Ele chegou de mansinho, sem fazer alarde, mas ao falar encheu nosso coração de grande emoção, sobretudo, quando disse que, mesmo já nos braços da morte, em coma no hospital, havia driblado a indesejada das gentes, como a batizara outro pernambucano famoso, e estava vivinho da silva, pois não era louco de faltar a Balada Literária 2016, em Sampa, justo na homenagem a Caio Fernando Abreu, escritor gaúcho dos bons, além de estar morrendo de saudade dos amigos reunidos ali, na Livraria da Vila, finalzinho de novembro, bem como a língua coçando pra recitar alguns de seus poemas, painel doloroso da miséria brasileira, que as elites nacionais teimam em ignorar, e de repente, não mais que de repente, sapecou uns versos contundentes.

Deus, Tu que agora carregas um homem,

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns

sacos de cimento

De cada lado um sol insuportável…

Deus,

Choves agora no meu coração

Para que eu não pense em comprar um

guarda-chuvas de balas

E fazer justiça com as próprias mãos.

Quando vimos, o auditório, que era pequeno, explodiu numa enxurrada de aplausos e lágrimas, frevo de felicidade a celebrar o retorno dele, o João Flávio Cordeiro da Silva, conhecido por Miró, não o pintor espanhol, mas uma das vozes mais inventivas da poética independente do Brasil, nascido em Recife e morador do bairro Muribeca por vários anos, poeta popular muito querido e festejado no país inteiro, autor de diversos livros e recitador de poesia como ninguém, capaz de levar ao delírio pessoas sensíveis à boa poesia, daquelas que cortam fundo a carne da gente, misto de senso crítico e humor escrachado, o cotidiano exposto sob o olhar nada complacente de quem é oriundo da periferia, de aguçada consciência de classe, tão bem ilustrada no texto Carla.

Miró - FotoConheci Carla catando lata
Seus olhos brilhavam como alumínio ao sol
São Paulo ardia num calor de quase
quarenta graus
Pisou na lata como pisam os policiais
Nos internos da Febem
Jogou no saco
Com a precisão que os internos jogam
monitores dos telhados
E rápido foi embora
Tal qual sequestro relâmpago
Deixando a lembrança
De um tempo que não havia sequestros,
Febem
Nem tanta polícia
Muito menos catadores de lata
Os olhos de Carla
Nem desse poema precisavam. 

 

Se a poesia impressa de Miró da Muribeca já toca fundo nossa alma, imagine sendo declamada por ele, em performance inigualável, com os textos gritados e corpo em êxtase, de forma visceral e, mais importante, encarnando a verdade dos excluídos, dos que só ganham visibilidade ao ocuparem os espaços, incluindo os burgueses, e soltam o verbo com destemor e irreverência, pouco ligando se o levam a sério ou não, uma vez que, desde cedo, quando ainda sonhava em ser jogador profissional, lá nos campinhos de várzea, subúrbios de Recife, aprendeu que respeito advém de você ser excepcional no que faz, e ele, inspirado nos grandes trovadores pernambucanos, a exemplo de Ascenso Ferreira, aprendeu a lição direitinho, hoje não ficando a dever a nenhum de seus antigos mestres, mesmo ao trilhar pela vereda lírica.

Acho que foi a primeira vez que conheci a dor
Um domingo de 1971
Naquele tempo o domingo era o dia mais
feliz,
Minha mãe fazia um macarrão com carne de
lata e Q-suco
Ficávamos brincando de mostrar a língua
vermelha
Pra provar que éramos felizes….
Norma era tão linda com seus cabelos
negros,
Que me deu um branco aos 11 anos
Quando me pediu um biscoito maizena e um
gole de fratele vita…
Domingo era o dia mais feliz
Antes de Norma beijar um outro na boca

E pra completar nossa alegria, ele chegou com livro novinho, Miró até agora, lançado pela Cepe, coletânea reunindo sua obra entre 1985 e 2012, esse recifense que prefere ser chamado “cronista da cidade”, por retratá-la crua e verdadeiramente, sem as pieguices costumeiras dos bardos tradicionais, ainda mais ao viver sóbrio nesses últimos meses, longe do álcool – “Quando um bêbado vai embora / Nem o bar sente saudade” -, como bem diz versos da nova fase. Em belo projeto gráfico, com retrato do poeta na capa, temos os seguintes títulos: Quem descobriu o azul anil? (1985), Ilusão de ética (1995), Pra não dizer que não falei do flúor (2004), DizCrição (2012) e a Deus (2015). Para quem não o conhece, é recomendável ficar de olho em Miró da Muribeca, lendo seus textos e pesquisando sobre ele na internet, uma vez que uma coisa é certa: sua poesia vicia que nem beijo na boca.