Quando cheguei em casa naquele dia, a “velha” estava apavorada. Uma intimação da Polícia Federal me dava um prazo de 48 horas para comparecer à sua agência, ali na Avenida Maranhão, a fim de prestar alguns esclarecimentos.
– Você andou fazendo algo errado, meu filho? – indagou mamãe.
Um dos meus irmãos levantou a hipótese de envolvimento com droga, uma vez que no meio artístico, segundo ele, todo mundo puxava uns “baseados”.
– Ele ultimamente anda se comportando de um jeito muito estranho.
Outro apontou, por sua vez, que o motivo estivesse relacionado à militância política, essa mania absurda minha de querer endireitar o Brasil, como se tal sonho ainda fosse possível.
– Aposto como são as greves e as passeatas nas quais ele vive metido.
Diante do meu silêncio, dona Raimunda ficava cada vez mais aflita. Não bastasse a trabalheira de cuidar de tantos filhos, nove ao todo, agora tinha que se preocupar também com problemas na polícia.
– A culpa é da senhora, mamãe, que deixou esse menino fazer o que bem entendesse – responsabilizou a irmã mais velha.
Apresentando-me no dia seguinte, constatei que não era nenhuma coisa nem outra. O motivo era até irrelevante e banal, pelo menos para mim: um prospecto do show “Correnteza desse rio”, reunindo os grupos Varanda e Candeia, em noite memorável no Theatro 4 de Setembro.
– Você é um dos autores desse documento? – inquiriu o agente.
– Sim.
– Tem consciência de que ele contém expressões perigosas, para não dizer subversivas?
– Em absoluto. É tão somente um texto de apresentação do show – justifiquei com firmeza.
– Mas aqui – disse apontando para um trecho –, vocês falam de um movimento transformador e revolucionário.
Nesse momento, a ficha caiu de vez: os “home” não haviam gostado nem um pouco daquilo. Esquecemos que o Brasil vivia sob um regime autoritário, no qual certas palavras foram proibidas. Diante do sufoco, a melhor saída era improvisar, técnica aprendida nas oficinas de dramatização.
– No campo da arte, que fique bem claro, enquanto movimento cultural.
– E qual o motivo de usarem o termo revolução? Queriam dizer o quê?
– Deixar de receber tudo de fora, valorizando os músicos da terra.
– Ah! Não havia aí, portanto, nenhuma conotação política?
– Pelo contrário, não costumamos misturar as coisas. Cada macaco em seu galho: cultura aqui, política lá.
Quando pensei estar livre, já tendo esclarecido tudo, não é que ele me aparece com outra indagação, desta vez mostrando a faceta moralista da ditadura militar.
– Por que encerram o folheto deixando um beijo na bunda do público?
– Mera cordialidade artística.
– Não seria mais recomendável desejar um bom show a todos?
– Talvez, porém sem a marca e a irreverência do teatro.
– Teatro?
– Sim, o show tem por objetivo arrecadar dinheiro para a IV Mostra de Teatro do Piauí, a ser realizada na cidade de Amarante.
– Mais uma coisa: vocês costumam se beijar na bunda?
Finalizou o interrogatório abrindo um sorriso irônico no rosto. Naquele instante percebi que, além de ignorantes, os representantes da repressão eram patéticos. Às vezes me pergunto como o Brasil suportou a tirania por 21 longos e tenebrosos anos. Tomara que a democracia nos envolva eternamente em seus braços.
Wellington Soares
Coisas e outras