eu tenho de responder é: “Nunca o PT foi tão necessário que acabasse”. O Brasil tinha que refundar a política como foi feito na Itália que, apesar de ter dado no Berlusconi (Silvio Berlusconi, empresário bilionário, político neoliberal italiano e ex-presidente do Conselho de Ministros da Itália), deu no PD, que é o Partido Democrata. A gente está vivendo uma catástrofe. Daqui a três anos, ou mais, pode ser que volte a ser um país com uma figura mais digna no cargo. Não tenho medo do Bolsonaro, ele é uma pessoa absolutamente desprezível, que tem seus seguidores, mas basta ver o que ele fez ou escreveu para você criar um julgamento claro. E é totalmente explicável porque era até estranho não ter uma direita organizada no Brasil. Por que não tinha? Porque eles eram aliados da tortura, da ditadura, aliados do Nazismo. O que eles estão fazendo agora? Eles dizem que o Nazismo é um movimento de esquerda, que é uma forma de distanciar o pensamento de direita do Neofascismo – e não existiu homem mais de direita no mundo do que Hitler, né? 

Eu sou de uma época em que ser famoso não era mérito algum, era demérito. O importante era o que a gente queria dizer. Quando um autor ganha um prêmio, acha que tudo o que fizer agora tem que ser digno de prêmio. E, às vezes, eu não tô com vontade de ser digno de prêmio algum.

Wellington – O Stanislaw Ponte Preta (pseudônimo de Sérgio Porto, escritor, radialista e compositor brasileiro) cunhou uma expressão muito conhecida, que é “samba do crioulo doido”. Você vê o Brasil, hoje, nessa situação? Eu gostaria que você analisasse o papel do Judiciário e como a cultura pode contribuir no fortalecimento da democracia. 

MRP – Primeiro eu queria falar que eu não vou usar essa expressão “o samba do crioulo doido” porque eu não uso mais. Nem “mulato” porque vem de mula. Mas eu acho que vivemos esse momento de não saber o que vai acontecer amanhã. A crise é nos três poderes: era no Executivo, foi para o Legislativo e agora manchou o Judiciário. Eu comparei a dois momentos históricos brasileiros muito vexatórios, que foram: as Diretas Já, em 84, rejeitada pelo Congresso – apesar das manifestações de milhões nas ruas – e a bomba no Riocentro (frustrado ataque ao Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro, em abril de 1981, organizado por ala à direita do Exército, quando se comemorava o Dia do Trabalhador, durante o período da ditadura militar). Então, já tem o Moro, que é uma figura bastante comprometida com sua obsessiva perseguição ao Lula, tem aqueles promotores, Dallagnol (Daltan Dallagnol, procurador da Lava Jato), que também não tá fazendo justiça jurídica, né? Tanto que o Aécio, o PSDB, o próprio Temer e o PMDB só foram pegos pela Procuradoria Geral da República numa outra operação. E todos nós sabemos que a contaminação na política brasileira é apartidária, que a PETROBRAS tinha esse caixa com o PP, PMDB e PT, que o metrô de São Paulo, as marginais e o Rodoanel sempre foram questionáveis, que os estádios da Copa do Mundo foram superfaturados… 

Wellington – E a cultura? Como a cultura pode contribuir? 

MRP – A cultura é fundamental para discutir isso que nós estamos vivendo. Agora vivemos a meta apenas de lucrar e de ter visibilidade, no formato do amor, da paixão e do melodrama. Acho que o cinema ainda tem bastante independência pra mexer nesse vespeiro, e a literatura… Você sabe por que eu voltei a escrever? Quando eu fui a Palmas, ainda não tinha uma livraria. Uma capital de estado que não tinha livraria! Fui para falar do meu livro Não és tu, Brasil, e quando olhei para aquele auditório lotado pensei: “A literatura chega até aqui”. Então, como a literatura é importante num país que tem as dimensões do Brasil, como ela é fundamental para o debate brasileiro.  

