Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Luana Sena, Maurício Pokemon, Paulo Fernando de Carvalho Lopes (professor de Jornalismo da Ufpi), Samária Andrade e Wellington Soares. Texto e edição: Samária Andrade. Fotos: Maurício Pokemon.
Um dos cartazes na entrada da casa comunica: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate”. Para bom entendedor: “Perdei toda a esperança, vós que entrastes”. O verso faz parte de “Inferno”, primeira das três partes de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. “Essa frase eu também vi num presídio na Colômbia. Dizem que de lá poucos saiam com vida”, conta Guidon, 79 anos. Ainda assim entramos felizes ao sermos informados de que a pesquisadora nos receberia em sua casa, aberta a poucos. Outro cartaz ainda diz: “Não entre sem ser convidado” e um terceiro pede que o visitante observe a bandeira vermelha, que indica a proibição da visita.
A casa-sítio onde mora Niéde Guidon fica no Centro Cultural Sérgio Motta, local improvável na caatinga piauiense, com impressionantes laboratórios de paleontologia, arqueologia, zoologia e botânica. Por lá trabalham e circulam pesquisadores de vários sotaques e diversos estados do Brasil. Tudo parece filme de ficção e contrasta com a paisagem seca do local. O bem montado Museu do Homem Americano é o único setor livre para visitação pública.
No terraço da casa de Niéde, pequenos sofás e uma mini chaise-longue, coberta com estampa animal print. Bichos de pelúcia estão por toda parte. Não há crianças. Tudo pertence aos quatro cachorros e outros tantos gatos de Niéde. Bolinha, a poodle branca, é agora merecedora das preocupações da pesquisadora. Por conta de um ferimento e mudança na cor do pêlo, foi mandada de táxi ao Recife, Pernambuco, para consulta.
Nascida em Jaú, São Paulo, de pai francês e mãe brasileira, Niéde tem formação em História Natural pela USP (Universidade de São Paulo) e especialização em Arqueologia Pré-histórica pela Universidade de Sorbonne, em Paris. É Doutora e Pós-Doutora em Pré-história, também pela Universidade de Paris. Pesquisadora do Centro Francês da Pesquisa Científica, dedicou todo o seu trabalho à arqueologia brasileira. Desde os anos 90 se estabeleceu em São Raimundo Nonato, a 530 quilômetros de Teresina.
Centralizadora e mandona. Corajosa e persistente. As opiniões se dividem quando a tentativa é descrever a mulher que considera a Serra da Capivara “um pedaço do paraíso”. Ela conserva, além do sotaque arrastado em algumas palavras, um certo humor francês, seco e sutil. Racional, como se convencionou pensar que cabe a uma cientista. Emocional, como não poderia deixar de ser, ou não encontraria razão para brigar há tanto tempo contra situações crônicas: dificuldades financeiras, burocracia estatal, falta de vontade política, invasões de caçadores e conflitos com aqueles que já viviam nas terras da Serra da Capivara muito antes da cientista chegar cheia de novidades. Por alguns desses motivos já teve a vida ameaçada. Mas resiste. Embora desabafe: “Eu perdi o meu tempo vindo ao Brasil”.
As posturas de confronto ajudam a manter a fama de durona. Mas ela afirma: “Quem manda aqui em casa é Isabela”. Refere-se à cozinheira, para quem mandou colocar outra de suas placas: “Cozinha de Isabela”.
Solícita para as fotos, só interrompe a tarefa quando percebe que a gata Nina, caçula da casa, promove uma animada caça a uma lagarta. Niéde disputa com Nina e, por fim, consegue salvar a lagarta. Essa é Niéde Guidon. Aquela que havia falado em perder a esperança.
Paulo Fernando – Você tem um duplo olhar sobre a realidade de São Raimundo Nonato: um para a riqueza do material de pesquisa e outro para a relação sócio-política-econômica-cultural das pessoas que habitam a região. É possível conciliar esses interesses?
