(1)

Menino, quase morro afogado no Parnaíba. Faltou pouco, um tantinho de nada, pra morrer de vez, pra sempre. Não fosse um pescador, dificilmente estaria aqui pra contar a história. Por um dedo apenas, não parti desta, segundo o ditado, pra melhor. Quem mandou não saber nadar, mesmo morando próximo ao rio. Ou, ainda, pior: desobedecer meu pai. Seu Tomé foi claro, “sem um irmão mais velho, não vá”. E pressentindo algo, talvez, disse que “água é bicho traiçoeiro, sedutor de afoitos”. Quando dei por mim, já estava do lado de Timon, sozinho e feliz da vida, mergulhando nas águas deliciosas do Velho Monge. Era um belo domingo, de céu azul e sol escaldante, como nunca vira antes. Mas havia, infelizmente, um buraco pra estragar tudo. Ou quase tudo, não fosse um pescador, restituindo-me a vida em todo seu esplendor.

(2)

A intimação deixara todos, em casa, apavorados com a ideia de uma prisão. Que aprontara eu pra ser convocado à Polícia Federal? Coisa boa não foi, disse um dos irmãos. Quem sabe não esteja puxando uns baseados, questionou outro. Meu velho, até então calado, ventilou que talvez fosse meu envolvimento com a política estudantil na Ufpi. Aos prantos dona Mundica, minha mãe, não conseguia expressar uma palavra sequer. Atordoado, falei não saber de nada, o motivo daquilo. Na PF, queriam saber, com folheto na mão, qual o sentido do termo revolução. E que diabo significava beijo na bunda, num show musical, frase que encerrava o texto. Cultural, respondi em relação à primeira, uma boa chacoalhada nas artes teresinenses. Pra segunda, apenas uma saudação fraternal, de boas-vindas às pessoas, sem maldade nem caráter erótico. Ainda bem, afirmaram os agentes. Mas um deles, querendo tirar sarro, indagou se costumávamos, nós do teatro, beijar na bunda uns dos outros. E qual o problema, devolvi a peteca pra ele, quando há vontade e desejo?

(3)

Por muito pouco não apanhei naquela tardinha. E, cá entre nós, merecidamente. Outros colegas não tiveram, infelizmente, a mesma sorte. De chicote, no lombo, tomaram uma surra das grandes. Pior, na frente de todos, sem ninguém, uma vivalma sequer, pra sair em defesa do pobre garoto. Bem feito, dizia a plateia, quem mandou atirar mamonas nos passageiros? Linha Teresina com destino a Timon, e vice-versa, tão logo o ônibus passava no fundo da Casa do Estudante. Escondidos em manilhas, com baladeira em punho, só acertávamos na cabeça, incluindo o olho de alguns. Sem dó nem piedade, feito índios cheyennes, que víamos maravilhados nos filmes de faroeste. Naquele fatídico entardecer, entretanto, o dia era da caça, restando aos caçadores fugir ou aguentar firme a justa punição. Não fosse bom de correria, saindo na tumbada, teria apanhado duas vezes: do motorista, sedento de vingança, e do meu pai, implacável que era com as traquinagens dos filhos. Sofrimento maior é guardar ainda hoje, passados tantos anos, lembranças que cortam fundo o corpo e, sobretudo, a alma da gente.

(4)

Pra garotada da Clodoaldo Freitas ele, o Avião, era tudo de bom e algo mais. Não só da rua, mas de toda redondeza. Quiçá, da zona norte inteira. Bastava despontar na esquina, corríamos em disparada ao encontro do verdadeiro Papai Noel. Indistintamente recebíamos todos, ainda ofegantes, presentes maravilhosos – bola, revólver, boneca, peteca, casa pra montar, papagaio, carro, pulseira e bichos variados (cão, gato, peixe, pássaro). Nossos corações davam pulos e cambalhotas, meninos e meninas, de tanta alegria e felicidade. Mas gostávamos também quando Avião encarnava, através de histórias mirabolantes, o papel de herói salvando gente no rio Parnaíba, atirando-se do topo da ponte metálica pra socorrer afogados. Igualzinho Tarzan, com faca na boca, batida no peito e o estridente grito a ecoar por Teresina. Fatos de um passado distante impregnados de eternidade, mas como dói.