Vou confessar para vocês: eu não superei porra nenhuma! Até hoje me enche o saco cadeira de rodas, carros que não consigo entrar, festas que não consigo subir escadas… É um saco! Mas é a vida! Não existe a felicidade, assim, da forma como as pessoas imaginam, é mentira.

Fabíola – Em tempos de culto máximo à excelência, como você avalia o narcisismo humano na atual geração e a que ponto isso trouxe implicações para a cultura? 

MRP – Olha, é grave. É uma nova epidemia. O “eu, eu, eu”. Na escola a gente aprende aquelas divisões literárias mais superficiais que a crítica reducionista gosta de criar: Romantismo/Realismo, Realismo/Modernismo. Eu me lembro de um professor falar que havia uma alternância entre o “eu/nós” nesses movimentos. Se você pegar a eleição americana, sempre tem o “eu/nós”. “Nós” do Clinton e “eu” do Bush. “Nós” do Obama e “eu” do Trump. Esse egoísmo/altruísmo está sempre se renovando. E nós estamos vivendo na época do “eu” de uma forma absolutamente intensa e epidêmica. Em todas as esferas, não só na literatura, em tudo. Vou te dar um exemplo: Ivete Sangalo. Ivete Sangalo é a maior rainha do Brasil, a grande expressão da música brasileira, aqui e fora do Brasil. Ela veio da Bahia, que é um celeiro de música, expressões e estilos, onde nasceu o Tropicalismo, onde nasceu Dorival Caymmi, onde nasceu Raul Seixas, onde nasceu o trio elétrico de Dodô e Osmar, Novos Baianos – que eu acho que foi o primeiro rock brasileiro, mais até do que os Tropicalistas. Aí você pensa: a Ivete Sangalo é uma fomentadora do axé. Mas não, ela é uma fomentadora da música de sucesso. Ela chama autor de sucesso, é amiga do sertanejo, das duplas caipiras, só canta sucesso, ela não canta músicas no seu estilo musical. Ela não é fomentadora de uma linguagem, de um estilo, de um discurso, de um ideal. Ela é fomentadora do sucesso. A Ivete Sangalo, nos anos 80, seria absolutamente execrada. Execrada! Não era “sai do chão”. Ninguém saía do chão. Há uma reprodução do “si”, do “eu”, do sucesso, da glória, da fama, do dinheiro, do consumo. Que foi, inclusive, alimentada pelo PT. Foi o Lula, com o seu programa de distribuição de renda, cedendo às classes menos favorecidas o direito de comprar carro – que é uma coisa absurdamente criminosa para as cidades. Tinha que ser outro tipo de desenvolvimento proposto: metrô, bicicleta, transporte coletivo, empreendedorismo orgânico. Mas não! Era carro, micro-ondas, geladeira. Individualidade! Essa contaminação está também na política, na literatura, na música e, principalmente, na televisão. Estamos vivendo um vazio cultural que não é no mundo todo, não. É no Brasil! Somos um povo que não lê, somos um povo que não vai ao teatro, um povo que acha educação uma coisa chata, pais que não têm livros em casa, mas tem uma televisão na sala. Eu tô muito pessimista com o Brasil. Sempre estive, né? Mas agora eu estou muito. Eu sabia que o projeto do PT ia falir, tinha certeza absoluta disso.  

Fabíola – Estudantes do Brasil se reuniram em junho (55º Congresso da UNE, de 14 a 18 de junho em Belo Horizonte-MG) para discutir mecanismos de resistência contra o momento de perdas de direitos, cortes de verbas para educação e avanço do fascismo no Brasil. Você, que nasceu e cresceu em um ambiente em que os debates políticos sempre se fizeram presentes, tem boas perspectivas sobre o protagonismo do movimento estudantil para o avanço da democracia no Brasil? 