Niéde Guidon – Quando assumimos cuidar do Parque da Serra da Capivara, fizemos um estudo completo. O então presidente do Banco Interamericano, Henrique Iglezias, considerou o modelo que estávamos implantando como ideal por unir proteção à natureza e à cultura com benefício para a população e desenvolvimento econômico e social para a região. Porque realmente era uma região muito pobre. Iglezias botou o banco à disposição, mandou técnicos para cá. Eles pesquisaram e concluíram que a agricultura não seria uma solução. O solo é salgado, raso, cheio de pedras. Mas apontaram o potencial turístico. Nós contratamos uma firma suíça que fez o projeto para implantação do turismo. Naquela ocasião, em 1995, eles estimaram que teríamos cinco milhões de turistas/ano. Hoje os sítios patrimoniais da humanidade, no mundo todo, recebem essa média de turistas. O único que não recebe é a Serra da Capivara, que tem apenas 20 mil turistas por ano.
Samária – E por que isso acontece?
NG – Porque não tem acesso, não tem aeroporto, não tem hotel. Tem um parque patrimônio da humanidade na África do Sul, você vai lá e visita quatro sítios, mas tem toda a estrutura. Na Austrália há um parque que não chega a 10 sítios e tem um lucro líquido anual de 10 milhões de dólares. Aqui nós temos 162 sítios preparados para visitação. Depois de insistirmos com o Governo Federal, finalmente, em 1996, foi criado o Aeroporto Internacional Serra da Capivara. Em 97 foi liberada verba de 15 milhões, só que não chegou nada aqui. Acho que derreteu em Teresina. O Governador era Mão Santa e ele declarou que aeroporto é coisa para rico, que pobre precisa é de estrada. Botou umas máquinas na estrada, ganhou as eleições e acabou. Nem aeroporto, nem estrada. Aqui toda a infra-estrutura do Parque foi feita com dinheiro do Banco Interamericano. A França até hoje é parte fundamental nas pesquisas.
André – Você tem um planejamento de auto-sustentabilidade para o Parque, através da Fumdham em parceria com empresas privadas que pretendam construir hotéis na região. Como está esse projeto?
NG – Todos os contatos que fizemos dizem que estão esperando o Aeroporto. Já foram liberadas outras verbas e feita alguma coisa, mas tudo muito devagar. Em outubro (2012) recomeçaram as obras. O Governador (Wilson Martins) diz que vai inaugurar em junho. Nós somos um dos destinos da Copa do Mundo e, inaugurando em junho, quando é que vão começar os hotéis? Não vai dar tempo! Como o hotel é particular, podem até construir rapidamente. O que é público é que é uma catástrofe. Já imaginou quando tiver cinco milhões de turistas por ano, todos de classe A e AA? Quando fiz o relatório para Brasília, sabe o que eles disseram? Que eu não gosto de pobre, porque que eu quero fazer turismo para a classe rica. Ora, não precisa trazer mais pobre para o Brasil. Já tem muito. E para que? Para fazer o turismo que fazem nas praias? Gente comendo, bebendo, fazendo barulho, jogando lixo, música alta. Se é esse o turismo, então não é isso o que eu tava querendo implantar aqui.
Quando os militares subiram ao poder quebraram a escola pública. E por quê? Porque tinha se formado uma juventude que lutava. Hoje ninguém se manifesta.
Paulo Fernando – Suas descobertas provocam tensionalidades, resultando naqueles que a amam e admiram e nos que desdenham e não gostam. Por que?
NG– Nossas descobertas mudam tudo o que se pensava sobre pré-história americana. Até então se dizia que a América tinha sido povoada há 15 mil anos e que havia começado pela América do Norte. Nós defendemos que isso ocorreu muito antes, e que começou pela América do Sul, com o homem vindo da África. Quando nossas pesquisas mostraram isso, alguns cientistas americanos não aceitaram. Mas as novas descobertas, que comprovam nossa teoria, são cada vez mais freqüentes, aqui e em outras partes do mundo.
André – E quanto à receptividade das pessoas da região ao trabalho desenvolvido? Elas tinham hábitos bem definidos que, de certa forma, com a chegada e o interesse de pessoas de fora, sofrem alterações, modificam práticas.
