(Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade , Wellington Soares, Maurício Pokemon e Durvalino Couto -músico, poeta, compositor e publicitário. Texto e edição: Samária Andrade. Fotos: Maurício Pokemon)
Ele registrou o filho como Chico. Francisco? “Não, só Chico mesmo. Era um nome provisório, para ele escolher outro, se quisesse”. Hoje aos 33 anos, advogado, Chico ficou com o nome de Chico mesmo. Entendeu, desde cedo, que tinha um pai diferentão de verdade. Antônio de Noronha Pessoa Filho, 70 anos, é médico especialista em crianças e adolescentes e terapeuta sexual. Atende em hospitais em Teresina e tem também seu próprio consultório. Com mestrado em Pediatria, é Professor aposentado de Medicina da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e nunca parou de ministrar cursos e conferências dentro e fora do Piauí. Também foi Secretário Estadual de Educação e Cultura (Governo Alberto Silva) e prefeito de Monsenhor Gil, cidade natal de seus pais.
Foi e é muito mais coisas não institucionalizadas: amigo de Torquato Neto, ajudou a construir o movimento de cinema super 8 no início dos anos 70 no Piauí. Diverte-se ao concluir que foi o primeiro DJ de Teresina – cuidava da trilha sonora de festas que organizava. Recentemente fundou um coral de deficientes visuais na ACEP – Associação dos Cegos do Piauí, e vive arrumando espaços onde eles possam se apresentar. Não é raro que alugue um ônibus e parta em viagem com todos pelo interior do Estado, com apresentações em diferentes cidades. Continua a produzir seus próprios filmes, embora diga que desistiu desse ofício desde que assistiu “César Deve Morrer” (Itália, 2013). “É bom demais! Eu descobri que nunca vou fazer um filme assim!” – justifica
Foto: Maurício Pokemon
Conversar com Noronha é esbarrar com uma fonte de ideias jorrando. Ele tá sempre falando de alguma ideia nova que tem em mente. Sabe o que fazer com o Centro de Artesanato do Piauí e com o Albertão – estádio quase abandonado. Tem projetos para a educação, para a cultura, para a música, para os jovens…
Apaixonado pela noite, continua a frequentar várias festas, hoje com menos frequência, ele garante. Mas com a mesma curiosidade de garoto. Há poucos dias, deitado na varanda de casa, ouviu uma música e saiu procurando de onde vinha.“Era uma festa no povoado Soinho. Um pancadão com seis torres de som, um barulho infernal. As pessoas dançavam até sem querer” – diz aos risos.
Gosta de descobrir quem tá produzindo na cidade. Tem senso crítico, vai a shows e faz contatos com os músicos. “Sou transgeracional. Tenho amigos em todas as gerações”, define. Quando visitou o “Salve Rainha”, movimento coletivo que desenvolve ações culturais por temporada em Teresina, sentiu-se “um dinossauro”. Ali desconfiou que estaria velho, mas achou quase tudo interessante e promete voltar.
Noronha nos recebe numa tarde de sábado. Na espécie de sítio comunitário onde vive, o portão está invariavelmente aberto e há sempre quitutes esperando as visitas. Para a nossa chegada preparou castanhas comuns e carameladas, macaxeira cozida, cajá, buriti. Tudo estava organizado em pequenas porções postas em louças brancas ao lado da garrafa de café preto e quentinho. Uma demonstração de carinho do doutor. A conversa acontece na varanda onde, quando chegamos, deitado na rede ele ouvia Bach. No mesmo terreno do sítio, sem cercas ou qualquer separação, convivem cinco casas. Além de Noronha, estão lá alguns de seus irmãos e a casa onde vive o filho Chico, ao lado da mãe.
