Entrevistado por André Gonçalves, Maurício Pokemon, Samária Andrade e Wellington Soares | Texto e edição: Samária Andrade | Fotos: Maurício Pokemon.

Um abaixo-assinado com cerca de duas mil assinaturas, a maioria de pais de estudantes, impediu a realização da palestra. Estamos em junho de 2023, na cidade de Caxias do Sul (RS), no centenário Colégio São José, de ensino fundamental e médio, regido por freiras católicas e frequentemente na lista de melhores escolas do Brasil pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Mas o que poderia haver de tão perigoso numa palestra de um frade dominicano de 78 anos, cabelos brancos, sobrenome “Christo” e um jeito calmo de falar?

Frei Betto | Foto: Maurício Pokemon

Calmo, porém sem concessões. O nome dele é Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 74 livros publicados, histórico de luta contra injustiças sociais na América Latina e preso político por duas vezes no período da ditadura militar brasileira. A palestra tinha, como tema, “As fomes do Brasil e esperanças de futuro”. Fome, aliás, é um dos temas de domínio do frade. Ele foi coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, criado em 2003 para combater a fome e suas causas estruturais, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse mesmo campo de interesse, cumpre o bordão que a extrema-direita brasileira repete: “vai pra Cuba”. Ele vai constantemente. Desde 2019 é assessor do governo cubano no plano de soberania alimentar de Cuba.  

Voltando ao abaixo assinado, a justificativa alegada para o cancelamento da palestra não justifica. O argumento diz: “Frei Betto é adepto da Teologia da Libertação e militante de programas pastorais e sociais”. A Teologia da Libertação é uma abordagem do catolicismo que une, às teses católicas, análises socioeconômicas, preocupando-se com populações empobrecidas e denunciando opressões. Os programas pastorais foram desenvolvidos via CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que se difundiram nos anos 1970 e 1980 no Brasil e América Latina, vinculando Igreja Católica e comunidades com carências materiais. A frase usada no abaixo-assinado é exatamente igual ao que aparece na descrição de Frei Betto na wikipédia, cortando o último trecho: “tendo ocupado a função de assessor especial do presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2004″. 

Carlos Alberto Libânio Christo nasceu em Belo Horizonte, filho de um jornalista e uma escritora e culinarista. Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia. Tornou-se doutor honoris causa em Filosofia pela Universidade de Havana, em Cuba, e em Educação pela Universidade José Martí, no México. Também estudou para ser padre, mas preferiu tornar-se frade da Ordem de São Domingos (Dominicana) da Igreja Católica, que prega a palavra de Cristo e busca a conversão ao cristianismo. Frei Betto considera Cristo um militante em defesa de causas sociais. Não à toa um dos seus livros mais recentes se chama “Jesus Militante” (Vozes, 2022). 

Diferente dos padres, os frades não celebram missas e outros rituais católicos. Eles fazem votos de pobreza e castidade, e declaram obediência a Deus. Mas Frei Betto não se exime de críticas à igreja católica. Diz-se um admirador do papa Francisco, mas não poupa João Paulo II e Bento XVI, papas que, segundo ele, impuseram um modelo conservador que afastou a Igreja das comunidades, ajudando a deixar espaço para evangélicos fundamentalistas, narcotráfico e milícias. Ele diz que hoje a igreja católica vive uma realidade esdrúxula: “Tem uma cabeça progressista – o papa Francisco -, e um corpo conservador. O pessoal da esquerda italiana diz que a única pessoa de esquerda que resta na Itália é um estrangeiro: o papa!” (risos).   

O frade é disciplinado e regularmente pratica atividade física e meditação. Diz que aprendeu a meditar com os dominicanos, mas desenvolveu a técnica quando esteve preso por mais de quatro anos, de 1969 a 1973, chamado “período de chumbo” da ditadura militar brasileira. Junto aos amigos frades Oswaldo, Fernando, Ivo e Tito, escondia e ajudava a retirar do país perseguidos políticos, fazendo, de um convento no sul do Brasil, uma trincheira de resistência, e apoiando o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional (ALN), comandado por Carlos Marighella. Frei Betto foi preso em Porto Alegre e transferido para São Paulo. Frei Tito, além de preso, sofreu graves torturas. Meses depois, o grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) sequestrou Giovanni Bucher, embaixador suíço no Brasil, e exigiu, em troca, a libertação de setenta presos políticos. Entre eles, estava Frei Tito.