NG – O pessoal daqui foi excelente. Não tinha hotel, a gente se hospedava nas casas. Imediatamente abriam as portas. “Ah, eu sei onde tem essas pinturas!”. Eu fiz grandes amigos. O que acontece é que, quando o Parque foi criado, algumas pessoas tiveram que sair de onde moravam. Porque quem morava dentro do Parque não era proprietário, era invasor, posseiro. As terras eram públicas. Aí Brasília não podia indenizar já que ninguém era proprietário. Então eu propus que indenizassem as pessoas pelas benfeitorias que elas tinham feito. E fizemos um levantamento de maneira que o valor ficasse proporcional à terra que eles tinham. Alguns foram indenizados, outros não aceitaram e criaram problemas. Depois contrataram um advogado que terminou ficando com o dinheiro da indenização e nunca pagou a essas pessoas. É muito difícil resolver as coisas aqui porque o problema do Brasil é a aplicação das leis. Existem leis que não são aplicadas e existem pessoas que se julgam acima da lei. E o pior: sempre tem os políticos que querem tirar vantagem, que encontram um jeito para captar os ignorantes. Dizem: “a doutora tocou vocês pra fora da terra, vocês devem ser contra ela”. A gente tem muitos problemas com políticos.
André – E por que acontecem esses problemas com políticos?
NG – E não é isso é o que eles fazem sempre? Confusão, tornar a situação pior? Eu dou um exemplo: a educação. Eu fiz escola pública no Brasil, em Grupo Escolar. Quando eu fui para a França e fiz o concurso, escrito em francês, eu passei em primeiro lugar, com a minha formação brasileira, com o francês que eu aprendi aqui, na escola pública. No meu tempo você estudava francês, espanhol, inglês, tudo em escola pública.
Samária – Nossa escola está decaindo?
NG – Eu estudei filosofia na escola pública! Com 16 anos lia Voltaire, todos os filósofos do Século das Luzes. Agora, conversando com pessoas que são formadas, eu falei em Século das Luzes e disseram: “Foi quando inventaram a eletricidade?”. A pessoa se forma e nunca leu Voltaire! (bate na mesa com irritação). Quando os militares subiram ao poder quebraram a escola pública. E por quê? Porque tinha se formado uma juventude que lutava. No meu tempo a capital era no Rio de Janeiro e cada coisa que faziam de errado, a gente ia lá e jogava pedra no Palácio. Hoje ninguém se manifesta. Criaram Brasília longe de tudo. Como alguém vai se manifestar lá? Brasília nem tem povo. Quem ta lá é funcionário público, tem benefício do Governo.
Samária – Você considera a educação que temos hoje uma conseqüência desse modelo do período militar?
NG – Os militares destruíram a escola pública e depois deles nenhum civil, nem meu caro colega Fernando Henrique Cardoso, teve coragem de reconstruir. Hoje a escola pública é uma catástrofe. Eu vejo jovens que são formados e são completamente ignorantes. Vejo funcionários meus que fazem um esforço terrível para pagar escola particular para os filhos, porque se for para a escola pública sai analfabeto. Isso é normal, com os impostos que a gente paga? No Século das Luzes, o que se dizia na França? Que a única maneira de se criar igualdade em um país é dando educação de alto nível para todos. Hoje o Brasil criou quantas Universidades? Só o Piauí tem para tudo que é lado. Eu tive uma funcionária licenciada em Física. Quando eu descobri, fiquei até com vergonha de colocar uma licenciada em Física para fazer um trabalho aquém de sua habilitação. E eu chamei: “Você quer trabalhar com a questão de datações, análises, então você até publica, para que a população possa entender como funciona”. E ela: “Ah, mas eu nunca estudei isso”. Ela não sabe ler uma fórmula! E ela é licenciada em Física (bate novamente na mesa. Depois de um instante de silêncio, continua). A Educação acaba com as ditaduras e as ditaduras querem acabar com a educação. Você tem a ditadura militar e ditaduras populistas, mas são ditaduras. O homem é o único animal que vive sob o domínio das religiões e das ditaduras civis.
O homem primitivo sabia que dependia da natureza. O homem moderno acha que pode fazer o que quiser do mundo. As terras onde o homem está há mais tempo são as mais desertificadas.
André – Você não é otimista?
NG – Não, porque isso que acontece no Brasil, tá acontecendo no mundo todo, na Europa, nos Estados Unidos. Os Governos do mundo entenderam que uma boa educação impede que eles façam o que querem. Então estão deixando a educação para trás. Um povo educado não interessa a ninguém. Ainda bem que eu sou velha, porque eu posso falar (risos). As cidades estão crescendo e virando um problema. Essa ideia de viver com populações cada vez maiores é do homem moderno. O homem primitivo sabia que dependia da natureza. O homem moderno acha que pode fazer o que quiser do mundo. Vocês podem pegar o Google e olhar: aquelas terras onde o homem está há mais tempo são as mais desertificadas. Cidades como São Paulo… Para que aquilo? Como se pode ver beleza em São Paulo? Compare com as cidades antigas: Paris, Londres.