Viver em Comunidade com a família realiza o sonho da mãe de Noronha, que cedo teve que se separar dos filhos. Na faixa dos dez anos de idade, todos saiam de casa, em Monsenhor Gil, para estudar na capital. Noronha comprou o terreno e prometeu que reuniria a todos. Ele estava fazendo pós-graduação em São Paulo quando a mãe morreu, antes do projeto da comunidade ser concretizado. Como um sentimento de recompensa, Noronha conseguiu que a passagem em frente ao sítio fosse batizada com o nome da mãe: Rua Antônia Medeiros de Noronha.
Dona Antônia não viu, mas o filho se tornou médico reconhecido ao lidar com temas difíceis: violência, juventude, sexualidade. Sempre que essas questões se impõem, Noronha é convidado à discussão em conferências e entrevistas nos meios de comunicação. Recentemente organizou na Universidade Estadual do Piauí (UESPI) uma oficina que discutiu como o professor deve lidar com a violência na sala de aula.
Leitor voraz, continua a estudar com afinco. “Para enfrentar o Piauí eu tinha que ser bom”, revela. Noronha diz que queria enfrentar o Piauí “no bom sentido”: desejava ser respeitado sem abrir mão de suas convicções. “Sempre procurei ser verdadeiro, inclusive com a minha sexualidade. Quando namoro com mulheres, digo: ´transo também com homens’”. Para ser o terapeuta sexual que desejava, só admitia para si a sinceridade.
“Sou um dissonante” – afirma quando perguntamos como ele é visto no meio médico, consciente de que costuma defender ideias pouco convencionais. Nessa entrevista, as opiniões, a tranquilidade e a coragem de quem acredita que para viver apenas um tipo de concessão é permitida: aquela que não lhe tire a essência.
Samária – Alguns filósofos como Nietzsche são um tanto céticos em relação ao propósito da vida. Para você, a vida tem um propósito?
Antônio Noronha – Eu nunca me preocupei com o propósito da vida, me preocupo em viver! Para isso estabeleci algumas condições. Primeiro: devo ser um cidadão. Busco intervir na sociedade, de maneira saudável, procurando contribuir. Segundo: devo entender que a morte é o único futuro previsível. Para isso eu trouxe a morte para perto de mim, então não tive mais medo dela. Por fim, tenho um lema : “tudo o que falarem de mim é verdade”(risos). Então me preocupo em viver e não em pensar sobre a vida ou o que pensam sobre mim.
Foto: Maurício Pokemon
André – A maioria das pessoas não tem tranquilidade em falar sobre a morte, que costuma ser um tema tabu. Por que a cultura ocidental tem dificuldade em lidar com a morte?
AN – Porque somos hipócritas. Sentir saudade é legítimo, mas não é isso que eu questiono. Um dia fui no velório da mãe de um padre e ele estava chorando desesperado. Eu o chamei e disse: “Não é você que tem que fazer isso. Volte para perto de sua mãe e fique satisfeito por ela ter morrido. Você não acredita que ela vá para uma vida melhor? Então pare de frescura, meu querido!” Mitificamos tanto a morte que quando se morre comemoramos apenas o dia da morte e esquecemos o nascimento, porque o dia da morte passa a ser o mais importante da vida da pessoa. Como eu não sou cristão, não acredito em vida após a morte. Também não tenho medo dela, nem me preocupo com isso. A gente vai ter que aprender a conviver com a morte. A psicologia é quem mais tem discutido essa questão. A medicina tá deixando a dever.
Samária – Os avanços na saúde e na medicina têm prolongado a vida…
AN – Em muitos casos indevidamente. As UTIs têm se transformado na industrialização da morte. São a morte como capital, como lucro. Alguns pacientes não têm condição de viver e você prolonga o que for possível com o objetivo final de lucro. O paciente vira uma caixa registradora. Cada procedimento tem um preço e o médico, coitado, tem que fazer aquilo porque tem que obedecer protocolos. Se não fizer, ele pode ser processado.
As UTIs têm se transformado na industrialização da morte. São a morte como capital, como lucro
Samária – Mas essa é uma conversa que a família não quer ouvir do médico. É possível ter esse tipo de conversa com a família do paciente internado?
