Em que ano ocorreu, não sei precisar exatamente. A memória, corroída pelo tempo, já não consegue montar, com a mesma facilidade de outrora, as peças do quebra-cabeça de fatos marcantes da minha vida. Lembro apenas que era um domingo esplendoroso e devia ter, estourando, uns 12 anos de muita traquinagem. Seo Tomé, deitado na rede, foi taxativo: “Sem um de seus irmãos mais velhos, você não irá sozinho banhar no Parnaíba”. E quando meu pai falava uma coisa, não havia ninguém neste mundo capaz de demovê-lo da ideia, nem mesmo os olhos chorosos de um filho. Como o proibido sempre desperta interesse nas pessoas, notadamente em adolescentes, nunca o “Velho monge” havia me atraído tanto como naquela manhã ensolarada, um desejo incontrolável de deitar em suas águas ainda limpas na época.
Atocaiado, como quem não quer nada, esperei o instante em que meu pai voltou a cochilar para fugir de mansinho, nas pontas dos pés – “Sem fazer barulho, é claro, / que barulho nada resolve” -, e ir banhar no Parnaíba, sem avisar nadinha de nada a ninguém lá de casa. Da Clodoaldo Freitas até o rio era um pulo apenas, uns dois ou três quarteirões abaixo. Como as coroas estavam do outro lado, em Timon, atravessei a ponte metálica e fui mergulhar próximo a um grupo isolado de pescadores, sem imaginar que o Parnaíba guarda armadilhas perigosas e, às vezes, fatais. Tudo ia muito bem, obrigado, quando, de repente, senti faltar areia sob os pés, caindo num buraco fundo e sendo arrastado pela correnteza das águas. Sem saber nadar, e tendo engolido bastante água, pressenti que a “indesejada das gentes”, como diria Bandeira, me abraçava com volúpia e sofreguidão.
Por muito pouco, felizmente, o dia não se fez escuridão em minha parca existência. Meu anjo da guarda, transfigurado em pescador, chegou bem na hora e, sussurrando no meu ouvido para eu ter calma, me puxou pelo braço. Em casa, refeito do susto, fiz a promessa de nunca mais desobedecer ao meu “velho”, compromisso que procurei honrar, na medida do possível, até a sua morte. Só escapei do afogamento, hoje tenho certeza, porque manifestei – naquele momento de total abandono e desespero – uma enorme vontade de sobreviver. Do contrário, teria partido ainda muito novo, sem ter participado desta carnavalização embriagadora que a vida se tornou. Alguns desses momentos, inclusive, vividos lá mesmo, de forma intensa e apaixonante, com pescarias no cais do rio e peladas nos finais de semana. Sem contar ainda, é claro, os festivais de música e os lançamentos literários em suas coroas.
Quem quiser que faça apologia da morte. Dela, espero tão somente que mantenha distância razoável de mim. E, sendo possível, um prolongado esquecimento. De minha parte, confesso que não morro de amores por ela, tampouco a menor atração, exceto um sentimento de total menosprezo. Eu celebro e louvo todos os dias, acredite ou não, é a grande dádiva da vida, com os eternos conflitos que a caracterizam. Como nordestino, trago em mim uma instintiva vontade de viver, mesmo que tenha de enfrentar os maiores obstáculos. Além do mais, quem recebe a visita da dita cuja, a temida dama da foice, apega-se à vida com paixão redobrada. Daí essa mania em doar-me, de corpo e alma, em tudo que faço: magistério, feiras literárias, saraus poéticos, escrita de livros, lutas políticas e produção da Revestrés.