André – Há estudos que defendem que o homem não está preparado para viver em locais com mais de um milhão de habitantes. A partir disso começa a exaurir os recursos, matar a própria civilização.
NG – E a terra, além de produzir comida para essa população que aumenta sem parar, vai produzir plantas para o biodiesel. A terra está realmente morta. Eu sou muito feliz em não ter filhos, porque se eu tivesse tava muito preocupada, porque a situação vai ficar cada vez pior. O homem perdeu toda a sua capacidade de viver naturalmente. Fizeram de nós animais que dependem de coisas e que pagamos para tê-las. O homem criou uma vida na qual temos que trabalhar, trabalhar, trabalhar; para pagar, pagar, pagar coisas. Cada vez vamos ter que trabalhar mais. Vivemos em função do consumo. O Deus do homem é o consumo. E chamam isso de desenvolvimento econômico.
Samária – Morar em São Raimundo Nonato, para você, é uma forma de se refugiar um pouco disso?
NG – Sim, eu sinto falta de certas coisas, mas fico muito feliz de estar longe de outras. É claro que é diferente morar aqui e morar em Paris. Eu gosto de ópera, música, teatro. Aqui não tem nada disso. Aliás, nem Brasília tem. Acho que Brasília é a única capital de país onde você não tem uma vida cultural. Brasília não tem nada. É realmente a capital do Brasil atual. Quando caiu um pedaço do teto do ministério disseram: “Ah, mas já tem 60 anos!”; e eu disse: “Ainda bem que não foram os brasileiros que fizeram as pirâmides do Egito, os templos da Grécia”.
O homem criou uma vida na qual temos que trabalhar, trabalhar, trabalhar; para pagar, pagar, pagar coisas. Vivemos em função do consumo. E chamam isso de desenvolvimento econômico.
Samária – O que você pensa sobre religião?
NG – Se eu estudo como o homem foi evoluindo, não posso acreditar nessa história de que Deus criou o homem assim: “Tiuc!” (faz gesto de mágica). Você estuda uma coisa na escola e te ensinam outra na Igreja. É absurdo. E afinal quem está mentindo: o professor ou os religiosos? E é assim até hoje: quanto mais besteiras dizem, mais acreditam. O homem gosta de se fazer enganar. Acho que é porque a maioria das pessoas vive hoje de uma maneira muito infeliz. O homem perdeu o prazer de viver. Ele não acredita que possa ser feliz sem dinheiro. Nem para ouvir o canto dos passarinhos (com gesto pede uma pausa e ouvimos os pássaros cantando). E eles cantam muito bonito, né? O homem devia aprender mais com a natureza. E os índios brasileiros? Eles não têm direito a nada. O Brasil não deu direito algum aos índios e deu muitos direitos aos afro-brasileiros.
Samária – Qual a sua opinião sobre as cotas raciais para ingresso no ensino superior?
NG – Acho que isso é racismo. O Joaquim Barbosa, presidente do Superior Tribunal Federal, é negro, filho de família pobre e chegou onde está sem usar nenhuma cota, bolsa, nada. Ele foi para a França, fez curso na Sorbonne, era professor convidado nos Estados Unidos. A educação pública brasileira antiga permitia isso.
Luana – Algumas mulheres que se destacaram tiveram que adotar posturas mais rígidas ou inflexíveis. Margareth Tatcher, por exemplo, recebeu o codinome de “Dama de Ferro”. Precisa ter essas características para obter êxito em um trabalho como o que você faz?
NG – Acho que sou até boazinha demais. Eu quero ficar é cada vez mais malvada (risos). Acho que não pode ter medo. Quando uma pessoa faz algo errado, você tem que dizer para ela. Se ela continua no erro, aí tem que ir para cima mesmo. Por exemplo: esses guias. Há anos que trabalhamos com guias. Agora eles têm três associações, me chamam de mandona e cada uma das associações quer mandar. Então nós vamos transformar esse parque na bagunça que é o Brasil? Nós fizemos esse parque em nível internacional! Eu não trabalhei do jeito que trabalhei para entregar o parque na mão de alguns. Então eu vou para cima mesmo. Se é para brigar, eu brigo mesmo.
