(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Nayara Felizardo, Maurício Pokemon e Antonio de Noronha)

Típico domingão em família. Música, churrasco, piadas, calor, os sobrinhos chegando e beijando o casal que recebe a todos: Marinalva e Quitéria. Lésbicas, elas estão entre os casais homossexuais que vem crescendo em quantidade e dados imprecisos no Brasil. Marinalva e Quitéria têm hoje o apoio da família, uma realidade que não é comum a todos. “Tem muito gay que tá na periferia, pegando porrada, sendo discriminado, desempregado, sendo expulso de casa, deixando de freqüentar a  escola por conta de bullying”, afirma Marinalva.

E não foi fácil pra ela. Ainda garota, morando no centro, costumava ir para a escola a pé. Teve que inventar um caminho mais distante para evitar um inconveniente. Conhecendo seus horários, um vizinho, mais preciso que um relógio, se dispunha a gritar da janela sempre que ela passava: “Ei, sapatão!”. E com a família? – perguntamos. Essa é a resposta mais reticente de Marinalva. O pai acabara de chegar na varanda onde conversávamos. Ele escuta um pouco da conversa e se distancia. Marinalva então conta que precisou criar o “Grupo Matizes” para conseguir verbalizar sobre a sua condição.

O Matizes, organização LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), foi criado em 2002 com o objetivo de defender direitos e combater preconceitos. Hoje tem cerca de 50 filiados e é conhecido em todo o Brasil pelas conquistas que alcançou, como a criação do Disque Cidadania Homossexual e da Delegacia Especializada de Combate às Condutas Discriminatórias – primeira do país voltada a homossexuais, negros, deficientes e portadores de HIV/Aids. “Nós passamos o ano todo procurando os poderes constituídos, lutando por políticas públicas, nos reunindo com gestores. É um trabalho de formiguinha”.

Com influência das pressões do Matizes, o Piauí também foi o primeiro estado brasileiro onde contribuintes da Receita Federal que são homossexuais puderam incluir seus companheiros na declaração do imposto de renda.  O grupo ainda está envolvido na criação da lei que reconhece as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Até a data desta entrevista Teresina registrava 13 casamentos homossexuais, sendo dois entre homens e os demais entre mulheres. O interior do Estado também já realiza esses casamentos, mas os dados estão dispersos.

IMG_7595Marinalva enxerga o movimento LGBT de forma ampla, como um processo político e social, mas revela também preocupação e tristeza com os rumos que o movimento social vem adquirindo no Brasil. Aos 42 anos, formada em Direito e Letras, ela trabalha no Judiciário em Teresina e dá aulas de português numa escola pública estadual do Maranhão. Mora com sua companheira Quitéria, servidora da Prefeitura de Teresina, na casa que construíram em Timon. O local é um pequeno sítio, onde estão duas casas (a outra é ocupada pela mãe de Marinalva) e uma piscina que reúne sobrinhos e amigos.

Separados há uma década, os pais de Marinalva se encontram nas reuniões de  família. Seu Salustiano é dono de pensão na área hospitalar de Teresina. Dona Davina foi dona de trailer de lanches na Universidade Estadual do Piauí, Uespi, até a família achar que era hora de descansar e comprar o sítio.

Marinalva é a terceira de nove filhos, seis homens e três mulheres. Única homossexual? – “Assumida, sim” (risos). A família é toda de São Raimundo Nonato, a terra da Serra da Capivara, distante 576 quilômetros da capital do Piauí, Teresina.

No final da entrevista é Quitéria, orgulhosa, quem mostra a casa, simples, sem luxos, acolhedora. Na varanda, enfeites de artesanato na parede e o som do sinalizador de ventos. Na sala que se junta a cozinha, uma estante com premiações que Marinalva já recebeu. Na despensa, mais livros de Direito que mantimentos. No banheiro, cremes para cabelos cacheados. O quarto do casal é o mais amplo. Quitéria faz sinal de silêncio. O pai de Marinalva dorme numa rede, após a fartura do almoço: galinha a molho pardo e pirão, preparados por Dona Davina. Típico domingão em família.

André – O movimento LGBT do Piauí é referência para muitos lugares no Brasil, especialmente pelas conquistas na área jurídica. A que você atribui essa posição de vanguarda?

