Espanto é a palavra que traduz o que senti ao ler: “Eu, filho do carbono e do amoníaco/ Monstro de escuridão e rutilância/ Sofro, desde a epigênese da infância/ A influência má dos signos do zodíaco”, versos que maltratavam os ouvidos de um adolescente vidrado nos autores românticos, como os poetas Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. O impacto foi tamanho, diante da morbidez do tema e da crueza vocabular, que tive de parar e respirar fundo, não acreditando no absurdo daquela leitura. A queda definitiva, do meu conforto literário, ocorreu mesmo ao passar a vista nas duas últimas estrofes de Versos íntimos, seu poema mais festejado: “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/ A mão que afaga é a mesma que apedreja.// Se a alguém causa inda pena a tua chaga,/ Apedreja essa mão vil que te afaga,/ Escarra nessa boca que te beija!”.
Após esses versos estranhos, nunca mais fui o mesmo enquanto leitor e pessoa, deixando as ilusões de lado e encarando a vida sem mistificações. Sem falar também do próprio texto literário, encarado agora como um labirinto cuja saída precisamos desvendar. Se não atende ao sentido utilitário da sociedade capitalista, a poesia serve, pelo menos, para revolver nossos conceitos estéticos e a concepção da alma humana. Que o belo pode ser extraído tanto dos aspectos relevantes e saudáveis como dos banais e repugnantes do cotidiano. Tocar o coração das pessoas vai depender tão somente do talento e da criatividade do artista, além de certa dose de sorte ofertada pelos deuses. Como gostar de textos assim, indagava minha razão, que falam de verme, cuspe e lama, porém os sentidos não perguntavam nada, de tão maravilhados com o mau gosto.
Feliz do escritor que, 105 anos depois da morte, continua lembrado pela literatura de seu país. Glória maior é quando permanece amado pelos leitores, antigos e novos que foram surgindo. E o que dizer quando ele lançou, em vida, um único livro? Para quem não lembra ou sabe, estou falando de Augusto dos Anjos, o consagrado poeta paraibano falecido no distante ano de 1914, em Leopoldina, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Sua idade ao partir? Apenas 30 anos, muito jovem ainda, vítima de pneumonia. O título da obra, lançada em 1912, não poderia ser mais expressivo: Eu, reunião de textos marcados pela melancolia e o sentimento trágico da existência. O soco no estômago do leitor, desfazendo qualquer ilusão sobre o destino humano, é dado logo no poema que abre o livro, Monólogo de uma sombra, um sexteto perturbador: “Tal qual quem para o próprio túmulo olha,/ Amarguradamente se me antolha,/ À luz do americano plenilúnio,/ Na alma crepuscular de raça/ Como urna vocação para a Desgraça/ E um tropismo ancestral para o Infortúnio”.
A aversão às escolas literárias, embora dialogando com todas, tornou-o um poeta singular no começo do século passado, capaz de fundir tradição e inovação num mesmo texto. Para tanto, não teve receio de agradar ou desagradar leitores, tendo compromisso apenas com a poesia de boa qualidade. Sua consagração definitiva, infelizmente, chegou somente depois da morte, injustiça até hoje cometida a grandes talentos da literatura nacional. Sempre ao dormir, não sei por que cargas d’água, os versos iniciais de O morcego despertam inquietações em mim: “Meia-noite. Ao meu quarto me recolho./ Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:/ Na bruta ardência orgânica da sede,/ Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.” Grande Augusto dos Anjos, poeta daqueles que inspiram amor ou ódio, nunca a indiferença abominável.