Paulo Fernando – Seu projeto é muito reconhecido fora do país e comentado fora do estado. A que você credita um certo silenciamento e invisibilidade dentro do Piauí?
NG – Eu recebi reconhecimento na França há muito tempo. No Brasil, já recebi algumas homenagens. Mas acho que aqui no Piauí, infelizmente, temos uma estrutura na qual você tem famílias de políticos que mandam em tudo. Acho que é um sistema ainda colonial. Como eu tenho uma maneira de pensar diferente desse nepotismo que eu vejo aqui, acho que isso faz com que algumas pessoas sejam contrárias a mim (silêncio). Não sei.
Luana – Você tem medo de que seu trabalho seja destruído?
NG – Eu perdi meu tempo vindo ao Brasil. O Brasil não tem jeito. Não adianta querer fazer uma coisa bem feita. Aqui só da certo a safadeza. Infelizmente é isso. O homem é um animal que quer ganhar a qualquer preço. As pessoas não tem mais dignidade. Talvez seja por isso que as pessoas não gostam de mim. Porque eu não aceito safadeza. Na pesquisa deu tudo certo, não foi tempo perdido. Mas o Parque, a tentativa de desenvolver a região… Ah, eu devia ter dito: “Brasil, faça você o projeto”. Porque nós fizemos um projeto de primeiro mundo e para quê? Eu vivo pedindo dinheiro.
O que eu quero é olhar os outros nos olhos. É não ter que esconder nada. Tudo o que fiz aqui, procurei fazer o melhor possível.
Samária – Qual a maior vaidade de Niéde Guidon?
NG – Vaidade?! (Silêncio). Nem sei. Acho que o meu prazer é um trabalho bem feito. Isso eu gosto. Fazer uma coisa que tenho certeza que fiz o máximo que podia. O que eu quero é olhar os outros nos olhos. É não ter que esconder nada. Tudo o que fiz aqui, procurei fazer o melhor possível.
Samária – Uma pesquisadora do Instituto Butantã, trabalhando aqui na Serra da Capivara, descobriu um novo tipo de aranha e batizou a espécie com o seu nome…
NG – Sim, uma aranha cuja picada é mortal. Aí ela disse: “escolhi o teu nome de propósito” (risos). Ela botou meu nome na aranha que “picou, morreu”.
Samária – E o que você achou dessa homenagem?
NG – Ótima (risos). Mortal!
Samária – Para finalizar, tem um local no Parque que seja o seu preferido?
NG – Não. Você vê: eu nunca casei porque nunca consegui um preferido. O próximo é sempre melhor. Com o parque é a mesma coisa. Eu sou uma mulher volúvel! (risos).
LINHA DO TEMPO
1963 – Especialista em Arqueologia Pré-histórica por Paris e trabalhando no Museu do Ipiranga, em São Paulo, Niéde Guidon monta uma exposição sobre pinturas rupestres de Minas Gerais, as únicas conhecidas no Brasil até então. Um piauiense que visitava a exposição conta que no Piauí havia desenhos semelhantes àqueles. Niéde, com 30 anos, veio conhecer os tais desenhos, o que não aconteceu, pois havia chovido muito e as estradas do interior do Nordeste estavam intrafegáveis.
1964 – No início do período de ditadura militar no Brasil, Niéde é denunciada como membro do Partido Comunista. “Eu nunca fui do Partido Comunista, porque eu nem acredito na política”, afirma. Temendo a situação do país, a descendente de franceses retorna à França e solicita a nacionalidade do país. É aprovada em concurso para professora na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Começa a carreira em Paris, mas “com a cabeça na notícia das pinturas que existiam no Piauí”.
1970 – Niéde integra uma missão francesa que pesquisa os índios de Goiás. Com o trabalho concluído, vem ao Piauí e, chegando a São Raimundo Nonato, vai perguntando informações sobre os desenhos que procurava. “Era uma região afastada do mundo”, lembra. “São Raimundo Nonato era um povoado miserável. Não tinha banco, correio, nada”. Niéde fotografa tudo o que vê e volta para a França.