MRP – Eu sou um defensor dos movimentos sociais. O mundo só muda com pressão dos movimentos sociais. Na Europa foi assim. Você fala: “Ah, a qualidade de vida do europeu”. Foi graças aos movimentos sociais. A UNE tem um papel muito importante a cumprir, mas não pode ser sectária. Tem que representar, de fato, a opinião da maioria, estudantes do Brasil todo. Ela não pode ser de um partido só, de uma corrente ideológica só. Por exemplo, o Salipi (15º Salão do Livro do Piauí, em Teresina-PI) convidou o Pondé (Luiz Felipe Pondé, filósofo e escritor brasileiro). Tem que convidar o Pondé sim, senhor. Como tem que convidar o Olavo de Carvalho (escritor, jornalista, filósofo e um dos principais representantes do conservadorismo brasileiro). Tem que convidar os pensadores da direita. Eu gostaria de entender o Pondé, eu gostaria de entender o Olavo de Carvalho. Posso concordar como posso não concordar. Assim como eu quero que eles me leiam. Como leiam Jorge Amado, que foi do Partido Comunista Brasileiro. Graciliano Ramos, que foi do Partido Comunista Brasileiro. O Antônio Cândido, que foi do Partido Socialista Brasileiro. Eu quero que eles leiam Brecht (Bertolt Brecht, dramaturgo alemão) que morou na Alemanha comunista, em Berlim. Quero que leiam Nelson Rodrigues, que foi um homem polêmico durante a ditadura, que nunca reconheceu a tortura, apesar de seu filho estar preso e sendo torturado. Eu quero que leiamos Borges (Jorge Luis Borges, escritor, poeta, crítico e ensaísta argentino), que nunca denunciou os crimes da ditadura argentina. Eu quero que leiamos García Lorca (Federico García Lorca, poeta e dramaturgo espanhol, vítima da Guerra Civil Espanhola), Hemingway, Maiakovski (Vladimir Maiakovski, poeta, dramaturgo e teórico russo também chamado de “o poeta da Revolução”). Eu quero que se leia todas as correntes. E Olavo de Carvalho. E Pondé. Por que Olavo de Carvalho também não é lido nas escolas? Aí a direita cresce e todo mundo se surpreende de saber que existe uma direita. Talvez a gente tivesse mais condições de dialogar com essas pessoas. Claro que daí vem as aberrações geopolíticas que defendem a intervenção militar, os bolsominions (expressão utilizada na internet referente aos apoiadores de Jair Bolsonaro), que acham que Brilhante Ustra (primeiro militar a ser reconhecido, pela Justiça, como torturador durante a ditadura) era um herói, quando eu, especialmente, tenho muitos amigos torturados pelo Brilhante Ustra. Claro que tem essas aberrações, como tem na esquerda também. As Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), que sequestrou a coitada da Ingrid Betancourt (Betancourt era candidata ecologista à presidência da Colômbia quando foi sequestrada, em 2002). Eu não concordo com as Farc. Eu não concordo com o terrorismo. Sempre achei uma luta insana você atingir os civis. Quando saiu, na Alemanha, Lista de Schindler (1993), de Steven Spielberg, a juventude lotou os cinemas. Eu estava lá. Eu tenho amigos alemães de várias gerações que reclamam não conseguir debater com os pais sobre o Nazismo. Nem nas escolas, porque era um assunto proibido. E, durante o pós-guerra, o Nazismo foi um assunto proibido. Um tabu, por gerações. Tinha filas na porta do cinema porque as pessoas foram ver o que tinha acontecido. Voltaram para casa e perguntaram para os pais: “Mas, vem cá, o que aconteceu naquela época? O Hitler foi eleito? Vocês sabiam que ele tinha um projeto de limpeza étnica?”. E os pais tiveram que se explicar, depois de décadas. Estamos falando de 1993. A guerra foi em 1945, são 50 anos. Para você ver como, de repente, um filme sobre a ditadura feito de uma forma que consiga penetrar nos corações e mentes do jovem brasileiro… O movimento dos Caras Pintadas (movimento que pedia pelo impeachment de Collor) nasceu vendo aquela série (Anos Rebeldes, 1992, Rede Globo) com a Malu Mader, com a Cláudia Abreu, sobre a revolução, luta armada, rebeldia, sobre querer mudar o Brasil.  

As coisas ficaram paralelas: minha mãe com Alzheimer e meu filho crescendo. Minha mãe perdendo a memória e meu filho adquirindo memória.  Ainda estou aqui é um livro sobre memória.