MS – O Piauí é um estado paradoxal. Às vezes é província, mas tem se mostrado bastante aberto para o debate sobre os temas LGBTs. Acho que a militância, tanto do Matizes como de outros grupos, tem papel importante nisso. No Matizes fizemos a  opção de ser um movimento social, com autonomia política.

André – Como você enxerga a atuação dos movimentos sociais hoje no Brasil?

MS – Parte significativa da militância social em todo o país tem ligação com o Partido dos Trabalhadores. Então, desde a ascensão do PT ao Governo Federal, o movimento se retraiu. Hoje o movimento social está de cócoras a nível nacional e isso se reflete em todos os estados. Muitas pessoas pensam que fazer movimento é barganhar um cargo, uma comissão, se auto-intitulam militantes, mas são do movimento social só até conseguirem uma migalha.

Samária – Você considera que ter na presidência uma mulher alinhada à esquerda   facilita algumas questões que interessam diretamente ao movimento LGBT?

MS – Eu não esperava que tivéssemos discussões como a cura gay! Recentemente eu participei de manifestações com um pirulito: “Governo Dilma, saia do armário”. E fui criticada, disseram que eu estava constrangendo a presidenta, fazendo o jogo da direita. A gente convive com um patrulhamento: se você não é atrelado a partido, olham com desconfiança ou como alguém que quer atrapalhar.

Samária – Como vocês, do movimento, avaliaram a pergunta que o jornalista Efrém Ribeiro fez para a presidenta Dilma? (Numa visita ao Piauí, Dilma foi surpreendida pelo jornalista Efrém Ribeiro, do Jornal Meio Norte, que perguntou se a presidenta é homossexual).

MS – Aquilo foi bastante discutido. Se foi desrespeitoso, eu não sei. Mas qual a importância daquilo? As pessoas gostam de blindar as autoridades. Claro que a intimidade de alguém que é gestora pública não deve ser violentada, não é correto que o movimento queira constranger ninguém. Mas temos países de primeiro mundo onde agentes públicos gays se assumiram e isso provocou um grande efeito positivo sobre a sociedade.

Noronha – A instituição casamento é de certo modo ultrapassada e heteronormativa. Por que os movimentos LGBTs dão importância à formalização do casamento?

MS – Concordo que o casamento é uma instituição heteronormativa, mas a nossa perspectiva é que devemos defender a igualdade de direitos. Eu não penso em me casar com minha companheira, temos contrato de união estável e estamos satisfeitas. Mas um casal que sempre sonhou com isso, não pode ser impedido. Tenho consciência de que luta tem o risco de ser um tiro no pé porque a gente termina reforçando valores conservadores, mas sempre tive muito claro que a nossa defesa é por   igualdade de direitos. As meninas que casaram se dizem bastante felizes, estão em lua de mel (risos).

André – E como você avalia a importância dos direitos adquiridos a partir do reconhecimento das uniões estáveis?

MS – Até bem pouco tempo o estado brasileiro negava aos homossexuais e transexuais mais de 50 direitos que são gozados há muito tempo por héteros. Com o reconhecimento das uniões estáveis muitos dos direitos que eram negados foram incorporados. Vou contar um drama pessoal que exemplifica: eu tive uma relação por dez anos com minha primeira companheira. Quando a gente se separou, ela se relacionou com um juiz de direito e teve uma filha. Aí depois a gente reatou e a filha dela era a nossa filha. Eu era a mãe afetiva. Um tempo depois descobriu-se uma má formação no cérebro de nossa filha. Ela ficou internada e fez várias cirurgias, terminando por falecer em 2007. Foram dois anos de drama. A mãe dela teve direito a licença médica pra ajudar a cuidar e eu não tive, embora a criança tivesse uma ligação forte comigo. Um dia eu estava na UTI com minha filha e o pai dela chegou para visitá-la. Como só podia ficar uma pessoa na UTI, ele invocou a condição de pai e eu tive que sair. Quando a criança faleceu eu não pude ter licença luto. Então são vários dramas, por negação de direitos, que permeiam a subjetividade das pessoas e a sociedade precisa conhecer pra saber a dor que se sente. Já avançamos muito, mas não é fácil porque muitos homossexuais inclusive desconhecem os direitos que já garantimos.

Samária – Você fala nos avanços, mas recentemente um relatório da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos apontou Teresina como a cidade do Brasil que mais mata por homofobia. O que podemos pensar sobre isso?

