(Participaram desta entrevista: Samária Andrade, André Gonçalves, Wellington Soares e Felipe da Cunha Lopes)

O paciente deixou a sala do médico de modo brusco. No jargão da medicina se diria que ele estava tendo uma “agitação psicomotora”. Edmar Oliveira, psiquiatra, era então diretor do Instituto Nise da Silveira, antigo Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. O paciente que ele atendia saiu pela porta e cortou o corredor com velocidade e fúria. O médico se preocupou com quem pudesse estar pela frente. Na direção do paciente, um musicoterapeuta puxou um violão e um repente. Para surpresa de Edmar, o paciente respondeu cantando. “Ele saiu da crise com uma linguagem musical, que para ele fez mais sentido que qualquer outra!”. A experiência reafirmou o que Edmar já defendia: o louco é apenas alguém com outra forma de linguagem. “Não é que a loucura não possa existir. Nós é que somos intolerantes com a loucura”.

IMG_2438 copy

 

Formado em medicina no Piauí, Edmar Oliveira, foi estagiário no Hospital Areolino de Abreu. Aos mais jovens, como ele, estava reservada a função de aplicar eletrochoque nos pacientes. Assustado com o que via, cedo aprendeu estratégias para desviar o tratamento: “Eu comecei a usar a medicina contra o eletrochoque. Media a pressão e dizia: paciente com hipertensão, não tá indicado eletrochoque”.

Em Teresina, dividia-se entre a vida de estudante de Medicina e um nada convencional papel de agitador cultural. Seu grupo de amigos fazia de cinema à música e artes plásticas. Queriam se posicionar contra tudo o que estava estabelecido e assim fizeram rebeldias. Quando o escritor Arimathéa Tito Filho, mais solene presidente da Academia Piauiense de Letras, negou entrevista a seu grupo, eles publicaram duas páginas com imagens de bebidas, numa referência ao pendor do escritor para o álcool. Quando Torquato Neto deixou o hospital psiquiátrico do Meduna, com a cabeça raspada, eles encontraram uma solução para manter a aura rebelde do amigo que tanto admiravam: “Conseguimos uma peruca pra ele. Queríamos nosso amigo cabeludo de volta!”.

Já formado, Edmar foi para o Rio de Janeiro e fez residência em Psiquiatria na UERJ. Desde então só volta ao Piauí a passeio ou trabalho. No Rio, vivendo no charmoso bairro das Laranjeiras, parte para viagens onde faz conferências em defesa da reforma psiquiátrica que, entre outras medidas, defende que o paciente de transtorno mental seja tratado em comunidade e não isolado em hospícios. Ele denuncia o uso da psiquiatria como instrumento de repressão social e exclusão dos menos favorecidos. Como consultor do Ministério da Saúde, atuou no programa de saúde mental e na instalação dos CAPS no Brasil. Os Centro de Apoio Psicossocial buscam um tratamento interdisciplinar e substitutivo aos manicômios.

Outro motivo de viagens frequentes é divulgar os três livros que já escreveu. No primeiro deles, “Ouvindo Vozes”, ganhou visibilidade ao aparecer na novela “Caminho das Índias”, da Rede Globo. Na história de Glória Perez, o ator Bruno Gagliasso interpreta Tarso, um rapaz com esquizofrenia. A novela pôs em evidência o tema, não estando também livre de críticas pela abordagem adotada. Ainda assim, Edmar acredita que a repercussão tenha contribuído para derrubar alguns preconceitos em relação a esquizofrenia.

Para viver o personagem, Bruno Gagliasso e outros atores fizeram “laboratório” no Instituto Nise da Silveira, então dirigido por Edmar. Stenio Garcia, que interpreta o Dr. Castanho, chamado pela imprensa na época de “médico excêntrico”, se inspirou no psiquiatra piauiense. “Ele me disse: posso me inspirar em você? Vou fazer um médico nada convencional para novelas, com defeitos, dúvidas, manias. Eu disse: claro. Esse sou eu!”. Edmar conta ainda que os atores dormiram por várias vezes junto ao pacientes, no hospital, e também levaram alguns desses novos amigos para frequentarem suas casas. “Caminho das Índias” foi vencedora do prêmio Emmy Internacional de 2009 como melhor novela. Na sinopse da história Dr. Castanho é apresentado como um psiquiatra renomado “que sabe falar a língua dos seus pacientes”.

