para Peinha do Cavaco

 

 

Estava na parada de ônibus, comecinho da Frei Serafim, lá em 1982, não me falha a cabeça, quando Peinha do Cavaco apareceu, sofrido de dar pena, as mãos inchadas de tanto apanhar no Dops, logo ele, sambista piauiense dos bons, por ter feito uma paródia, cantada no Nós & Elis, que os “home” da ditadura militar, de triste memória, não gostaram nem um pouco, levando-o dali, barzinho em frente à Adufpi, direto pras dependência daquele órgão repressor, rua Coelho Rodrigues, centro de Teresina, onde deram nele com palmatória, de madeira grossa, não um, cinco ou nove bolos, mas algumas dezenas, a ponto de nosso artista, homem sensível, incapaz de fazer mal a ninguém, gemer de dor, uma dor pungente, sob a indiferença dos que o batiam, que davam gargalhadas e zombavam de sua cara, felizes e sádicos como nunca, afinal quem mandou o mestre do cavaquinho, fã de Alberto Silva, político endeusado no Piauí, tirar sarro de Hugo Napoleão, candidato da Arena, partido de sustentação dos milicos?, daí mais que merecida a pisa, segundo os tais meganhas, pra ele, nosso talentoso músico, aprender a não mexer com gente grande, das elites locais, sob pena da próxima vez, gritaram no seu rosto, ele vestir o paletó de madeira, não com alguns bolos de palmatória, mesmo com buracos no meio, que provoca sofrimento infinitamente maior, talvez capaz até de tirar o juízo da vítima, mas pendurado no pau de arara, de cabeça pra baixo, tomando choque por todo corpo, inclusive no cu orelha nariz pênis boca ouvidos, talvez assim, quem sabe, aprendesse o devido lugar, e não ficasse por aí, com brincadeirinha de mau gosto, metendo-se em disputa política e, mais grave ainda, difamando o representante da Redentora com um refrão, veja só, inspirado em cantiga de Gonzaguinha – O que é, o que é? – nadinha respeitoso: “Hugo é bicha, Hugo é bicha, Hugo é bicha”, razão de ter entrado, nosso Peinha do Cavaco, em taca “boa”, reafirmaram os “home” enfurecidos, enquanto eu, indignado com tamanha brutalidade, sofria com a rosto melancólico do nosso instrumentista, apanhar brutalmente daquela maneira, sem crime nenhum, tão somente uma sátira típica de período eleitoral, pegar uma surra daquelas, de forma covarde, não um, cinco ou nove bolos, mas algumas dezenas, de palmatória fornida e implacável, com buracos bem no centro, pra sugar o couro da mão, conforme os entendidos, e provocar, acredite, dores horríveis, ainda mais num homem inocente, compositor criativo, admirado pelos piauienses, quiçá dos brasileiros também, por isso tratamos logo, reunidos na Ufpi, a companheirada toda que fazíamos o movimento estudantil na época, por meio do DCE, Diretório Central dos Estudantes, entidade máxima dos universitários da nossa Federal, maneira carinhosa de chamá-la, de organizar um protesto contra tamanho absurdo, arbitrariedade das brabas, que batizamos, contendo toda nossa indignação, de Show da Palmatória, reunindo vários cantores da terrinha que, solidariamente, toparam soltar a voz no auditório do CCN, tomado de estudantes por todos os lados, muitos deles não segurando as lágrimas, em choro de soluçar, apesar de saberem que essa barbaridade, de tortura impiedosa, era comum durante a ditadura militar, sem falar dos assassinatos e sumiços de muitos jovens Brasil afora, a exemplo de Honestino Guimarães, estudante de Geologia na UnB, até hoje desaparecido, aos 26 anos, morto apenas por criticar o regime ditatorial e defender a democracia, relato que faço aqui, puxando da memória já fraca, com o intuito de não deixar que esses lamentáveis fatos voltem a ocorrer, bem como impedir que nossa juventude embarque em projeto nazifascista, assumindo ingenuamente, influenciados pela grande mídia e redes sociais, discursos de ódio e preconceito, pois italianos e alemães, assunte direitinho, já vivenciaram tais experiências, tudo documentado em livros filmes peças de arte, e tiveram que pagar, ao final do conflito, um altíssimo preço, tanto em grana como num montão de cadáveres, oxalá Deus nos proteja e guarde desse cruel infortúnio.