Wellington – Sua vida, de certo modo, foi marcada por tragédias. Teve a perda do seu pai, que foi morto pela ditadura, depois veio o acidente com você e, depois, não deixa de ser uma tragédia, o Alzheimer atingindo sua mãe. Mesmo com todos esses acontecimentos, você é feliz? E de que forma seus filhos são importantes nessa reconstrução? 

André – Pegando carona: Nós somos da mesma geração e, na minha juventude, meus amigos todos andavam com seu livro. Eu tive casos na família de gente que sofreu acidente parecido e, durante algum tempo, seu livro foi tratado como um exemplo de superação. Você gosta disso ou não tem nada a ver? 

MRP – Eu nunca vou censurar o que o leitor acha da minha obra. Quem sou eu pra dizer: “Não, não é isso”. Se o leitor acha que é um exemplo de superação, então ache. Se não acha um exemplo de superação, não ache. Se é um exemplo de superação? Eu não sei, nunca acreditei nisso. Eu fui um dos diretores da cerimônia paraolímpica ano passado (Jogos Paralímpicos Rio 2016) e, na primeira reunião, falei o seguinte: “Está proibida a expressão ‘superação’”. Porque eu vou confessar para vocês: eu não superei porra nenhuma! Até hoje me enche o saco cadeira de rodas, correr para ir ao banheiro, chegar a uma cidade e minha cadeira de rodas estar quebrada, carros que não consigo entrar, festas que não consigo subir escadas, dores lombares, as doenças pela condição de lesionado medular… É um saco! Adoraria não ter tido isso! Não superei porra nenhuma! Como não superei a morte do meu pai e como me entristece o Alzheimer da minha mãe. Mas é a vida! Ninguém vai chegar para um paratleta e falar de exemplo de superação. Não, é a vida. Tem cara que ficou paratleta e tem cara que não ficou. Agora, se o leitor quer ver como um exemplo de superação, deixa… Numa primeira leitura é um cara que sofreu um acidente, escreveu um livro e virou sucesso. Se tivesse sido um fracasso, não teria mudado nada. Eu teria continuado fazendo faculdade de Comunicação na ECA, eu ia fazer curso de teatro, eu iria trabalhar em televisão, eu iria ser do mesmo jeito. Ser sucesso me deu portas, mas não bastou. Muita gente teve sucesso e não bastou porque não basta, é uma ilusão. Quantas bandas de rock têm uma música só? Quantos autores têm um livro só? Quantos cineastas têm um filme só? Ninguém é feliz e de bem com a vida, gente. Alguém é feliz e de bem com a vida? Você vê milionários se matando. Você vê cantores ou escritores que atingem o sucesso e se matam. Não existe essa felicidade plena. O que existe são momentos. A vida é cíclica. Estou em um momento muito feliz porque tenho dois filhos pequenos que têm me ensinado muito. Eu mudei, eu sou um pai agora. Convivendo com eles, eu repenso toda a minha vida. E aí as coisas ficaram paralelas: minha mãe com Alzheimer e meu filho crescendo. Minha mãe perdendo a memória e meu filho adquirindo memória. Tanto que Ainda estou aqui é um livro sobre memória. Não é um livro sobre a ditadura. Mas não existe a felicidade, assim, da forma como as pessoas imaginam que ela pareça, é mentira. Você acha que o Tom Brady acorda todo dia e pensa: que bom que eu sou casado com a Gisele Bundchen? Ou você acha que tem dias que ele chega em casa e fala: “Que saco, como ela tá chata essa semana!”. Você acha que ela acorda todo dia sorrindo? Não, ela sorri para as fotos, é uma profissional. Ela tem suas angústias, suas depressões. Não tem artistas que se matam no começo do sucesso? O Kurt Cobain? Se a pessoa acha que chegar ao sucesso é ser feliz, ela está errada, porque não é.

(Entrevista publicada na Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017)

Convidadas: Jasmine Malta, mestra em Letras, professora e uma das organizadoras do Salipi; e Fabíola de Azevedo Lemos, socióloga e professora.