Para Michel Foucault desde a idade média o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: sua palavra pode ser considerada nula e não ser aceita; ou pode ocorrer também, em contrapartida, que a ela se atribua estranhos poderes: o de dizer uma verdade escondida, pronunciar o futuro, enxergar aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. Se era através da palavra que se reconhecia a loucura do louco, Edmar prefere apostar nos poderes estranhos que esse discurso invoca, colocando aos ditos normais o desafio da interpretação: “Se um cara diz que é filho de Deus e todo mundo acredita, é Jesus Cristo; se ninguém acredita, é doido. A loucura é uma crença social”.

Em Teresina para lançar seu terceiro livro, Edmar Oliveira, 65 anos, recebe Revestrés na casa de seu irmão, no bairro Aeroporto. Ele fala rápido, quase atropelando as palavras. Parece ter boa memória, senso crítico afiado e defende sem tréguas a visão da loucura que acredita: “muitas vezes eles são bem mais razoáveis do que os considerados dotados de razão”. Ali perto de onde conversamos fica o Hospital Areolino de Abreu e não é incomum ver circulando nessa região algumas pessoas com transtornos mentais que têm se tornado o que Edmar chama “os loucos de estimação que toda cidade tem”. Após a conversa somos provocados a olhar de modo diferente para essas pessoas. Ou para nós mesmos. “Quem de nós nunca falou sozinho, delirou, conversou com Deus?”.

Samária – Alguns procedimentos médicos hoje em desuso, como eletrochoque e lobotomia (intervenção cirúrgica em que se corta parte do cérebro na tentativa de extirpar doenças mentais como a esquizofrenia), até pouco tempo foram considerados modernos. Na Medicina e no tratamento da doença mental sempre vamos estar sob o risco entre o que se faz e o que seria o melhor a ser feito?

Edmar Oliveira –Esses procedimentos continuam a ser feitos com disfarces. A lobotomia como uma cirurgia para Parkinson e outros problemas – o que não deixa de ser uma invasão cerebral. E o eletrochoque, que passa a se chamar eletroconvulsão e com uso de anestesia, tem sido feito até para depressão. Desde Hipócrates se tinha a ideia de que uma convulsão melhoraria uma doença mental. Várias maneiras de provocar essa convulsão foram utilizadas. Julius Jauregg (médico austríaco) inventou a malarioterapia. Durante a primeira guerra, ele tirava sangue de soldados com malária e injetava em pacientes psicóticos, para que estes tivessem febre alta e melhorassem. Depois Manfred Sakel (psiquiatra polonês) inventou a insulinoterapia, que provocava convulsão pela falta de açúcar. Então Laudislau Von Meduna (médico húngaro) inventa a convulsão por cardiazol, medicamento mais barato, que vira um sucesso. Mas tinha efeitos gravíssimos, as convulsões violentas provocavam fraturas de coluna e matavam. Até que o médico italiano Cerletti criou o choque elétrico e barateou de vez os custos. Era só ligar na tomada e provocar uma convulsão por eletricidade. Esse é um passado cruel que a medicina costuma esconder. E é importante que falemos disso. Essas técnicas são combatidas pela reforma psiquiátrica, que entra em conflito com a medicina biológica. Eu já tive várias brigas com os Conselhos de Medicina. Eu diria que o médico tem licença para matar. Ele pode, é impune.

Se a ciência psiquiátrica diz que 1% da humanidade é de esquizofrênicos, então por que no Areolino só tem preto, pobre e da periferia?    

Wellington – Qual sua maior crítica ao eletrochoque?

EO – Ele não é inócuo. Pode causar micro hemorragias cerebrais e distúrbios de memórias, deixar fraturas e tem um custo humano muito grande. Diferente do que a gente pensa, o maior sofrimento do eletrochoque não é na hora da aplicação, porque o paciente perde a consciência tão logo a corrente passa. Mas aquilo era feito na frente de todo mundo! (fala com pesar). Então você via o outro tendo a convulsão. Quando eu fiz psiquiatria, se fazia eletrochoque em série, com várias camas numa enfermaria.

Samária – Você aplicou eletrochoque?