AN – É muito difícil. Quando papai estava na UTI e eu vi que ele ia morrer, disse para meus irmãos: “Vamos preparar o velório de papai”. Disseram “Você é louco, agorento”. Nessa época, eu estava pesquisando para um filme sobre as incelências (pequenos cânticos, mais comuns no sertão nordestino, executados em razão de falecimento) e tinha descoberto um grupo no interior de Agricolândia (Piauí). Tentei gravar com eles, mas me disseram: “A gente só canta em velório”. Quando papai morreu, eu disse: “Chegou a hora de fazer meu filme”. Fizemos uma cerimônia fúnebre linda, com música, cantores, porque meu pai merecia isso e não aquele velório sem graça, entende? Mandei buscar o grupo de Agricolândia, filmei tudo e descobri: as incelências têm um papel incrível na diminuição das tensões. Quando eles começam a cantar, fica tudo quieto, calmo, é como um mantra. Eu filmei tudo. Não fiz um filme ainda, mas já usei trechos em conferências de saúde onde discuti a morte.
André – E qual a sua posição sobre a eutanásia?
AN – Eu sempre fui favorável. Meu pai e meus irmãos eram contra. Quando papai foi entrando na UTI, me chamou e disse: “É o seguinte, agora eu tô do seu lado. Não me deixe sofrer”.
Wellington – Como estudioso do comportamento dos jovens, como você está vendo a educação formal desses jovens hoje no Brasil?
AN – Em 1964 a Coréia do Sul estava arrasada depois da guerra, então resolveu investir pesadamente em educação, num processo que incluía produção de cidadania, autonomia e criatividade. Nessa época, estourou no Brasil a ditadura militar que corta exatamente esses três pontos e direciona todo o sistema escolar para a competição e a economia de mercado. A ditadura fechou os espaço de debate para os jovens e reduziu a educação a ideia de ensino. Até hoje nós sofremos as consequências disso. Quando eu ensino, não levo em consideração o saber do outro, mas o meu saber, que o outro tem que aprender. Já quando eu educo, estabeleço uma via de mão dupla, eu também aprendo com o outro. A grande dificuldade dos professores hoje é que eles não querem dizer que são autoritários, não admitem quando não sabem alguma coisa e ficam inventando respostas. As vezes os alunos ficam gozando da cara do professor e ele não tem a honestidade de dizer “não sei”, porque a estrutura é autoritária. Implantou-se no Brasil uma educação Skinneriana, da linha americana, abandonando o perfil filosófico europeu. Hoje toda a educação é voltada para a economia de mercado e a competição. E o que é a competição? É superar, destruir o outro. Nesse contexto, o estudante não é sujeito, é objeto, e é cobrado a escolher uma profissão que dê dinheiro. Ele fica enlouquecido. E é uma pena porque a adolescência é o último momento em que você treina para ser adulto, para ser sujeito, mas tão estabelecendo um cabo de guerra entre o jovem, os pais, os professores.
O suicida costuma dizer “eu não suporto mais essa vida”, como se existisse a possibilidade de outra. Só que não tem. E ele se mata querendo viver.
Wellington – Esse tipo de pressão pode explicar parte do aumento dos índices de suicídio entre os jovens, que antes ocorriam em menor número e muitas vezes motivados por frustrações amorosas?
AN – Há a pressão nos estudos, a definição de uma profissão, a pressão de mercado cada vez mais cedo, as questões relacionadas a orientação sexual e aos afetos. Aí o jovem fica desesperado e alguns não vêm saída. O suicida costuma dizer “eu não suporto mais essa vida”, como se existisse a possibilidade de outra. Só que não tem, meu querido. E ele se mata querendo viver, morre pela possibilidade de passar a ter outra vida.
Wellington – Existe também um receio de falar sobre esse tema, sob pena de que possa estimular novos casos. Qual a sua opinião sobre isso?