Os anos de prisão resultaram nos livros mais conhecidos de Frei Betto: Batismo de Sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella; Diário de Fernando: nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira e Cartas da Prisão. Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro de memórias, foi traduzido para francês e italiano e tornou-se uma denúncia contra a tortura política no Brasil. O livro também virou filme, dirigido por Helvécio Ratton, em 2006.

Nos anos de cárcere, Frei Betto passou por 10 presídios, entre eles o Carandiru e a Penitenciária de Presidente Venceslau, de segurança máxima, onde se organizou o PCC (Primeiro Comando da Capital), mais conhecida facção criminosa em presídio brasileiro. O frade promovia cursos bíblicos e de teatro. Admite que a prisão deixa marcas profundas, mas considera que até se saiu bem. Em entrevista ao jornal Pastoral Carcerária, contou como a meditação o ajudou: “Você deve estar com a cabeça e o corpo no mesmo lugar, não pode estar com o corpo lá dentro e a cabeça aqui fora” – uma lição comum no budismo. Em outra entrevista, para o monge Dada Maheshvarananda, disse que não deseja a experiência da prisão para ninguém, mas experimentou um encontro consigo mesmo, “portanto com Deus”. E refletiu: “Quanto mais a gente vai ao encontro de si mesmo, mais encontra um outro que não sou eu e que, no entanto, funda minha verdadeira identidade”.

Quando a palestra recente foi cancelada, o caso teve repercussão nacional. Frei Betto não deixou de realizar sua conferência, apenas a transferiu para a Universidade de Caxias do Sul (UCS). Perguntado por jornalistas o que tinha a dizer sobre o cancelamento, lamentou que as freiras tenham tido medo das ameaças – “O curioso é que as irmãs que administram o colégio me apoiaram muito quando estive preso no Rio Grande do Sul, em 1969”. Sobre a significativa quantidade de assinaturas pedindo o cancelamento da conferência, não se abalou, e avaliou com seu jeito sincero: “É um sinal positivo. Há pessoas que, se me elogiassem, eu me sentiria muito mal”. 

O homem que se orgulha de não ser omisso, continua protagonizando capítulos da história do Brasil. Ele percorre o país em palestras e, além da palavra, leva seus livros. Continua sem concessões. Passando por Teresina, conversou com Revestrés. É atento ao uso adequado das palavras, costumando usar expressões como: “ou seja”, “em outras palavras…” – para em seguida reafirmar o que disse, cuidando de deixar claro o que deseja expressar. De modo polido, porém assertivo, quando acha necessário corrige o interlocutor no ato. Com pensamento crítico afiado e muita história na bagagem, ele testemunha quantas fomes – também metafóricas – podemos alimentar.

Frei Betto | Foto: Maurício Pokemon

Samária:  Próximo às eleições de 2022 aconteceram ataques a padres da Igreja Católica dentro dos próprios templos, por pessoas que consideraram alguns sermões contrários ao então presidente Jair Bolsonaro ou favoráveis ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva. No Santuário de Aparecida, o arcebispo foi vaiado ao falar em combater o ódio e a mentira. Depois de aparentemente deixar que algumas dessas situações ocorressem livremente, alguns padres começaram a reagir e não aceitar ofensas. O que aconteceu? A Igreja Católica resolveu retomar um discurso e se posicionar? 

Frei Betto: A Igreja Católica perdeu o profetismo que tinha no Brasil, principalmente através da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que foi muito atuante contra a ditadura, do final dos anos 1970 até 1990. Depois, com os pontificados conservadores de João Paulo II e Bento XVI, houve um refluxo desse profetismo e hoje a CNBB é muito dividida. A base do clero e do episcopado brasileiro atual é conservadora, de centro pra direita. Você não tem mais um movimento pró-Comunidades Eclesiais de Base, Teologia da Libertação… Até existe, mas é residual. Desde o golpe que derrubou a presidente Dilma, a CNBB passou a ter atitudes um pouco mais avançadas, mais críticas, principalmente ao governo Bolsonaro, mas não com aquele profetismo que a caracterizava em décadas passadas. A Igreja não pode proibir que pessoas frequentem o templo. Por outro lado, essas pessoas que foram agressivas ou quiseram fazer provocações deram um tiro no pé, porque essas provocações tiveram repercussão e levaram a CNBB a ser cada vez mais crítica a Bolsonaro, embora ele ainda conte com apoio de um contingente significativo de padres e bispos. Essa é a realidade que convivemos hoje: uma Igreja Católica que tem uma cabeça progressista – o papa Francisco – e um corpo conservador. É uma situação esdrúxula, mas é real. O pessoal da esquerda italiana diz que a única pessoa de esquerda que resta na Itália é um estrangeiro: o papa! (risos).  

