Quando Cristovão Tezza, convidado do Salão do Livro de Parnaíba (Salipa), lá no ano de 2014, falou entusiasticamente, num papo descontraído após a palestra, sobre O homem que amava os cachorros, livro de Leonardo Padura, ficcionista consagrado dentro e fora de Cuba, nasceu um interesse danado em mim de ler a história. De cara, pelo sugestivo título da obra, bastante estranho; depois, por adorar conhecer escritores ainda ignorados. Tão logo retornei a Teresina, movido por curiosidade, corri à Anchieta para adquirir o romance, um “thriller histórico” de tirar o fôlego do leitor, composto por 589 páginas, lançado pela Boitempo.

A narrativa gira em torno de um grito, não de um grito qualquer, mas de um grito aterrador na avenida Viena, Cidade do México, e que repercute indelevelmente até nossos dias, 80 anos depois “daquele fim da manhã e princípio da tarde de 20 de agosto de 1940, aquelas horas agônicas e indistintas.” Para quem não lembra da fatídica data, é quando Leon Trótski tem o crânio esmagado  por Ramón Mercader, agente soviético a serviço de Stalin. Arma usada na ocasião, a picareta resultou num dos mais bárbaros crimes políticos do século passado, envolvendo dois antigos “camaradas” e líderes da revolução bolchevique de 1917, na Rússia. Não uma mera briga pessoal, mas luta ferrenha pelo poder em torno do projeto socialista, de redenção das classes oprimidas. A vítima defendendo a tese da “revolução permanente”, enquanto o mandante pregava a construção do socialismo, inicialmente, em um só país.

O calvário de Trótski tem início em novembro de 1927, após o fracasso de suas articulações para a retomada do poder, ao ser expulso das fileiras do Partido Comunista Soviético. Por ordem expressa de Stalin, ele é destituído das funções no Estado e deportado para o Cazaquistão, junto com sua mulher Natália Sedova e a cadela Maya. Daí para a expulsão do país, cujo exílio durou 12 anos, foi questão de tempo. A via-crúcis do renegado “traidor” da Revolução de Outubro, rótulo com que fora batizado, começa pela Turquia, passa depois pela Noruega e França, países onde é sempre perseguido pelos agentes de Stalin, e tem seu destino final no México, em 1937, com a fraterna acolhida do casal de pintores Diego Rivera e Frida Kahlo. Como se não bastasse, “seus adversários tinham decidido aproveitar o tempo e dedicaram-se a liquidá-lo da história e da memória, que também tinham se tornado propriedade do Partido.”

Igualzinho ao comandante do Exército Vermelho, o assassino também amava os cachorros, em especial os borzóis, galgos russos de pelo branco e rara beleza. Seu nome verdadeiro era Ramón Mercader, comunista espanhol recrutado pelo serviço secreto soviético para dar cabo do excomungado Trótski. Não um simples matador de aluguel, mas um homem de sólida convicção política, além de combatente corajoso da guerra civil espanhola, empunhando arma para defender os ideais republicanos frente à ameaça fascista de Franco. Até o final da vida, já tendo cumprido pena no México e vivendo em Cuba, ele nunca esqueceu a reação do inimigo ao receber o golpe na cabeça: “Saltou como se tivesse enlouquecido e deu um grito de louco.” Provavelmente, um grito que ecoa até hoje, feito o famoso quadro de Munch, nos alertando para o perigo dos regimes totalitários e dos podres poderes.