AN – Em geral a imprensa não deixa, mas é importante falar para que fiquemos atentos porque o suicida dá sinais. Há uma dinâmica nesse processo, com três momentos distantes um do outro: a ideação, o planejamento e a ação. Todo mundo praticamente já teve sua ideação suicida. No planejamento geralmente a pessoa dá pistas. Torquato Neto deu muitas pistas. Quantas músicas dele falam “adeus”, “vou pra não voltar”? O suicida dá os toques do que pretende fazer, nós é que não reconhecemos, porque não conversamos sobre isso. Essa história de que não se pode falar é um mito que existe desde Goethe e “Os sofrimentos do Jovem Werther” (livro publicado por Goethe em 1774, considerado obra-prima da literatura e marco inicial do romantismo. Após sua primeira publicação teria ocorrido na Europa uma onda de suicídios atribuída à influência do personagem de Goethe, e que foi chamado “efeito Werther”. O impacto do romance sobre o número de suicídios nunca foi demonstrado). Temos mais é que falar sobre esse assunto e é lógico, temos que pensar sobre a maneira como falar sobre isso. Eu acho que o suicido é um direito de cidadania. A pessoa pode não tá mais querendo viver e pronto, é um direito dela.
Foto: Maurício Pokemon
Samária – Mas não há casos que podem ser evitados?
AN – Claro. Vou contar duas histórias: hoje acompanho um menino de 10 anos que me preocupa. Eu disse para a mãe dele: “Mãe, tudo indica que seu filho é transexual. Você vai ficar ao lado dele. Não abra mão para família, para a escola, apoie seu filho”. Mandei chamar o pai. Ele foi até a porta do consultório e não entrou. Parou de falar com o garoto e a mãe não o levou mais. Em um outro caso, anos atrás, uma mãe me procurou preocupada com o filho de 10 anos que só queria desenhar vestidos de mulher. Eu tinha dado a mesma orientação: fique do lado dele, inclusive estimule o desenho dos vestidos. Passaram-se anos. Eu estava envolvido com o coral dos cegos e buscando recursos para fazer o figurino. Um dia o pessoal da ACEP me ligou: “Doutor, conseguimos os recursos, mas amanhã o senhor tem que trazer o desenho, tipo de tecido, metragem”. Eu já fiz tudo na vida, mas desenhar vestido nunca fiz (risos). Fui na Casa das Linhas (loja de tecidos e objetos de casa) e o figurinista me disse: “Você não tá me conhecendo? Sou aquele menino que você mandou a mãe apoiar. Hoje eu coordeno o setor de figurino aqui”. Em 45 minutos sai de lá com tudo resolvido. Conto essas histórias porque a primeira continua a me preocupar, enquanto a segunda teve um desfecho ótimo. Então precisamos conversar sobre todas essas questões que mexem com a criança e o adolescente e que para eles, em determinado momento da vida, são tão grandes e difíceis de lidar.
O jovem hoje se inicia sexualmente dentro de um jogo afetivo, o que não acontecia na minha geração
Wellington – Trabalhando com jovens há mais de 30 anos, o que considera que mudou na cabeça dos jovens do ponto de vista sexual?
AN – Desde a pílula muita coisa mudou para as mulheres. Antes o homem tinha repressão afetiva e liberdade sexual, e a mulher repressão sexual e liberdade afetiva. Agora as mulheres têm também liberdade sexual e os homens têm também liberdade afetiva. Uma das mudanças mais positiva que eu vejo diz respeito a iniciação sexual. O jovem hoje tá dando de porrada em nossa cara. Ele se inicia sexualmente dentro de um jogo afetivo, o que não acontecia na minha geração. Ainda tem uns erros, irresponsabilidades, mas a culpa não é dos jovens, é dos gestores velhos que acham que nada mudou. Eu defendo que os pais devem acolher os jovens para que eles se iniciem sexualmente dentro de casa e não no meio da rua. Porque, como eles não são acolhidos, ninguém conversa sobre isso, a consequência é que o HIV diminuiu na população em geral e aumentou 30% entre os jovens.