MS – Eu penso que não se pode pegar um dado apenas e dizer que Teresina seja a cidade que mais viola direitos ou a que mais pratica discriminação contra LGBTs. Podemos interpretar de outra forma: Teresina pode ser a cidade onde as pessoas se sintam mais encorajadas a denunciar atos de violência contra homossexuais. Existe violação de direitos sim, até alimentada pela falta de políticas públicas, mas por conta da visibilidade que alcançamos, a homossexualidade é assunto recorrente na mídia, nas universidades, e eu penso que isso encoraja as pessoas a denunciarem atos de violência.

Noronha – Por que os crimes contra homossexuais costumam ser tão violentos?

MS – Os crimes com motivação homofóbica acontecem realmente com requintes de crueldade. Penso que isso tem a ver com a educação que as pessoas recebem, uma educação que tende a alimentar a intolerância. O discurso religioso que vê a homossexualidade como um pecado também ajuda a alimentar o ódio doentio. Impedir as pessoas de decidir sobre o corpo, viver sua sexualidade, é uma violência. A religião deve ter o papel de tornar as pessoas melhores, mais humanas, sensíveis. Usar a fé para justificar um discurso intolerante é uma distorção da religião.

O meio LGBT idolatra a juventude. Os gays de mais idade são discriminados, têm dificuldade de estabelecer relações mais estáveis

Nayara – A Câmara de vereadores de Teresina votou contra um projeto de lei que permitiria o uso do nome social dos travestis e transexuais. As decisões sobre as questões que dizem respeito aos LGBTs costumam enfrentar resistência das chamadas bancadas religiosas. Qual o peso que esses políticos têm sobre o movimento?

MS – De toneladas (risos).  Os fundamentalistas religiosos legislam com a mão em cima da bíblia, o que é um equívoco. Eles têm que legislar pra toda a sociedade e têm que pensar numa cidade plural. Antes essas pessoas ficavam mais envergonhadas de se falar “bancada religiosa”. Hoje se diz isso como se fosse algo positivo. Que coisa bizarra você ter uma bancada evangélica, católica, seja que religião for, num país que se diz laico!

Noronha – Sobre a posição do Marcos Feliciano e da bancada religiosa ligada a ele, você considera que seja apenas uma questão religiosa ou tem algo mais por trás disso?

MS – Eu não gosto de falar o nome dele porque acho que uma das coisas que o movimento LGBT e o movimento social como um todo falharam foi em dar muito ibope pra esse rapaz. Ele é um parlamentar medíocre, era um desconhecido e foi alçado a condição de celebridade. Ele se projetou, começou a se vitimizar e o movimento não soube responder. E não se pode esquecer que há uma grande fatia do eleitorado que é mesmo conservadora e pensa do jeito desse deputado. Ele simboliza um momento de atraso que estamos vivendo.

Nayara – As vezes o próprio movimento peca quando critica com práticas também homofóbicas: “olha o cabelo dele, olha a sobrancelha, parece que é gay”…

MS – É uma armadilha e o movimento mostra despreparo ao querer descredenciar o outro questionando a sexualidade dele. Falamos em igualdade mas não somos educados para ter práticas que sinalizem nosso desejo de igualdade. Dentro do movimento LGBT existe homofobia, racismo, machismo, intolerância com a idade. A velhice é um problema. Os próprios militantes têm fetiche com a juventude. O jornalista Irineu Ramos Ribeiro, de São Paulo, que pesquisa a homossexualidade na velhice, diz que quando o homossexual envelhece é obrigado a voltar pro armário. Por que? Porque o meio LGBT idolatra a juventude. Os gays de mais idade são discriminados, têm dificuldade de estabelecer relações mais estáveis.

Samária – Quando esteve no Brasil o Papa Francisco afirmou que a orientação sexual não é pecado, mas os atos sim.  Ele disse: “Se uma pessoa é gay e procura Deus e a boa vontade divina, quem sou eu para julgá-la?”. Qual a sua avaliação sobre esse posicionamento do Papa?