A igreja católica tem uma cabeça progressista – o papa Francisco -, e um corpo conservador. A esquerda italiana diz que a única pessoa de esquerda que resta na Itália é um estrangeiro: o papa!   

 

André: Algumas análises dizem que mesmo sem Bolsonaro reeleito, o bolsonarismo não acabou. O que podemos esperar do Brasil que emerge a partir de 2023? Vamos recuperar a alegria e confiança no país?

FBA cultura do Bolsonarismo vai perdurar e, acredito, cada vez mais agressiva. Nós, da esquerda, ou progressistas – porque não sei se ainda existe gente de esquerda, não vejo ninguém falar em socialismo, marxismo, em mudanças estruturais, então tenho minhas dúvidas se ainda existe esquerda. Eu me considero de esquerda, mas vejo poucas pessoas nessa linha. Bom, a questão é: nós vamos ter que voltar ao trabalho de base, o bolsonarismo é resultado da nossa falha no trabalho de base. Traduzindo em miúdos: Lula várias vezes repetiu que a capilaridade do PT em âmbito nacional se deve às Comunidades Eclesiais de Base, e não ao sindicalismo. De fato, as Comunidades foram o movimento popular mais extensivo e intensivo em todo o país desde o golpe de 1964 e delas vieram muitas lideranças sindicais e populares: (Luiza) Erundina, Vicentinho, (Jair) Meneguelli, José Genoíno, Paulo Paim, Olívio Dutra. O Lula é até exceção: alguém que não veio do movimento pastoral progressista. Esse trabalho das CEBs se somou, no processo de queda da ditadura, com o sindicalismo combativo, com os remanescentes da esquerda armada que saíram da prisão e com os movimentos populares que brotaram desse processo, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). O Boulos foi do MST e fundou depois o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Esse acúmulo de política popular foi um manancial de quadros políticos, ideologicamente bem preparados, do ponto de vista prático e também da consciência política avançada. Na medida em que partidos como o PT chegaram a instâncias de governo, esses quadros foram progressivamente absorvidos e, nesse processo de absorção, não houve uma reprodução do trabalho de base, coincidindo com os 34 anos de pontificado conservador de João Paulo II e Bento XVI e, portanto, com um refluxo das CEBs. Então criou-se um vazio, progressivamente ocupado por evangélicos fundamentalistas, pelo narcotráfico e pelas milícias. E não é fácil voltarmos ao que éramos. Nos 13 anos de governo do PT, não cuidamos da educação política do povo. Todo o processo de inclusão social foi feito por benefícios e não por conscientização: cotas, Minha Casa, Minha Vida, Mais Médicos, escolas técnicas, universidades, ENEM, Luz para Todos. Do outro lado, a deseducação política é intensivamente gerenciada pela classe dominante e pelos grandes meios de comunicação. Então eu não me surpreendo que toda essa avalanche de forças conservadoras tenha saído do armário, porque eles estavam precisando de um referencial. Havia figuras meio caricatas, como Roberto Jefferson, Eduardo Cunha, mas não eram populares como Bolsonaro. Vamos ter anos, décadas, de muita tensão. E temos que repensar nossa estratégia e voltarmos ao trabalho de organização e conscientização. Em outras palavras: se Lula não suscitar um trabalho frequente de mobilização popular, ele vai perder espaço, correndo até risco de sofrer impeachment, porque a única força capaz de se contrapor a esse congresso profundamente conservador é a mobilização popular. Não vejo outra via. Tudo depende do fôlego e consciência dos partidos progressistas sobre a importância desse trabalho popular.

Não sei se ainda existe gente de esquerda, não vejo ninguém falar em socialismo, marxismo, mudanças estruturais. Eu me considero de esquerda, mas vejo poucas pessoas nessa linha.

André: Nós temos uma conjuntura mundial com ascensão da direita e extrema-direita. Você citou a Itália e temos também França, Hungria, os Estados Unidos com a experiência com Trump e o próprio Biden, que é a direita do partido Democrático. Isso mostra que o caso brasileiro não é isolado. É possível que Lula lide com essa conjuntura global e não tenha seu papel de presidente influenciado por ela? 