EO– Muito! Eu condeno com conhecimento de causa (fala com ênfase). Eu já tive esse furor curandis e sei que o eletrochoque é um tipo de tortura. Ele dá uma melhora momentânea na crise, mas ela volta mais forte e a tendência é a degradação do paciente. Eu estagiava no Areolino de Abreu e nós tínhamos um paciente, o Mudinho, que parou de falar na adolescência. Fizemos eletrochoque nele como um tratamento heroico, capaz de fazê-lo voltar a falar. Na sexta aplicação, ele virou pra gente e disse: “Eu falo o que vocês quiserem, mas não façam mais eletrochoque”. Na época, isso foi interpretado como uma cura pelo eletrochoque, mas aquilo me chocou. O paciente melhorou devido ao medo que tinha. O velho Freud já dizia: o instinto de vida é maior que o instinto de morte.

André – Você dirigiu por 10 anos o Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, um dos maiores do Brasil, batizado na sua gestão de Instituto Nise da Silveira. Ele ficou conhecido, entre outras práticas, pelo uso do eletrochoque. Como você lidou com isso?

EO –   Quando eu cheguei lá o eletrochoque era um dos métodos mais utilizados. Eu fiz um trabalho com uma equipe maravilhosa, de desinstitucionalização do paciente – uma palavrão que a gente chama de “desin”. A briga seria feia se eu fosse proibir o eletrochoque. O que eu fiz? Recolhi os aparelhos e determinei que médicos poderiam usá-los, desde que fizessem o pedido por escrito e justificassem. Nunca mais foi feito! (fala com ênfase). Eu tenho uma grande frustração: mudei o nome do hospital para homenagear a psiquiatra Nise da Silveira acreditando que fecharíamos as portas e até hoje o hospital continua. Embora tenha passado por mudanças, não existe hospital psiquiátrico bom.

IMG_2442 copy

André – E o que é proposto para evitar a internação?

EO – Benedetto Saraceno propõe a reabilitação psicossocial, que busca tratar em comunidade. Ele diz que a diferença é que na forma tradicional você prende o paciente e fica livre, com os novos dispositivos você se prende ao paciente e ele fica livre. Os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) fornecem um tratamento moderno, em comunidade, com a ideia da ética inclusiva da loucura. Há também o CAPS 3, para os casos de internação. E tem ainda os hospitais gerais, que devem atender todos os pacientes. Um dos trabalhos que eu mais me orgulho de ter feito no Rio foi fechar a emergência do hospital psiquiátrico e levar esse serviço para o hospital geral, porque todo grito e dor no peito que o paciente tem dentro do hospital psiquiátrico é visto como “agitação psicomotora”, e pode ser um infarto! Emergência tem que atender todas as emergências.

Wellington – Uma questão que muita gente ignora sobre as internações psiquiátricas diz respeito a vida sexual dentro desses hospitais. Você tomou medidas em relação a essa pauta?

EO – Existe uma vida sexual intensa. Uma das primeiras revoluções que fiz foi instituir as enfermarias mistas. Até então era um tabu se misturar homens e mulheres. Há muitos relacionamentos homossexuais nos hospícios e geralmente entre as mulheres é melhor aceito que entre os homens. Claro que com as enfermarias mistas, criava-se outro problema: o risco de gravidez. Para isso trabalhamos com anticoncepcional. Fomos muito criticados por isso.

Wellington – Seu segundo livro, “A incrível história de Von Meduna e a filha do sol do Equador”, conta a história da implantação do Hospital Psiquiátrico do Meduna em Teresina. Como foi fazer esse livro?

EO – Foi uma forma de buscar o meu passado e o passado escondido da psiquiatria. Nosso hospício é um dos mais antigos do Brasil. O Areolino de Abreu é de 1907, antes do Piauí ter psiquiatra. O Meduna é de 1954. E eles foram feitos não só pra jogar lá dentro os loucos, mas todos os tipos de flagelos que migravam para a capital do sertão. Então era uma forma de usar a psiquiatria para conter o social. Até hoje se faz isso. Se você chegar hoje no Areolino não vai ver um internado de classe média. Se a ciência psiquiátrica diz que 1% da humanidade é de esquizofrênicos, então porque no Areolino só tem preto, pobre e da periferia?

André – Você descobriu curiosidades nesse passado escondido da psiquiatria?