MS – Do ponto de vista de retórica é muito bonito. Eu aplaudo o Papa porque acho que foi uma grande sacada do ponto de vista midiático. Mas ele manteve o que a Igreja sempre pensou. De forma inteligente apenas mudou o foco. Afinal o que ele diz? A Igreja não rejeita os homossexuais, rejeita a prática. Então pra eu ser aceita, respeitada na Igreja, preciso deixar de ser lésbica ou viver em abstinência? Até hoje me pergunto sobre aquela frase que ele usou: “os homossexuais não devem ser marginalizados, devem ser integrados à sociedade”. O que significa integrar? É o gay ou lésbica se abster de sua sexualidade para ser aceito? Foi um discurso cheio de labirintos. Mas foi inteligente.

André – Como você vê o papel da mídia e das novelas na construção ou desconstrução de preconceitos?

MS – É fundamental. Nas novelas, até há pouco tempo, os personagens homossexuais eram coadjuvantes ou feitos para provocar risos – o que pode reforçar estereótipos. Hoje a novela Amor à Vida, da forma como está tematizando, presta um papel relevante no sentido de desconstrução de estereótipos. Algumas pessoas ainda reclamaram que o personagem Félix é um vilão. Ora, mas tem gay que é vilão mesmo! Você não pode ficar dourando a pílula. O movimento tem que sair da postura sempre armada e carrancuda. Nós passamos de um momento em que esses temas eram jogados pra debaixo do tapete e estamos no momento em que o debate está posto na sala. A crítica que eu posso fazer a mídia é sobre a perspectiva de abordar a homossexualidade como “o mercado gay”. As vezes se generaliza a ideia de que o gay tem poder de consumo. Existe uma parcela que tem mesmo, mas tem muito gay que  tá na periferia, pegando porrada, sendo discriminado, desempregado, sendo expulso de casa, deixando de freqüentar a  escola por conta de bullying.

Nayara – Existe diferença de aceitação do homossexual entre as famílias com maior ou menor poder aquisitivo?

MS – Tem uma pesquisa do professor de antropologia Fabiano Gontijo que revela que as famílias de periferia têm menos dificuldade de lidar com esse debate, é mais comum que eles aceitem e respeitem o filho LGBT que as famílias de classe média. Por que? Qual o perfil da classe média brasileira? Ela vive muito de aparência. Ter um filho gay é entendido como desonra, vergonha. A classe média, de modo geral, dá mais importância ao “o que vão falar de mim”. Na periferia a noção de intimidade é diferente. Enquanto a classe média se enclausura em condomínios com muros, a periferia é todo mundo na calçada, casa geminada, até mesmo por conta do espaço.

IMG_7624Samária – E como foi pra você, na sua família?

MS – Ah…. como todas… é um processo difícil de vivenciar. (O pai de Marinalva, que chegara a pouco e escuta parte da entrevista, nesse momento levanta-se e afasta-se). Sou a terceira de nove irmãos de uma família do interior do Piauí. No meu primeiro relacionamento eu tinha 16 anos, era uma adolescente escutando aqueles versos da Bethânia: “não dá mais pra segurar, explode coração”. E adolescente dá muita bandeira, a gente fica naquele desespero, pensando que vai tapar o sol com a peneira e não vai.  E os pais sempre acham que é o outro que tá colocando o filho no “mau caminho”, que é outro grande equívoco das famílias: achar que as companhias vão influenciar. Na verdade, quando tem um filho gay a família toda sabe, não faz é verbalizar isso. Por isso muitos homossexuais que ainda estão no armário fazem um papel ridículo: todo mundo sabe e ninguém fala.  Na minha família eu nunca verbalizei isso. Quando eu fui externar já foi através da militância, na criação do Matizes. Um dos bônus da militância é fortalecer você, pra que você se imunize de certas coisas.

André – Você é uma das criadoras e organizadoras da parada da diversidade em Teresina, que chega a 12ª edição (2013). A parada ainda tem um importante papel a cumprir hoje?

MS – Na primeira parada nós tivemos 1.500 participantes, na última se falou em 40 mil. Então a parada tem um papel importante do ponto de vista de dar visibilidade às bandeiras do movimento LGBT.  As paradas se transformaram num movimento de rua volumoso e significativo em todo o Brasil. E têm um lado festivo que não descaracteriza o movimento, porque é um ato político irreverente, não rabugento. Mas acho que quando fomos para a avenida Raul Lopes (às margens do Rio Poti, na zona leste de Teresina) o ato político se perdeu um pouco. Quando acontecia pelas ruas do centro, a Parada era vista mesmo por quem não queria. A mudança do percurso, imposta pelo poder público, foi como um processo de higienização. Mas também tem as vantagens: o espaço é mais amplo e muitos gays, lésbicas e héteros de classe média que não iam pra Parada, agora vão. Mas penso que as Paradas já cumpriram o seu papel. Existem outras formas de ter visibilidade. Inclusive nós  fazemos um evento mais amplo, com palestras, filmes, lançamento de livros.