FB: Do ponto de vista do cenário internacional não sou tão preocupado, porque esses países também dependem do Brasil, que é muito poderoso. São fundamentais a questão da Amazônia, do agronegócio – principalmente milho e soja -, o potencial do Brasil para a energia limpa… Então o Brasil é muito importante para que haja uma política de agressão ou fechamento de negociações, todo o mundo tem interesse em manter boas relações com o Brasil, ninguém quer dar um chega pra lá, como fizeram com a Venezuela. E o Lula tem muito jogo de cintura para manter boas relações, conseguiu ter excelentes relações com Bush filho, que era um cara de extrema-direita. O que me preocupa é pra onde a cultura política está indo – no Brasil e no mundo. E isso me preocupa desde Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra de 1979 a 1990). Quando ela falou que a sociedade se reduz a dois entes – Estado e família -, cortou todas as vias intermediárias: sindicatos, ONGs, movimentos sociais! Hoje a coisa se radicalizou mais, porque a cultura da direita nega toda forma de institucionalização. Ela é privatizadora, não só dos recursos do Estado, mas das instituições humanas. Tivemos a reforma trabalhista do Temer e a desarticulação total do movimento sindical, o fim do imposto compulsório para os sindicatos, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) tá indo a penúria! A filosofia dessa direita é o empreendedorismo: cada um que se vire, o Estado não tem que garantir nada, o que tem é acumulação privada do capital e uma sociedade em que as forças armadas e a polícia são reduzidas ao cidadão armado, as empresas são reduzidas ao empreendedorismo individual, o sindicalismo à uberização da força de trabalho. É a total desinstitucionalização da sociedade, para que os cidadãos sejam mais facilmente manipulados, na medida em que não são organizados, não têm órgão de representatividade, não debatem seus direitos e interesses coletivamente. Essa era a proposta de Thatcher e é de Trump, de Meloni (primeira-ministra da Itália) e de Bolsonaro também.

Coincidindo com os 34 anos de pontificado conservador de João Paulo II e Bento XVI, criou-se um vazio, progressivamente ocupado por evangélicos fundamentalistas, narcotráfico e milícias.

Wellington: Como você vê hoje a situação de Cuba, diante dessa nova conjuntura mundial?

FB: Cuba está sofrendo porque se juntaram uma série de fatores que levam a população a passar por muitas dificuldades. Tem as 243 medidas tomadas por Trump, apertando o bloqueio, e assumidas por Biden. Depois a pandemia fez com que a principal fonte de renda de Cuba nos últimos anos sumisse: o turismo. É dramático, você chega em Havana e vê hotéis monumentais quase inteiramente vazios. A pandemia também provocou uma desarticulação da marinha mercante e milhares de containers destinados a Cuba ficaram parados em portos do mundo por muito tempo. Sem apoio dos países, Cuba teve que inventar suas vacinas contra a Covid, nem Rússia nem China doaram vacinas para Cuba. Biden baixou mais medidas de restrição para turistas americanos e europeus que visitem Cuba. Eles estão tentando sair do sufoco. A partir da minha experiência no Fome Zero, desde 2019 estou assessorando o governo cubano num programa de soberania alimentar e educação nutricional, então vou lá com certa frequência. Kennedy falava: “nós temos que matar Cuba pela boca”. Na época de Obama havia muitos turistas, navios com três mil pessoas. Isso acabou. Cuba voltou a ser incluída na lista de países que promovem terrorismo. Logo Cuba, que combate o terrorismo.

Se Lula não suscitar um trabalho frequente de mobilização popular, corre risco de sofrer impeachment, porque a única força capaz de se contrapor a esse congresso conservador é a mobilização popular.

André: E qual tem sido o papel da China e a ideia de um socialismo com características chinesas? 

FB: A China, pra mim, é uma incógnita, um país que tem muitos méritos: tem o povo como objeto principal de sua política, não tem um único soldado chinês fora da China, enquanto os Estados Unidos têm bases militares espalhadas pelo planeta, inclusive na Colômbia. Mas a China tem o problema de ser um país ultra capitalista, uma situação esdrúxula: um governo teoricamente socialista com uma economia ultra capitalista. A China até ajuda Cuba, mas não tanto como poderia e deveria. Chineses ricos são extremamente ricos! (fala com ênfase). Vejo nos festivais de charuto em Cuba que promovem leilões em benefício dos hospitais pediátricos, tem chinês que paga 400 mil euros por uma caixa de charuto! (corresponde hoje a mais de dois milhões de reais). Quando fui à China em 1988  já me impactou o pragmatismo que eles têm. Na época, vivíamos ainda os resquícios das greves dos metalúrgicos no ABC e o carro mais importado na China era o Santana (Volkswagen), fabricado em São Bernardo do Campo. Eu perguntei a um dirigente chinês porque, em apoio ao movimento sindical, eles não deixavam de importar o Santana, que fortalecia a Volkswagen e, por sua vez, prejudicava os trabalhadores. Ele respondeu: “porque quando se trata de caçar o rato, a gente não se pergunta pela cor do gato”. Essa é a lógica deles: queremos ficar ricos, o caminho é esse, vamos lá e acabou.

