Minha vida desandou, hoje tenho certeza, depois do beijo. Não de qualquer beijo, mas daquele no asfalto. Dado num rapaz que sequer conhecia, na Praça da Bandeira, atropelado por um ônibus. O coitado escorregou do meio-fio e, fração de segundos, já não vivia mais. Gesto automático, corri pra socorrê-lo, amparando o pescoço nos meus braços. Mesmo pego de surpresa, atendi seu pedido de misericórdia: dei-lhe um beijo na boca. Pior ainda, na frente de todo mundo, incluindo meu sogro. Como iria adivinhar a presença de um repórter canalha, de jornal sensacionalista, entre a multidão que se formara para ver a desgraça alheia? Estampada na primeira página, dia seguinte, estava lá a maldita manchete, em letras garrafais: O BEIJO NO ASFALTO. A partir daí, quem diria, todos ficaram contra mim. Não entendem que o beijo foi apenas um gesto humano, de solidariedade. Que se danem!, pois não me arrependo. E por um único e simples motivo: fez eu me sentir, pela primeira vez na vida, um homem bom, sem maldade – “Lindo beijar quem está morrendo!”.

Perdoar Arandir até que seria possível, juro por Deus, mas voltar a beijá-lo nunca mais. Sempre lembraria dele beijando a boca de um homem. Isso é o fim da picada, mesmo reconhecendo a grandeza de seu gesto. Até relevaria os mexericos da vizinhança, as torturas sofridas da dupla Cunha/Amaro e os ciúmes doentios do Aprígio, meu pai. Nem lavando a boca mil vezes, acredite, eu seria capaz outra vez. E olha que Arandir é o grande amor da minha vida. Aliás, o primeiro e único namorado que tive. O homem que me fez mulher quando eu não passava de uma garotinha boba e virgem. Quanto à insinuação maldosa de ser gilete, cortando dos dois lados, nunca liguei a mínima. Amante do rapaz morto? Canalhice pra venderem jornal. Arandir é macho dos bons, daqueles que querem sexo todo santo dia, por isso não desejar ter filho tão cedo, atrapalha nossa eterna lua de mel. Vontade não faltou de ir ao seu encontro, em hotel no Largo de São Francisco, mas a lembrança do tal beijo pôs tudo a perder.

Selminha não vem, disse pra ele, mas eu vim no lugar dela. Vim por acreditar em você, na sua inocência diante da campanha sacana do jornal Última Hora. Grandíssimo filho da puta, esse Samuel Wainer! Vim também porque, ao contrário da sua esposa, não sinto nojo de você. Vim ainda porque, caso queira me beijar, meus lábios e língua estão à sua inteira disposição. Vim, por fim, pra deixar bem claro o amor que sinto por você. Não de agora, depois do famoso beijo, mas desde o namoro com a minha irmã, que o rejeita logo no momento que você mais precisa. Fiquemos em duas, dentre outras provas do meu amor: ter ido morar com vocês, a fim de ficar pertinho de ti; e ter deixado a porta do banheiro aberta, de forma intencional, para que me visse nuinha da silva, como nasci, desejando meu lindo corpo. Vou mais além, escuta Arandir, em minha louca paixão – querendo, morro agorinha com você, sem pestanejar. Bala ou veneno, tanto faz. Topa?

Seu desgraçado, não bastasse o que fez, tenta agora seduzir Dália, minha  caçula. Sempre falei que você não prestava, não valia um tostão. Mas as mulheres, ingênuas por natureza, são levadas na lábia dos canalhas. Minhas filhas provam isso. Por que eu, Aprígio, o odeio?  Por ciúme da Selminha, talvez você pense. Por ficar bisbilhotando Dália no banheiro, quem sabe. Por você ter casado com Selminha sem minha aprovação, decerto. Por você mentir pra gente que não conhecia o rapaz morto, quiçá. Por nunca ter pronunciado seu horroroso nome, porventura, preferindo chamá-lo de namorado, noivo e marido. Como explicar tamanho ódio, então, você deve estar se perguntando? Simples, meu caro: meu ódio é amor, amor dos grandes, irrespirável de tão sufocante. “Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver.” Tudo eu teria perdoado, Arandir, menos vê-lo beijar outro homem que não eu, somente eu. Mesmo tardiamente, aprenda: traição implica morte. É batata!