1973 – Niéde convence as instituições de pesquisa francesas sobre a importância do que havia no Piauí e monta a primeira missão científica que tem como destino a Serra da Capivara. Depois aconteceriam outras.
1978 – De licença prêmio, Niéde fica seis meses ininterruptos no sul do Piauí. Os resultados são tão impactantes que a França cria uma missão permanente, como as que já mantinha no Egito, Peru, México e Grécia. No mesmo ano o Governo Brasileiro recebe um relatório chamando a atenção para a necessidade de preservação da região.
1979 – O Governo Brasileiro cria o Parque Nacional da Serra da Capivara, um dos mais importantes exemplares do patrimônio pré-histórico no mundo, com cem mil hectares de área. “Foi aí que eu fiquei sabendo que no Brasil havia uma coisa chamada Parque no papel”, conta Niéde. “Você cria o parque, mas não nomeia ninguém. Isso foi até prejudicial porque, com o conhecimento de que a área era federal, e não particular, muitos se julgaram no direito de caçar, pegar madeira, então começou uma ação destrutiva na área”.
1986 – Pesquisadores de uma cooperação científica França-Brasil criam a FUMDHAM – Fundação Museu do Homem Americano. Em parceria com o Governo Brasileiro, a FUMDHAM, presidida por Niéde Guidon, é responsável pelo manejo do Parque da Serra da Capivara.
1991– O Parque Nacional da Serra da Capivara é declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
1992 – O Governo Brasileiro solicita a França que Niéde Guidon fosse emprestada ao Brasil para coordenar os trabalhos no Parque Nacional da Serra da Capivara. A pesquisadora deixa Paris e passa a morar em São Raimundo Nonato.
Na cidade, a 530 quilômetros da capital do Piauí, Teresina, está instalado o mais moderno centro de pesquisa arqueológica da América do Sul e o Museu do Homem Americano.
O local também abriga o primeiro curso público brasileiro de graduação em Arqueologia, montado em parceria com a Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. A Universidade tem sede em Petrolina, Pernambuco.
A Fumdham promove a formação de técnicos em conservação de pinturas rupestres e guias para o parque. Com estes últimos a convivência nem sempre é harmoniosa. A pesquisadora se preocupa com o nível de formação dos guias e com a preservação do local. Alguns a acusam de centralizar o trabalho e impedir o acesso ao parque de pessoas que já viviam na região.
A SERRA DA CAPIVARA
Área de maior concentração de sítios pré-históricos do continente americano, o Parque da Serra da Capivara possui a maior quantidade de pinturas primitivas sobre rocha no mundo.
São 737 sítios arqueológicos catalogados onde foram encontrados esqueletos humanos e pinturas rupestres com aproximadamente 30.000 desenhos que representam cenas de sexo, dança, parto e outras.
162 sítios encontram-se preparados para a visitação pública. Nos demais, as equipes da Fumdham continuam trabalhando e constantemente encontrando vestígios da presença humana.
A DEFESA DE GUIDON
A teoria mais comumente aceita para o povoamento das Américas, formulada ainda nos anos de 1950, afirma que os primeiros humanos chegaram no continente americano há 15 mil anos, ocupando a América do Norte. De lá desceram para América Central e finalmente para a América do Sul, há 11 mil anos. As descobertas de Niéde Guidon e sua equipe levam a crer que isso ocorreu muito antes. Em 1978, escavações na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, chegaram a amostras de carvão e artefatos de pedra lascada que indicam a ocupação humana há 45 mil anos. Estudos posteriores, com técnicas mais avançadas, falam em 58 mil anos. Essas informações mudam a trajetória da pré-história americana. A tese defendida por Niéde causou grande repercussão no meio científico. O que é tido pela antropóloga como “artefatos” é apontado por outros como “geofatos” – ou seja, os primeiros são produto do trabalho humano, enquanto os últimos são resultado de forças naturais.
Antropólogos dos Estados Unidos se dividem: alguns aceitam as evidências arqueológicas apontadas por Niéde, outros consideram que elas não são sólidas o suficiente para derrubar as antigas hipóteses. Enquanto isso, novas descobertas continuam sendo encontradas na Serra da Capivara e em outros sítios, fortalecendo a teoria de Guidon.
(Publicada na Revestrés#06, jan-fev de 2013)