André – Existe uma ideia sobre a condição homossexual que diz: “tudo bem, desde que sejam discretos”. Você acha que há uma tolerância desde que não se torne algo muito visível?

MS – Há quem diga “eu não tenho preconceito, mas se quiser beijar, beije dentro de casa”. A nossa sociedade se escandaliza com o beijo de duas pessoas do mesmo sexo, mas não se indigna com cenas grotescas de violência. Há sites onde acidentes de trânsito e corpos mutilados estão entre os conteúdos mais vistos. Tem gente que se compraz com isso. A gente ainda precisa discutir isso com a sociedade. Há pessoas que agem como se estivessem fazendo uma concessão: nós toleramos você, mas na clausura.

Samária – Já dá pra avaliar o significado da cantora Daniela Mercury ter assumido sua condição homossexual e apresentado a namorada?

MS– Eu penso como algo positivo, talvez até mais do que a gente possa avaliar nesse momento. Achei um ato de coragem. Houve comentários, inclusive entre militantes, de que ela estaria querendo se projetar, mas isso é de uma bizarrice sem tamanho. No Brasil, com tanto preconceito, ninguém se projeta assumindo ser gay.

André – Mesmo entre LGBTs existe uma incompreensão do que é a sexualidade?

MS – Dentro da militância existem vários equívocos. Acho que há um patrulhamento descabido, inclusive ao contrário. O movimento tem isso de ficar apontando: “fulano é gay”. São resquícios de um preconceito que a gente diz que combate, mas termina reproduzindo. Fico triste quando pessoas hétero, sensíveis à nossa causa, são apontadas pela militância como alguém que não tem coragem de se assumir. Eu posso me comprometer com a luta do outro sem ser o outro.

André – As políticas públicas passam, em maior ou menor grau, por quem está no comando dos governos. No próximo ano temos eleição, como você vê o futuro para as políticas públicas nas áreas que interessam mais diretamente ao movimento LGBT?

MS – Sou bastante cética. Acho que as coisas mudam no ritmo da pressão que a sociedade faz. Pelas características históricas de nosso país as coisas não caem do céu.  Se a gente não tiver capacidade de oxigenar o movimento social, vamos cada vez mais perder espaço, com bancadas conservadores se fortalecendo, enquanto o movimento   social está fragilizado. E se o movimento social não reagir, o quadro é desolador. Mas eu continuo acreditando. Se perdermos a capacidade da indignação e a crença de que é possível, não faz sentido estar aqui, não é mesmo?

Com que roupa eu vou?

 

A maior dúvida de Marinalva era que roupa usar àquela noite. Era outubro de 2012 e Marinalva foi finalista do Prêmio Cláudia, na categoria Trabalho Social.

O prêmio foi instituído pela revista Cláudia e desde 1996 convida personalidades do mundo artístico, acadêmico e empresarial a indicarem mulheres que tenham se destacado no cenário nacional em várias áreas. A etapa seguinte é definir três finalistas nas cinco categorias do prêmio. As vencedoras são escolhidas por um jurado de dez pessoas, pela direção da revista e por votação online. Todas as finalistas vão para São Paulo e participam de uma grande solenidade na Sala São Paulo.

Para Marinalva era mais fácil empunhar bandeira do movimento LGBT, falar em megafone ou comandar 40 mil pessoas nas ruas de Teresina que aquele problema que agora se apresentava. “Eu fiquei nervosa”, diz hoje sorrindo. No hotel, chegou a escolher o vestido. Não se sentindo à vontade, resolveu ir ao evento de blazer.

Foi, gostou, tirou fotos e virou notícia: era a primeira militante LGBT a participar do prêmio. Envergonhada com toda pompa e circunstância que a situação pedia, deve ter até sentido um certo alívio ao ouvir o nome de outra pessoa. A vencedora em sua categoria foi Erika Foreaux, arquiteta que desenvolveu móveis especiais para crianças com deficiência física.

(Entrevista publicada Revestrés#10 – Setembro/Outubro 2013)