(1)

Como toda criança de minha rua, lá pelas bandas do Lindolfo Monteiro, centro de Teresina, não pensava em outra coisa que não fosse brincar. A vida para nós, molecotes da Clodoaldo Freitas e redondezas, se resumia a isso: brincar sem parar, língua de fora, pernas exigindo um pouco de descanso até a manhã seguinte, quando as traquinagens voltavam outra vez. Entre elas, o prazer de matar carambolo nos muros alheios, o coitado perdendo a vida sem culpa de nada, exceto ter cruzado nosso espírito de porco. Pior era a caçada feita ao beija-flor, prêmio cobiçado por todos, que, além de ser morto, tinha o coração quentinho extraído na hora, a fim de tornar a pontaria infalível. Mal sabíamos, na época, que esse gesto tão inocente, tido como peraltice de menino, tiraria o sossego da gente na fase adulta.

(2)                                                                     

A vida no quintal da casa, trancado num quarto, apartado do convívio social, não era nada fácil de suportar, imagine com os sobrinhos, todos com o diabo no corpo, atazanando o restante de sua paciência, deixava doutor Teles, título conquistado por ter dinheiro, completamente enlouquecido, vociferando coisas incompreensíveis, ainda mais ao saber que iríamos tomar, quer ele quisesse ou não, seu rebanho de gado, pelo qual tinha um apego extremado, cada rês com nome e tratada com carinho, verdadeiros filhos que não tivera com a mulher, agora ameaçado de perder, ora pra quem, uns pestes de meninos que vira crescer e acolhia na fazenda, nem aí com seu estado de saúde, rindo da loucura que familiares e vizinhos o imputavam, ignorantes em perceber a insanidade da sociedade em parir desajustados cotidianamente.

(3)

Num vacilo do porteiro, por mínimo que fosse, estávamos dentro do cinema sem pagar entrada, pois malucos não éramos de perder nossos filmes favoritos, sobretudo, os protagonizados por Tarzan e Zorro, heróis que tiravam o sono da gente quando em cartaz no cine Rex ou no Theatro 4 de Setembro, um colado juntinho do outro, ali na P2, centro da Chapada do Corisco, vistos infinitas vezes, incansavelmente, primeiro com ingresso comprado, depois sabe Deus como, desde a distração do pobre do porteiro até um de nós, ou conhecido da gente, abrir a janela pra entrarmos, o coração disparado de medo, mas feliz em presenciar, caso não fosse pego e posto na rua, tomando uns cocorotes na cabeça, as façanhas incríveis do “Rei da Selva” e do “Fidalgo Mascarado” derrotando, sob uma gritaria infernal, os cruéis vilões da história, ainda inocentes em notar que a vida é mais complexa que esse jogo maniqueísta entre o bem e o mal.

(4)

O bom mesmo para nós da festa junina, em pleno mês de junho, não era dançar a quadrilha – “olha a cobra”, “a ponte quebrou”, “caminho da roça”, “Balancê” -, tampouco saborear as comidas típicas da época – paçoca, milho verde, bolo de fubá, batata doce assada, canjica -, mas dar um tremendo susto nas pessoas, com os tais fogos de artifício, quando elas menos esperavam, distraídas na alegria da música e da dança, um traque soltado em seus pés e, de repente, o grito acompanhado de pulo, enquanto ríamos à beça, felizes da vida, achando que nosso gesto fazia parte também daquela grande fogueira, incluindo bombas atiradas na quadra, com todo mundo correndo em disparada, alguns até desmaiando de medo, a festa só recomeçando após levar os bagunceiros à sala do diretor, onde recebíamos um bom sermão, contanto que o “Viva São Pedro” e o “Viva São João” continuasse, na escola, para a felicidade geral de todos.