Durvalino – As minorias sexuais tiveram grande avanço no processo de libertação dos anos 70 pra cá. Como você avalia esses avanços e onde é preciso avançar mais?
Wellington – Também percebemos um crescimento de jovens homossexuais, bissexuais, falando com mais tranquilidade sobre sua orientação. Como você vê isso?
AN – A Ciência não considerava o Freud cientista, mas um filósofo. Eu acho Freud genial e acho que muitas ideias dele estão se comprovando. Por exemplo: ele dizia que todos nós temos componente de bissexualidade. Isso não significa que todos seremos bissexuais. No final dos anos 40, Kinsey entrevistou 12 mil pessoas nos Estados Unidos e produziu o Relatório Kinsey que, entre outras conclusões apontou que 37% dos homens e 13% das mulheres já tinham tido uma relação homossexual. Isso causou grande repercussão na época. Hoje eu acho que as pessoas estão tendo mais coragem se serem elas mesmas, estão seguindo sua libido, porque fazer sexo é bom! Não precisa nem ter amor, precisa ter tesão. Mas tem que ser saudável. Não sei se aumentou o número de homossexuais e todos os gêneros. Sei que as pessoas estão com mais coragem de sair do armário e cada vez mais jovens. Como todo começo de movimento, podem ocorrer exageros, mas depois encontra seu caminho. (Faz pausa e continua) Eu não gosto da palavra gay. Quem disse que homossexual tem que ser alegre? Acho preconceituosa essa palavra.
Eu não gosto da palavra gay. Quem disse que homossexual tem que ser alegre?
Wellington – A violência contra homossexuais tem vitimado mais os travestis. A que você atribui isso?
AN – O relatório Kinsey apontou que um homem que tem 40% de componente hetero e 60% de componente homossexual costuma se esforçar para mostrar à sociedade os 40% de hetero. Isso se deve às repressões que fazem surgir o homofóbico. Geralmente esse é um sujeito que tem grande componente homossexual mas não se assume como homossexual e não suporta a felicidade do outro, que tem coragem de ser feliz e assumir seus desejos. Nisso estão envolvidas questões culturais, como o machismo e até a religião, que vai ter um peso grande na não discussão ou não aceitação das orientações sexuais não dominantes. E não dá para abafar esses temas como se eles não existissem, porque tanto a fome quanto o sexo são instintos de preservação da espécie que podem lhe tirar a conexão com a realidade. Com fome, qualquer animal ataca, inclusive nós. No sexo você também perde a conexão com a realidade, faz coisas entre quatro paredes que só as pessoas envolvidas sabem. Agora imagine um senhor que se olha no espelho e sente raiva porque desejou um pênis, então ele sai na rua atrás de um pênis de saia, para se enganar, e vai atrás de um travesti. Quando tá excitado, ele se submete a isso. Quando volta à realidade acha que aquele sujeito descobriu seu segredo e o mata de maneira passional. A orientação sexual precisa ser discutida nas escolas. Na Holanda a educação sexual começa aos cinco anos! Aí as pessoas dizem: “A Holanda é um pais muito liberal”. Pois meu querido, lá a iniciação sexual tem se dado aos 17 anos, e aqui é com 14 e com um índice de gravidez altíssimo! Os pais, coitados, não estão preparados porque a escola não ajuda, ninguém fala. Nossa cultura é muito perversa com nosso corpo.
André – Não lhe parece que vivíamos a ilusão de que a sociedade estaria num caminho mais progressista e humanista, mas de repente percebe-se um conservadorismo latente que chega a comportamentos de violência? A gente encaretou no meio do caminho?