EO – Clidenor inaugura um hospital moderno em contraposição ao Areolino de Abreu e faz homenagem a Von Meduna – o inventor do Cardiazol – quando o mundo já não queria mais falar nesse medicamento, pois já conhecia as “maravilhas” do eletrochoque! Por que Clidenor faz isso? Porque durante muito tempo o principal método usado no Meduna continuava a ser o Cardiazol. E por que o Meduna não tinha choque elétrico? O Piauí ficava distante dos grandes centros e com difícil acesso à tecnologia. O eletrochoque era uma máquina grande, tinha que ser importada. Era mais fácil usar as ampolas de Cardiazol. Quando eu pesquisei para o livro soube que Clidenor inventou a primeira máquina de eletrochoque do Piauí, lendo livros em inglês e contratando um eletrotécnico autodidata.  Eu não cheguei a ver essa máquina, mas é fabuloso que o inventor do Meduna passe a usar um método moderno construindo ele próprio uma máquina! E de fato o eletrochoque é menos cruento que o Cardiazol.

Samária – Além de segregar os desvalidos da sociedade, os hospícios funcionam  protegendo a sociedade da loucura. Você defende uma ética inclusiva para a loucura. Como sugere que podemos olhar para o louco?

EO– Na esquizofrenia há um rompimento com a linguagem humana tradicional. O que é o louco? No popular é aquele que não fala coisa com coisa. O que Nise da Silveira e a reforma psiquiátrica vão buscar? Outras formas de falar com o paciente que não sejam por meio da linguagem tradicional. Podem ser usadas a pintura, a música, o teatro. Daí o sucesso das chamadas oficinas terapêuticas. E nós sabemos incluir. Toda cidade do interior tem um louco de estimação, que não precisa internar, fica andando na cidade e tem uma função social interessantíssima! Como dizia Antonin Artaud (escritor francês tido como louco e internado em diversos manicômios) são inumeráveis os estados do ser. Mesmo dentro do que a gente chama de normal podemos ceder um pouquinho, de vez em quando psicotizamos. Quem de nós nunca falou sozinho, nunca delirou, conversou com Deus? Fazendo uma caricatura eu diria: se um cara diz que é filho de Deus e todo mundo acredita, é Jesus Cristo; se ninguém acredita, é doido. A loucura é uma crença social.

Toda cidade do interior tem um louco de estimação, que não precisa internar, fica andando na cidade e tem uma função social interessantíssima!

André – De algum modo, para que a sociedade mantenha uma certa sanidade é preciso um pouco de loucura?

EO– Freud diz que temos três modos de nos constituirmos que resultam no neurótico – que são maioria, tidos como normais, em geral carregam uma tremenda culpa -; no psicótico – têm dificuldade de entender as metáforas, tornam-se aqueles que nunca entendem a piada; e tem o perverso. A saúde mental se encarrega dos neuróticos e psicóticos. Para os perversos, só outro perverso ou a lei. O perverso não tem ideologia, só quer se dar bem. Claro que essa divisão é muito estática. Somos uma mistura de neurótico, psicótico e perverso. E ter um amigo que não entende a piada, não significa que ele seja psicótico. O importante é saber viver dentro da dificuldade que temos com o mundo, porque todos nós temos nossas dificuldades. Dany-Robert Dufour, filósofo francês, no livro “A arte de reduzir cabeças”, traz a hipótese de que a sociedade capitalista industrial pode estar construindo o normal perverso, porque passar por cima dos outros está sendo normal e até estimulado. Estamos treinando nossos filhos para isso: pervertendo para a competição, para ser o primeiro lugar, e o mundo não tem vaga na primeira fila para todos.

Felipe – Em certos períodos alguns transtorno parecem ganhar visibilidade maior, passando a impressão de serem “doenças da moda”. Um exemplo são os transtornos de humor e déficit de atenção. Haveria um exagero nos diagnósticos hoje?