A filosofia da direita é o empreendedorismo: cada um que se vire, o Estado não garante nada, o que tem é acumulação privada do capital, forças armadas e polícia são reduzidas ao cidadão armado, empresas ao empreendedorismo individual e sindicalismo à uberização da força de trabalho.

Wellington: No filme Batismo de Sangue, inspirado em seu romance… 

FB: Não é romance.

Wellington: É um documento histórico. Eu quero me referir a Carlos Marighella, escritor, guerrilheiro, um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura militar brasileira, que  chegou a ser considerado o inimigo “número um” do regime na época do sequestro do embaixador suíço, que você trata no livro Batismo de Sangue. O nome de Marighella foi retomado recentemente com o filme dirigido por Wagner Moura, uma adaptação do livro de Mário Magalhães. O que você achou do filme? 

FB: Acho que o mérito do filme de Wagner Moura foi trazer à tona o nome de Marighella e suscitar, principalmente nos jovens, o interesse por quem foi essa figura, mas acho que ele perdeu uma boa oportunidade de fazer um bom filme. Eu conheço muito bem a história do Marighella, sua luta contra a ditadura de Getúlio Vargas, seu desempenho como deputado, a atuação no partido comunista, a ruptura com o PCB, a formação da ALN – da qual eu participei-, e tudo isso foi escanteado por uma relação entre pai e filho. Perdeu-se a oportunidade de fazer um filme digno da trajetória de Marighella. Além do que, no filme, as mulheres são todas submissas, são apenas esposas de seus maridos combativos. E o Mário Magalhães, autor do livro, concorda com a minha tese de Batismo de Sangue, de que os dominicanos não podem ser responsabilizados pela morte de Marighella. Já o filme vai pela versão da polícia e responsabiliza os dominicanos. Eu disse isso ao Wagner por e-mail. Ele não me respondeu, certamente não gostou dessa minha crítica.

Perdeu-se a oportunidade de fazer um filme digno da trajetória de Marighella. Além do que, no filme, as mulheres são todas submissas, apenas esposas de seus maridos combativos.

Wellington: Quem foi, para você, Carlos Marighella? E a esquerda tem ou precisa ter uma referência como ele na luta por uma sociedade mais justa?

FB: Marighella foi um dos maiores revolucionários da história recente do Brasil. Uma pessoa que tinha uma formação ideológica muito sólida, uma concepção de libertação desse país sem qualquer ingerência do imperialismo dos Estados Unidos, mas adotou, numa conjuntura, um processo político que não deu resultado. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) não tinha uma tradição de trabalho de base. Em outras palavras: não abraçou Paulo Freire, o que faltou a Marighella foi uma boa dose de Paulo Freire – ele até falava isso, mas não teve tempo de fazer um trabalho político mais intenso do que o trabalho militar. Na ALN o trabalho militar superou o trabalho político. Nós devemos exaltar todas as figuras revolucionárias como Marighella, (Carlos) Lamarca, João Amazonas, Joaquim Câmara Ferreira (todos participaram da guerrilha armada contra a ditadura) – todos merecem ser cada mais conhecidos e servir de exemplo às novas gerações. E também Apolônio de Carvalho, Chico Mendes e personalidades anteriores, como Frei Caneca, Tiradentes. O Brasil tem uma história de muitas lutas libertárias, infelizmente não ensinadas nas escolas e pouco conhecidas da opinião pública. Com isso a gente tem a sensação de que a história do Brasil se fez sem sangue, na base do entendimento entre as classes, quando não é verdade. Tivemos a mais longa escravidão das três Américas – 350 anos -, uma dizimação terrível dos povos indígenas, uma história cruenta e cruel e, no entanto, pouco veiculada. Por isso que eu fiz o livro O Estranho dia de Zacarias (infantil), para rediscutir a questão do descobrimento, entre aspas, do Brasil, na verdade invadido por colonizadores portugueses. É como se você chegasse agora na sua casa e encontrasse ladrões ensacando seus bens e eles dissessem: “nós descobrimos seu domicílio e estamos levando algumas peças como lembrança para comemorar o feito”. Me irrita, como mineiro, abrir um livro e constatar que a rebelião mineira, liderada por Tiradentes, é tratada até hoje por inconfidência, e os revoltosos por inconfidentes. Inconfidente é quem não merece confiança! (fala com ênfase) Isso foi uma pecha que a coroa portuguesa colocou nos revoltosos para desmoralizá-los. No entanto isso entra pelos ouvidos e ninguém sequer se pergunta o que significa essa expressão.