AN – Em algumas coisas melhoramos muito. Por exemplo: a experiência dos jovens estudantes da escola pública de São Paulo foi um dos movimentos mais importantes nos últimos tempos no Brasil! Todo mundo dizendo que eram bagunceiros, iam quebrar as escolas. Eles ocuparam, moraram lá, e entregaram a escola limpa, arrumada, expuseram livros e alimentos que estavam escondidos. Se encaretamos eu não sei. Temos que avaliar isso no contexto de pós-modernismo e a fragmentação das pessoalidades e das relações. Tem uma série de novidades acontecendo, como a exposição nas redes sociais. No facebook as pessoas se colocam com a necessidade de serem campeões, mas muitas vezes estão tremendamente tristes. Não sei como vai ficar essa civilização. Para gente viver hoje com o padrão dos Estados Unidos, que é o que o mundo quer, vai precisar existir uns sete planetas Terra. Hoje eu tô lendo muito o papa Francisco. Não sou cristão, mas tô gostando dele, porque é a única pessoa de representação mundial que tá falando a respeito do capital. O papa tem alertado: temos que mudar as relações, essa relação de produzir mais, consumir mais, gastar mais, tá enlouquecendo as pessoas.
As pessoas dizem: “A Holanda é um pais muito liberal”. Mas lá a iniciação sexual tem se dado aos 17 anos, e aqui é com 14 e com um índice de gravidez altíssimo!
Wellington – Você fala no Papa Francisco, mas faz questões de esclarecer que não é cristão, né?
AN – São tantas as religiões e crenças, né? Eu gosto muito dos terreiros de umbanda. Às vezes eu brinco com algumas passagens religiosas e posso ser mal interpretado. Quando eu brinco não é sinal de desrespeitar algo ou alguém, mas podemos encarar tudo na vida com mais leveza. Por exemplo, eu digo que a maior cantada gay que eu conheço tá escrita na Bíblia. Foi quando São Pedro jogou a tarrafa e não pescou nada. Ele olhou para Cristo e perguntou: “Você é pescador?”. Cristo respondeu: “Sou pescador de homens. Deixe sua família e me acompanhe”(risos).
Foto: Arquivo pessoal
Wellington – Você faz um paralelo entre a Teresina da sua adolescência e hoje? Muita coisa mudou?
AN – Eu fui um grande curtidor de Teresina, ia para festa em locais onde não se anda, luaradas na coroa do Parnaíba, a gente saia para ouvir música e fumar maconha. Não tinha motel e eu levava um colchonete no porta-malas do carro. Minha geração saiu de uma época tremendamente conservadora e passou por tudo, até chegar aos dias de hoje. Eu sempre tomei a frente em muitos movimentos. Fui hippie, viajei dormindo no chão, acampando na praia, bebendo com pescadores. Hoje a violência impede muito essas liberdades. Parte da minha geração foi embora para Rio de Janeiro e São Paulo, achavam Teresina muito pequena e precisavam ir embora para se libertar, inclusive sexualmente. Eu fiz o contrário: quis vir para Teresina. No Rio eu compro feito, mas em Teresina eu vim fazer.
Parte da minha geração foi embora para Rio de Janeiro e São Paulo, achavam Teresina muito pequena e precisavam ir embora para se libertar, inclusive sexualmente. Eu fiz o contrário. No Rio eu compro feito, mas em Teresina eu vim fazer.
André – Você fez parte da geração de 72 e sempre esteve na linha de frente de alguns movimentos. Como você está vendo a produção cultural do Piauí hoje? Identifica pessoas ou áreas que estejam fazendo boas provocações?
AN – Vejo algumas coisas em produção audiovisual, experiências em cultura popular e outras iniciativas produzidas em coletivos. Outro dia fui no Salve Rainha, me senti um dinossauro (arrasta a palavra), fiquei velho, e achei engraçado. Há coletivos também na periferia. Mas no geral tô achando que falta mais garra na juventude, especialmente na busca de pesquisar mais a cultura. Temos muito a cultura do evento, uma visão pontual sobre as coisas. Existe uma grande curiosidade sexual na juventude, mas tá faltando curiosidade em estudar, aprofundar.
André – Você gosta de pesquisar a produção musical. O que tem visto ultimamente?