EO – Há dois diagnósticos que a sociedade competitiva não aguenta: menino danado – que hoje é o déficit de atenção – e tristeza. Você não tem o direito de sentir tristeza, tem que tomar Prozac pra ficar feliz. E faz parte da nossa natureza a tristeza, a dor, o luto.  As drogas psiquiátricas estão sendo usadas para amortecimento social. O Brasil é o primeiro país do mundo em consumo de Rivotril, o segundo em Ritalina. Essas são drogas de ataque, que ajudam algumas pessoas em determinados momentos, mas não podem virar remédio de uso contínuo porque geram dependência. Alguns precisam de drogas? Vários. É raro viver no mundo sem drogas: uns fumam, outros bebem, leem, gostam de doces, rezam… É preciso verificar caso a caso e o médico deve ter parcimônia ao administrar medicamentos. Alguns médicos pressupõem que têm que tirar todos os sintomas do paciente e ninguém vive sem sintomas.

André – E como se constituiu isso: as pessoas estão necessitando de remédios e os laboratórios têm uma resposta à essa demanda ou há um estímulo ao consumo de drogas?

EO – A busca de grandes laboratórios é investir em medicamentos de uso contínuo, como remédios para diabetes, pressão e para doença mental. Hoje você não pode ficar ansioso que o médico lhe receita um remédio. Aí entra outra questão: o médico não quer conversar com seu paciente. Ginecologista, cardiologista, pneumologista, ortopedista – todos poderiam ser ótimos terapeutas. Mas quando o paciente conversa muito, recebe logo uma receita de calmante, que é um cala-boca. Fui no oftalmologista, ele errou meus ósculos e eu votei pra reclamar. Sem saber que eu sou médico, ele já ia me receitando remédio pra ansiedade. Eu falei “eu sou psiquiatra”.

IMG_2466 copy

 

Felipe – Sobre o abuso de medicamentos, pesquisando em prontuários de unidades do CAPS, em especial em cidades do interior, é possível perceber que, embora os diagnósticos sejam heterogêneos as formas de tratamento, em sua esmagadora maioria, continuam com a prescrição de calmantes. O tratamento medicamentoso que você questiona ainda é a principal alternativa?

EO – Há CAPS bons e ruins. Há os que prescrevem muita medicação e funcionam como um hospitalzinho. O CAPS é um tratamento multidisciplinar, que não é centrado no médico. Ele deve ser “mais um” na equipe. Os outros profissionais da saúde também devem ser protagonista desse serviço. Muitas vezes o médico vai só uma vez por semana no CAPS e percorre três unidades diferentes, tentando ganhar mais dinheiro.  Aí acontece um desvio de finalidade do serviço. E o que possibilita esse desvio? A falta de fiscalização .

Wellington – No conto “O Alienista”, de Machado de Assis, o Doutor Bacamarte passa a enxergar a loucura em todo mundo e enche o manicômio de loucos. Quando a cidade tinha 75% da população internada, ele resolve soltar a todos e conclui que louco era quem não possuía desvio nenhum. Por fim, como julga que só ele tem uma personalidade perfeita, conclui ser o único anormal e se tranca sozinho. Afinal, todos temos algum grau de loucura? E o que leva à loucura?

EO – Só a literatura é capaz de avançar sem temor em questões complicadas. Quando Machado escreve “O Alienista” o hospício tinha apenas 10 anos. Era muito novo e visto como algo maravilhoso. No Rio de Janeiro ele é construído na Praia Vermelha. A cidade que tinha um hospício era um local civilizado. E Machado fez uma crítica demolidora dessa ideia. Eu diria que ele previu a reforma psiquiátrica. A loucura existe, é dolorosa, e multifatorial. Tem componente genético, mas também social e da interação familiar. E é interessante perceber que quando tem um louco, a família precisa que aquele cara continue louco. Se ele melhorar a família enlouquece, porque ele é o depositário da loucura.

André – Algumas manifestações artísticas dão a impressão de ser tênue e porosa a relação entre arte e loucura. Esse sentimento que se confirma cientificamente?

EO – Você sabe quantas obras tem no Museu do Engenho de Dentro? 350 mil! Todas feitas por pacientes. A Nise da Silveira detestava essa ideia de que fossem vistas como obras de arte, por isso nunca deixou vender um quadro. Para ela aquilo tudo era prontuário. O crítico Mário Pedrosa descobriu arte em alguns brilhantes pacientes de Nise, mas cinco ou seis. E isso foi fundamental para ela continuar o trabalho, apoiada na ideia de arte, porque a ciência não sustentaria essa inovação. Mas tem louco de todo jeito: chato, legal, e artista também. E não significa que arte e loucura andem juntas. Então, a ideia de que artista é meio louco, como acontece com os psiquiatras, é puro charme.