O Brasil tem uma história de lutas libertárias, infelizmente não ensinadas nas escolas e pouco conhecidas da opinião pública. Com isso a gente tem a sensação de que a história do Brasil se fez sem sangue, na base do entendimento entre as classes.

Samária: Sobre silenciar fatos de nossa história, você foi preso duas vezes pela ditadura militar brasileira, a segunda vez por mais de quatro anos, e a gente vê pessoas se manifestando pela volta da ditadura. Nós falamos pouco sobre as pessoas que foram presas e torturadas?  

FB: Na minha livraria virtual (https://www.freibetto.org/) eu falo muito, e as pessoas encontram os três livros que escrevi sobre isso: O Batismo de Sangue, O Diário de Fernando e As cartas da prisão. O Diário de Fernando tem esse título porque Frei Fernando teve o cuidado de fazer um diário dentro da prisão durante quatro anos. Não há registro de todos os dias porque muitas vezes ele não podia escrever, não tinha caneta e papel ou tinha que destruir o que havia escrito, por razões de segurança. Várias vezes as celas eram revistadas e nós, dominicanos presos, passamos por oito cárceres diferentes em quatro anos. Ficamos dois anos junto a presos políticos e dois anos misturados com presos comuns. No Carandiru ficamos com cinco mil presos comuns; na Presidente Venceslau, onde hoje está o comando do PCC, estivemos com 400 presos comuns (após breve pausa, continua). Prisão é prisão, é um momento de privação, tortura, terror, e você tem que aprender a conviver com aquilo. E as pessoas aqui fora não tinham muita ideia do que acontecia. Hoje, quando o filme Batismo de Sangue é passado em escolas e universidades, muitos jovens dizem que sabiam que isso acontecia no Chile, Argentina, mas se surpreendem por ter acontecido no Brasil, porque ainda se fala pouco desse período. As pessoas não têm ideia do que significa uma ditadura! Primeiro ela se caracteriza por uma total censura aos meios de comunicação, então as coisas não são conhecidas. Na Alemanha, durante o período de Hitler, ninguém tinha ideia de que havia campos de concentração, acreditaram que eram fábricas, que estavam exalando aquela fumaça porque ali se produzia algum bem material e não porque corpos estavam sendo dizimados. No Brasil há casos de pessoas de direita que também foram vitimas da ditadura militar, porque na ditadura, se eu quero me vingar de você, é muito simples: passo uma informação anônima para a polícia de que você está envolvida com a subversão. Isso aconteceu com o filho do presidente da Usiminas (indústria de aço), uma das maiores empresas de Minas Gerais, e ele era um homem de direita, totalmente afinado com a ditadura, e o filho foi confundido com um militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), do Lamarca, e foi levado pra tortura. Como ele não falava, achavam que era um militante de alta qualidade, treinado pra não abrir o jogo, e o mataram. O pai pirou, a família inteira pirou, porque ele foi morto na tortura. E isso não é um caso único. 

O capitalismo não é humanizável. Ele tem que ser destruído, superado. E o Papa Francisco tem essa visão. Mas é um homem hábil, faz uma crítica contundente ao capitalismo e não usa as palavras chavões.

Samária: E o que você diria às pessoas que defendem a volta da ditadura?