AN – Vejo que o pessoal da música no Piauí não sabe nada do que rola na periferia da cidade, não pesquisa nossas raízes, não temos uma identidade cultural. A música que o Piauí produz é pop, por isso tá cheio de bandas ótimas, mas vão bem ali e voltam, porque São Paulo tem bandas tão boas quanto. Tem toda uma riqueza cultural no Piauí que o pessoal não explora, como Chico Science fez com Maracatu, como Rogério Duprat fez com o tropicalismo. Isso não é muita pretensão, é?
Durvalino – Na área musical, sabe-se que você tem uma discoteca fabulosa, iniciada antes dos anos 70. Com as dificuldades atuais para reproduzir LPs de vinil, que destino você pretende dar a esse acervo?
AN – Eu estava guardando, imaginando doar para o Museu da Imagem e do Som do Piauí, mas o projeto não andou. Na idade que cheguei, resolvi me desfazer das coisas que colecionava. Tô vendendo quase quatro mil discos, doei minha biblioteca quase toda, minha coleção de histórias em quadrinhos. Não tem sentido guardar tudo isso. Sempre me preocupei em socializar a informação, quando eu aprendo uma coisa quero socializar o mais rápido possível, tanto que eu aprendo hoje, amanha já tô na televisão dando entrevista (risos).
Wellington – De que modo a literatura e a leitura tiveram influência para que você se tornasse o profissional que é?
AN – Eu sempre li muito. E quando voltei a morar em Teresina tive que enfrentar Teresina – no bom sentido. Eu tinha que ser um bom profissional, não podia pisar na bola, eu sabia qual o meio em que estava me metendo, fui de certa maneira discriminado no meio médico, mesmo tendo sido o primeiro mestre em minha área no Piauí. Quando eu vim para Teresina pensei: eu vou viver a minha vida, não abro mão dela. Então eu tinha que ser muito bom, se não o melhor. E como eu me segurei? Através de leitura. Não abri mão de minhas convicções e defini meu essencial. Sou transgeracional, tenho amigos em todas as gerações e sempre com respeito e dignidade.
Wellington – Associa-se muito a violência as drogas. Como você vê essa questão? É favorável a descriminalização das drogas?
AN – Droga não provoca violência, ela é um facilitador. A violência é anterior a droga. Hoje a droga movimenta no mundo algo em torno de 800 bilhões de dólares e é um dinheiro que não paga imposto, que elege muita gente, chega na mão de políticos em vários lugares do mundo. Morre muito mais gente no tráfico que no uso da droga, mas não interessa combater o tráfico porque tem um grande capital sendo gerado nesse mercado. Na última vez que fui no Perú, procurei um xamã inca. Ele queria que eu tomasse o San Pedro (bebida extraída de um cacto que chega a mais de dois metros de altura, tendo a mescalina como princípio ativo). Eu não tomei por causa da minha idade, mas já usei todas as drogas que apareceram na minha frente, só não experimentei crack. Usar de tudo e sair ileso é a grande dificuldade. Depois que você entra, principalmente no crack, é complicado sair. O crack dá um pico de auto estima maior que a cocaína, e um sofrimento maior também. A droga age diminuindo a censura do super-ego que é a censura social. Quando você corta a censura, vai depender do que se formou no seu Id, onde entra toda a sua história desde intra-útero, se você foi violentando, abusado. Por isso eu afirmo que a violência é anterior as drogas. O consumo de drogas tá sim aumentando em todo o mundo e sou a favor da descriminalização. Temos algumas experiências positivas em Portugal e algo se iniciando no Uruguai e alguns estados americanos, onde o consumo foi descriminalizado.
Já usei todas as drogas que apareceram na minha frente, só não experimentei crack. Usar de tudo e sair ileso é a grande dificuldade.
Samária – Como você acha que suas opiniões sobre descriminalização de drogas, eutanásia, suicídio, são vistas entre seus colegas médicos?
AN – Eu sou um dissonante.