Wellington – O Engenho de Dentro também recebeu um ilustre paciente piauiense: Torquato Neto. O que você descobriu sobre a passagem de Torquato nesse local?

EO – Ele foi internado por causa de alcoolismo. Tinha o que a gente chama na psiquiatria de embriaguez patológica. Quando bebia, não parava e criava problemas. Lá escreveu “Memórias do Engenho de Dentro”, que depois integrou o livro “Os últimos dias de Paupéria” (organizado por Waly Salomão). Colocaram Torquato numa enfermaria comum e ele destoava de todo mundo ali, não se enquadrava. Na ficha dele estava escrito: “paciente com psicose delirante. Diz que tem música com Caetano Veloso e Gilberto Gil”. Torquato fugiu do hospício e foi beber na Pizzaria Guanabara, no Leblon. Um médico, que também bebia por lá, pediu no Hospital que transferissem Torquato para a sua enfermaria. Eles criaram uma relação interessante.

IMG_2421 copy

 

Wellington – Você conheceu Torquato quando jovem, em Teresina. Como foi a influência dele sobre a sua geração?

EO – Foi definitiva. Ele mudou nosso rumo. Eu o conheci em 1971, tinha 21 anos e estava entrando na faculdade de Medicina. Ele tinha 27 anos e estava visitando o Piauí, depois de ter ido a Londres. Eu, Durvalino e Paulo José Cunha fazíamos um jornal com o professor Camilo da Silveira. Paulo intermediou e nós entrevistamos Torquato. Ficamos a noite toda conversando e anotando. Ele passou a andar com a gente de uma maneira muito intensa. No ano seguinte, quando retornou a Teresina e se internou voluntariamente no Meduna, eu fui visitá-lo com Noronha. Nós fizemos roteiros para filmes super8 e discutíamos a noite inteira. Ele atuava nos filmes do jeito que a gente queria, não dava palpite, era de uma humildade absurda! E a gente deve ter feito muita besteira. Essa era a generosidade do Torquato. A gente não largava dele um minuto, porque sabia da importância que ele tinha. O filme “Terror da Vermelha” é premonitório – ele mata toda a família e se mata. E tem a cena em que ele está lendo jornal com a manchete “Gil voltou” – Gilberto Gil estava voltando de Londres. Então eu, que fazia o alter ego de Torquato, chego por trás, o enforco e mato. Na época a gente não percebeu nada disso.

Samária – Você acha que isso pode indicar também desentendimentos entre Torquato, Gil e Caetano?

EO – Não tenho a menor ideia. Ele nunca falou sobre qualquer encrenca que pudesse existir. Tem outra cena em que eu vou para a porta de um hotel, já sem a roupa usada para matar Torquato, e o hotel se chama “Bahia”. Mas da boca do Torquato eu só ouvi elogios. Ele também adorava Roberto Carlos. A gente aqui pensava que era pra odiar o Roberto Carlos. Aí ele chegou gostando, nós não dissemos nada, passamos a gostar também (risos). Torquato passava o dia cantando uma música do Renato e seus Blue Caps (Edmar cantarola): “Ana, estou tão triste, vieram me dizer que eu posso até morrer…”. E Ana era o nome da mulher dele. (Faz uma pausa e continua) Torquato adorava Teresina, mas Teresina odiava Torquato. A cidade só foi gostar do Torquato quando ele morreu.

Na ficha de Torquato Neto estava escrito: “paciente com psicose delirante. Diz que tem música com Caetano Veloso e Gilberto Gil”.

André – Como vocês percebiam esse não gostar?

EO – A gente não entrava no Clube dos Diários, por exemplo. Éramos tidos como cabeludos, maconheiros. Então a gente ia beber nos botecos da Piçarra e da Paissandú, com caminhoneiros, prostitutas. A gente era marginal, não era festejado em lugar nenhum, “lá vem os malucos”. Quando Torquato saiu do Meduna, com a cabeça raspada, nós arranjamos uma peruca pra botar na cabeça dele, porque a gente queria nosso amigo cabeludo de volta. Ele aceitou, andava de peruca.  Eu nem sabia se nós tínhamos tido importância pra ele, mas quando saiu o livro do Paulo Roberto Pires (Torquatália – livro organizado em dois volumes: Do lado de dentro e Geléia Geral) tinha umas cartas de Torquato para o Hélio Oiticica em que ele dizia: “conheci uma rapaziada no Piauí que é muito legal e estamos fazendo uns filmes”. Pra mim isso foi uma surpresa.