FB: Às vezes me perguntam se eu acho que estávamos vivendo uma ditadura… Eu vivi numa ditadura e é muito pior do que vivemos, mesmo com Bolsonaro e bolsonarismo, porque você não tem alternativas! (fala com ênfase). Na ditadura você só tem três caminhos: a luta clandestina, a prisão ou o exílio. Isso pra quem tá apresentando resistência, né? Porque pra quem não apresenta resistência, se acomoda e aceita a regra do jogo. As pessoas que defendem ditadura estão defendendo uma suposta tranquilidade que acham que um estado policial pode garantir e isso é uma grande bobagem, porque na ditadura a violência campeava de todas as maneiras, até porque havia impunidade das forças policiais. A polícia simplesmente fuzilava pessoas que cometiam pequenos furtos, crimes comuns. Elas não passavam por nenhuma instância da justiça, eram assassinadas pelos esquadrões da morte. Muitas pessoas de classe média e alta que tinham alguma suspeita de subversão eram duramente reprimidas e desapareciam, como Rubens Paiva e Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, maior modista do Brasil. Ele foi trucidado nas dependências da aeronáutica no aeroporto do Galeão e o corpo atirado ao mar, como tantos outros… Coisas que a gente só fica sabendo depois, porque na época simplesmente se registra como desaparecimento.

André: Você citou o papa Francisco, conhecido por posições mais progressistas. Como você vê o pontificado do papa Francisco e, a partir dele, como se dá a relação dele com as esquerdas marxistas?

FB: Primeiro você citou algo que acho que não existe: esquerda marxista. Se existe, não sei aonde. Existem pessoas de esquerda que também são marxistas. Mal temos esquerda, quanto mais marxista! Lancei uma cartilha há uns três anos: O marxismo ainda é útil?, justamente pra mostrar a importância do método marxista. Acho fundamental, sobretudo os jovens, conhecerem, especialmente na medida em que, no mundo de hoje, só se pode ter dois tipos de lógica: a analítica ou a dialética. A analítica é a que convém ao capitalismo e a dialética convém a uma sociedade progressista. O marxismo é a única filosofia ou ideologia capaz de criticar os fundamentos do capitalismo. Qualquer outra é querer colocar remendo novo em pano velho, como disse Jesus no Evangelho, ou querer limar os dentes do tigre achando que vai tirar a agressividade dele. O capitalismo, a meu ver, não é humanizável, ele tem que ser destruído, superado. E o papa Francisco tem essa visão. Ele é um homem muito hábil e jamais vai dizer abertamente que apoia o marxismo, a Teologia da Libertação, embora tenha recebido a mim, a Gustavo Gutiérrez (teólogo peruano e sacerdote dominicano, considerado por muitos como fundador da Teologia da Libertação) e todos os documentos e práticas dele estão afinados com essas ideias. Nas encíclicas dele a crítica ao capitalismo é contundente, só não aparecem as palavras chavões. Tanto que a reação a ele dentro da Igreja Católica, principalmente nos Estados Unidos, é violenta. Até cardeais o consideram comunista. Ele fez um encontro chamado “Uma economia de Francisco (de Assis) e Clara”, justamente buscando um novo modelo econômico, alternativo ao capitalismo. Ou seja: não se trata de como vamos humanizar o capitalismo, mas de como vamos superar o capitalismo. Só que ele dirige a instituição mais antiga do ocidente, mais de dois mil anos, com peso da tradição muito forte. Ele gostaria de renovar a igreja, mas sendo uma pessoa democrata, faz esses esforços de convocar periodicamente reuniões de sínodos para debater, mas não consegue avançar. Não conseguiu acabar com o celibato, não conseguiu aprovar casamento homoafetivo, não conseguiu aprovar indígenas casados ordenados sacerdotes. Ele tenta. No encontro de sínodos em que debateu a questão da Amazônia, provocou ojeriza no primeiro mundo porque os indígenas estavam passeando nos jardins do Vaticano, fazendo seus rituais religiosos, e isso foi considerado, pelos cardeais conservadores, uma blasfêmia, como se dentro de uma catedral se tivesse feito um despacho de macumba. Mas ele vai indo, colocando posição, e não creio que vá renunciar. Creio que ele pode até avançar mais quando Ratzinger morrer, se ele sobreviver ao Ratzinger. Talvez não tome algumas medidas em respeito, para não desfazer coisas que o papa anterior fez.

Deus não tem religião. As religiões são criações humanas. São como Vivo, Claro, Oi, Tim – diferentes canais para falar, o que importa é se conectar com a divindade, com o transcendente.

Mauricio: Quando o senhor fala em despacho, macumba, qual é a relação da parte progressista da Igreja Católica com as religiões de matriz africana?

