sangueAlguém me perguntou, certa vez, sobre os critérios que levam um livro a ser considerado obra-prima. O fato de cair no gosto dos leitores e, por conseguinte, virar best-seller? Aparecer sempre na lista dos críticos como um dos dez melhores já publicados? Ou, ainda, ser tão difícil a ponto de nenhum cristão entender patavina nenhuma, exceto os intelectuais e uns metidos a sabido? Embora o referido assunto seja bastante polêmico, arrisco indicar o tempo como um dos critérios mais confiáveis de todos, esse impiedoso senhor de barbas brancas. De tal modo que, caso o livro continue lembrado e lido após 50 anos de seu lançamento, é sinal dos melhores, de que ele já faz parte do patrimônio cultural da nossa gente, ou até mesmo, da humanidade. Em nossa literatura podemos citar, dentre outros textos, três livros da mais alta qualidade, que ultrapassaram esse tempo e permanecem atuais como nunca.

O primeiro é Sangue, obra de Da Costa e Silva publicada aos 23 anos, quando o poeta amarantino cursava Direito em Recife, tiragem pequena em termo de quantidade, mas significativa do ponto de vista da qualidade literária. Estreia madura de um jovem com pleno domínio tanto da técnica quanto dos temas a tratar. Dos 48 poemas contidos no volume, a grande maioria em forma de soneto, aparece o seu texto mais popular: Saudade, canto dos mais sofridos e pungentes das letras nacionais, palavra tão bem sintetizada nesta belíssima metáfora – “Asa de dor do Pensamento!”. Se duvidarem, ele está para a literatura piauiense assim como a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, está para a literatura brasileira. Sobre o amor, assunto sempre recorrente em sua obra, o destaque fica por conta da visão erótica da mulher, apresentada aqui como fonte de recônditos e indescritíveis desejos.

esau-e-jacoEsaú e Jacó, penúltimo romance de Machado de Assis, é outro livro que ultrapassou o centenário, trazendo nas entrelinhas do triângulo amoroso – envolvendo Pedro, Flora e Paulo – a relatividade dos sentimentos e das convicções ideológicas. Em seu livro mais político, o Bruxo do Cosme Velho aproveita para alfinetar conservadores e liberais, dando a entender que os adeptos das duas correntes, quando no poder, têm práticas muito semelhantes, sendo difícil distingui-los, como aponta em trecho memorável: “E lembrava-se do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal e vice-versa.” Os irmãos, alegorias de monarquistas e republicanos, engalfinham-se numa desesperada luta pelo poder (Flora), mal sabendo que o perdem de vez. Para Natividade, mãe dos gêmeos, o que importava era a previsão da cabocla do Castelo: os filhos teriam um futuro promissor e seriam grandes homens.

grande-sertaoOutro livro extraordinário e que tem leitura obrigatória, pelo menos entre os amantes da boa literatura, é Grande sertão: veredas, texto de Guimarães Rosa considerado o melhor romance da ficção brasileira, palpitante história de amor entre dois jagunços no sertão mineiro. Riobaldo ainda se angustia diante de certas indagações que não querem calar – é tão assombroso assim invocar o Demo e gostar de um companheiro de bando? Além do mais, constata que viver é muito perigoso, sem falar da descoberta que o sertão é o mundo, o sem lugar, estando em qualquer parte. Que ninguém duvide, confidencia ao amigo doutor, todo caminho da gente é resvaloso, inclusive a paixão que nutre por Diadorim, um pouquinho de saúde no descanso da loucura. Afinal, caro leitor, no viver tudo cabe, até mesmo catar um tempinho que seja para queimar pestanas nesses livros instigantes. Ainda mais em tempos de incertezas como os atuais.