André – Você acha que o Estado está preparado para lidar com a liberalização do uso de drogas e vai conseguir fazer um controle adequado já que, como você acredita, o capital posto em movimento pela droga e de outras formas, tem poder sobre o Estado?
AN – Você conhece alguma coisa que já começou pronta? Tudo são processos. Tem que começar e você vai aperfeiçoando. Aí entra outra grande discussão que é a perca da noção de processos de nossos gestores. Ninguém enxerga a busca de solução como um processo, tudo é visão pontual. Cultura agora é fazer evento. Perdeu-se a noção de processos na educação, na segurança – as questões são atacadas como pontuais e não se soluciona o importante.
Samária – Como essa perda da noção de processos se reflete na relação do jovem com a violência?
AN – A segurança tinha que ter três grandes objetivos: prevenção, punição e ressocialização. Ela faz dois: a punição e outro que nem estava previsto: a criação de monstros. 72% dos presos do sistema carcerário são provisórios e sem julgamento. No espaço para dez pessoas, ficam 50! Esse pessoal tem que fazer turno para dormir, muitas vezes sem água, sem energia elétrica. Quando essa pessoa sai da prisão, já perdeu qualquer noção de respeito a cidadania e tá com ódio da sociedade. Prova disso é que a situação tá ficando insustentável! Aquele menino de Castelo do Piauí (caso onde quatro menores estupraram e espancaram quatro meninas, levando uma à morte. O garoto a que Noronha se refere morreu pouco depois de preso, espancado dentro da cela, pelos outros menores, co-autores do estupro coletivo) com sete anos de idade, ele disse: “Eu vou ser um bandido famoso em todo o Brasil!”. Sete anos depois, aos 14 anos, ele estava na capa da Veja. Se não fosse trágico, seria genial! Quando cometeu esse crime, esse menino tinha 86 denúncias na delegacia da cidade! Não apareceu ninguém para tentar botar esse menino em outro rumo: nem sociedade civil, nem Igreja, família, instituição social, escola, nada! Nós falhamos porque perdemos a noção de processos. Você acha que um menino de 14 anos, que cometeu um crime hediondo, se tornou-se bandido naquele momento? E acha que vai prender e corrigir? Não! Ele foi fabricado. Como a Simone de Beauvoir dizia: mulher é uma construção social, pois ser bandido também é uma construção social.
Imagine o lucro no fornecimento de comida para uma prisão, pense no dinheiro que chega às mãos dos políticos para que votem em favor da ideia da redução da maioridade penal!
André – E qual seu posicionamento em relação a redução da maioridade penal?
AN – Por trás da defesa da redução da maioridade penal há uma máfia lucrando muito dinheiro. Um preso federal custa sete mil reais por mês, um estadual custa três mil reais. Um professor de escola pública custa dois mil reais, um aluno fica na faixa dos 450 reais. Agora imagine o lucro no fornecimento de comida para uma prisão, pense no dinheiro que chega às mãos dos políticos para que votem em favor da ideia da redução da maioridade penal! É assombroso. E quanto mais gente na cadeia, mais lucro para alguns e mais criação de monstros, que é o que as prisões fazem.
Samária – Alguns estudos indicam que, quando idoso, o homossexual se sente pressionado a “voltar para o armário”. Isso acontece?
AN – Eu tô voltando para o armário porque minha visão tá ruim, já dirijo pouco a noite (risos). O maior problema do envelhecimento é que a sociedade mata os velhos. Culturalmente ele começa a não valer nada e é discriminado de várias formas, inclusive na sua sexualidade.
Durvalino – Você fez 70 anos. O que a pessoa de 70 deve fazer para ser feliz?
AN – Tudo! (risos). Eu só não faço o que o corpo não deixa, mas minha cabeça continua a querer. Eu não sei o que é ser aposentado, todo dia tenho um novo projeto, viagens planejadas e quero fazer novos amigos. Eu tô muito vivo, meu querido!
(Publicada na Revestrés#23, dez-jan 2015-2016)