FB: É a melhor possível, com todas as tradições religiosas: indígenas, africanas, islâmicas. Conheço teólogos que são pais de santo. Nosso entendimento é que Deus não tem religião. As religiões são criações humanas e, essa ou aquela religião, são como a Vivo, Claro, Oi, Tim – são diferentes canais para falar, o que importa é se conectar com a divindade, com o transcendente. E você vai, culturalmente, se integrando a um determinado segmento religioso, mas um não vale mais que outro. Isso é uma grande bobagem. Até porque não existe nenhuma tradição religiosa quimicamente pura, são todas sincréticas, muito mescladas.

Samária: Você falou numa imagem interessante: o papa Francisco como uma cabeça moderna num corpo conservador. Como a gente consegue explicar que um corpo conservador tenha elegido uma cabeça progressista?

FB: Por equívoco. Porque a lógica não foi se ele é progressista ou conservador. A lógica foi: é a vez da América Latina. Ou seja: primeiro houve o deslocamento da Itália, que durante séculos era a única fornecedora de papas. Então vieram João Paulo II, da Polônia, e Ratzinger, da Alemanha. Há uma preocupação dos cardeais em relação aos Estados Unidos, porque é a igreja católica mais rica e há o temor que, nomeando um cardeal dos Estados Unidos, vai-se dar um duplo poder àquele país – financeiro e religioso. Então resolveram beneficiar a América Latina, que é o continente com maior número de católicos no mundo. E escolheram um homem aberto, que transitava em vários segmentos – não entre os conservadores. O candidato dos conservadores era o cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, mas ele não teve voto nenhum. Bergoglio foi então o escolhido e se revelou alguém bastante progressista.  

 O candidato dos conservadores era o cardeal de São Paulo, Dom Odilo Scherer, mas ele não teve voto nenhum. Bergoglio foi então o escolhido e se revelou bastante progressista.

André: Dom Odilo foi um dos sacerdotes católicos atacados nas redes sociais por bolsonaristas porque, na foto de perfil, está com veste vermelha, então ele teve que justificar que aquela é a cor da roupa dos cardeais…

FB: É bom que ele tenha que se explicar mesmo (risos).

Wellington: Você tem se dedicado mais à literatura, trabalhando gêneros diferentes como romance, infanto-juvenil. O que o levou a se dedicar mais à literatura ultimamente?

FB: São 74 livros porque não é ultimamente, é a vida toda. Desde que me entendo por gente sou compulsivo para escrever, se passo um dia sem escrever, tenho a mesma sensação de desconforto de passar o dia sem tomar banho, me sinto mal. Estou sempre trabalhando em vários projetos literários, sem pressa e sem data, sem pressão, não aceito adiantamento de editora, mas tenho vários projetos ao mesmo tempo. Às vezes me canso de um, vou pra outro, descanso de um, trabalhando em outro. 

Wellington: De todos os seus livros publicados, tem algum prefererido?

FB: É muito difícil, são abordagens diferentes. Tô muito encantado com o Tom vermelho do verde, o romance é todo entremeado de expressões indígenas. Também tô encantado por Jesus Militante, porque consegui um sonho que tinha há muito tempo: defender, de uma maneira consistente, a tese de que Jesus não veio fundar nem igreja nem religião, mas um projeto político, que ele chamava de Reino de Deus, e por isso foi cruelmente assassinado, porque, no reino de César, ousou falar de outro reino possível. Agora, há livros meus que não perecem: O Batismo de Sangue, Fidel e a Religião. E há livros que não tiveram a repercussão que eu esperava, mas tenho apreço especial por eles, como Minas de Ouro, em que reproduzo 500 anos da história de Minas. Levei doze anos fazendo esse romance e, em cada período da história, que vai do século 16 ao 20, escrevo de acordo com a escrita da época.  

Samária: Pelo que entendi, você escreve e se banha todo dia (risos). Quero saber se você reza todo dia.

FB: Rezo. Gosto muito de rezar e a minha forma preferida de oração é a meditação. Medito todo dia, pelo menos meia hora. Aprendi a meditar quando entrei pros dominicanos e foi o que me salvou na prisão. A meditação não é uma oração feita de palavras, fórmulas, é uma oração feita de sintonia com o transcendente. Então, quanto menos imagens e palavras, melhor. Todo dia faço duas coisas: meditação e ginástica. E indico a todos.

André: E se Jesus voltasse hoje, como seria recebido?

FB: Do mesmo jeito que foi recebido na Palestina do século I: com paulada, crítica, e seria de novo crucificado, escorraçado, assassinado.  

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