O filme começa com ela batendo no portão do Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional (RJ), lá no distante ano de 1944, reapresentando-se ao trabalho depois de alguns anos ausente. Como ninguém abre, ela bate outra vez, mas nada de resposta. Somente quando esmurra com força, deixando claro sua determinação, surge um vigilante para deixá-la entrar. Por não acreditar em cura dos loucos pela violência, através dos métodos modernos da época, a exemplo da lobotomia e do eletrochoque, coube a ela, a psiquiatra rebelde, tomar conta do Setor de Terapia Ocupacional, abandonado e entregue a enfermeiros desinteressados. Ali começava, a despeito de tudo e de todos, uma revolução no tratamento dos distúrbios mentais no Brasil: o uso da arte como principal ferramenta de reintegração de pacientes, que ela preferia chamar de clientes, ao convívio familiar e social.
Discípula de Jung, ela defendia a tese do mestre suíço que, nos casos dos esquizofrênicos, o tratamento deveria ser pela imagem, daí ter recorrido às artes plásticas para revelar suas emoções, penetrando num mundo considerado inatingível até então. O resultado não poderia ter sido melhor, com a exposição “Os Artistas de Engenho de Dentro”, no Museu Nacional de Belas Artes, revelando o talento de muitos de seus clientes. A ponto de Mário Pedrosa, crítico dos mais respeitados, tecer um comentário bastante elucidativo: “Senhores, uma das funções mais poderosas da arte é a revelação do inconsciente. E este é tão misterioso no normal, como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que a psiquiatria tem por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam harmoniosas, dramáticas, sedutoras, vivas ou belas, constituindo em si verdadeiras obras de arte.”
Além do emprego da arte, essa “pessoinha tímida”, no dizer do conterrâneo Graciliano Ramos, introduziu gatos e cachorros na triste rotina dos psicóticos, apresentados como coterapeutas, a fim de lhes preencher dois grandes vazios – a afetividade e a solidão. Em pouco tempo, os clientes já eram outros com tal convivência, mesmo não contando com a simpatia da direção do hospital que, num ato insano, envenena os bichinhos. Humanista por natureza e ideologia, ela passou logo a questionar os manicômios, explicando que havia uma enorme confusão entre hospital psiquiátrico e cárcere, os doidos sendo tratados como presos, e não pacientes. Em seu bendito diagnóstico, a loucura era necessária para se viver: “Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas muito ajuizadas.”
Essa pessoa de quem estamos falando, caso não saiba ainda, é Nise da Silveira, psiquiatra alagoana que abriu novos caminhos no cuidado dos doentes mentais. Aos 21 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, onde se formou como a única mulher entre os 157 homens da turma. Casada com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, colega de curso, ambos optaram em não ter filho para dedicar-se inteiramente à carreira médica. Filha do professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia. Denunciada por ler obras marxistas, foi presa em 1936, durante 18 meses, no presídio Frei Caneca. Deixou vários livros publicados, entre os quais Imagens do inconsciente e Cartas a Spinoza. Seu encantamento ocorreu em idade avançada, aos 94 anos, vítima de insuficiência respiratória aguda, cujo legado na área está poeticamente documentado em Nise – O Coração da Loucura, filme de Roberto Berliner. Dela é bom guardar uma frase, encarnada sensivelmente na telona por Glória Pires, para lá de atual: “É preciso não se contentar com a superfície”.