Wellington– Do ponto de vista cultural, como é possível definir o movimento que seu grupo fazia em Teresina na década de 70?

EO– Nós éramos a contracultura. Éramos anti-acadêmicos e anarquistas.  A cultura em Teresina era Arimathéia Tito Filho. Nós tentamos entrevistá-lo e ele se recusou. Então publicamos duas páginas com imagens de garrafas de cachaça, numa referência ao gosto dele por bebidas. Fontes Ibiapina era um puta escritor e a gente fazia campanha: não leia! A gente nem tinha lido, mas queria contestar, não podíamos dar o braço a torcer, porque eles eram o estabelecimento e a gente era contra tudo. Éramos meninos, sem muita leitura – o que era nosso pecado – e meio fascistas. Hoje eu compreendo isso como uma revolta contra o estabelecido. E nós marcamos a cidade – com filmes, música, artes, impressos – embora, na época, a gente não tivesse a dimensão disso. O mais genioso e genial de nós era Arnaldo Albuquerque, que tinha trabalhos avançados. Fez um busto de gesso de cada um de nós e botou na frente do Karnak e outros pontos da cidade com uma placa: “Quebra”. Ele ficava olhando e filmando. E quebraram tudo. Nós estávamos dando a cara à tapa na cidade.

Felipe – O que você considera que sejam os principais desafios da reforma psiquiátrica hoje?

EO – São inúmeros, inclusive pela situação política que estamos vivendo. Esse governo ilegítimo (refere-se a Michel Temer) está decretando a morte do SUS. A classe média fala mal do SUS porque não o utiliza, mas quem usa SUS, gosta. O melhor tratamento público de Aids e o melhor tratamento de saúde mental são do SUS. Desvincular as verbas de Saúde e Educação significa que nem os 12% obrigatórios de recursos serão repassados. Isso vai ser mortal para a saúde mental, que está subordinada ao SUS. A terceirização dos trabalhadores de saúde também é outro risco. E isso começou antes, ainda no Governo eleito (refere-se a Dilma Rousseff), que entregou a saúde dos postos e CAPS para organizações sociais (OS) que têm fins lucrativos e terceirizam mão de obra, gestão, supervisão. Eu disse para o Secretário de Saúde do Rio: “pode eliminar a Secretaria de Saúde e deixar só a Secretaria de Administração – é só pra cobrar contrato”.  Quais as perspectivas para a saúde mental? Sem o SUS somos nada!  Tô com muito medo do que vem pela frente.

Wellington – E por fim, quem é Edmar?

EO – Que pergunta doida (risos). Sou um inconformado sempre. Nada pra mim está bom. E eu sou feliz com esse inconformismo. Continuo brigando, é uma guerrilha sem fim.

Wellingotn – Você é doido?

EO – Eu não tenho nenhuma dúvida disso. E não quero a cura! (risos).

***

Só no ano de 1940, quando o hospital Areolino de Abre já tinha 33 anos de funcionamento, o primeiro psiquiatra do Piauí assume a direção: Clidenor de Freitas Santos, com apenas 27 anos. Um ano depois ele elabora um relatório arrasador sobre as condições do local. Denuncia o pequeno esgoto, no centro dos quartos, onde os doentes fazem necessidades fisiológicas e diz que em todos os quartos e mesmo no pátio, amarrado aos cajueiros, pesadíssimas correntes mantém os internos presos pelas pernas.

Fonte: A Incrível História de Von Meduna e a filha do sol do Equador – Edmar Oliveira

***

A inauguração do Meduna, hospital psiquiátrico fundado por Clidenor Santos em 1954, foi considerado um marco civilizatório. O discurso de inauguração da casa foi publicado em todos os jornais da capital em edições extra-ordinárias. O médico intitula a discurso de “Carta a meus filhos” e diz que espera que estes, quando mais maduros, possam compreender “os sentimentos que dominam vosso pai”.

(Entrevista publicada na Revestrés#25 – Junho/Julho 2016)