A notícia da morte de Belchior no último domingo, em Santa Cruz do Sul (RS), onde vivia recluso com a mulher, deixou seus fãs completamente atordoados. Que não andava nada bem desde 2007, quando resolveu abandonar a carreira artística, todos nós sabíamos. Não em termos de saúde, mas em crise existencial, procurando uma saída no intricado labirinto destes tempos modernos. Doloroso foi vê-lo partir ainda tão jovem, aos 70 anos, distante dos palcos e com letras ainda inéditas. A fim de homenageá-lo, esse poeta e filósofo cearense dos bons, socializo uma crônica que publiquei em novembro de 2012.

O telefone tocou cedo na segunda-feira, quando já saboreava um delicioso café da manhã, com dona Raimunda manifestando preocupação a respeito de matéria veiculada no Fantástico da noite anterior. Aos 87 anos, mamãe só liga em caso de extrema necessidade, hábito de não querer dar trabalho aos filhos. Ainda bem que ela, sob o aspecto da saúde, estava saudável. Sua angústia era de outra natureza, a reação que eu teria face à suposta prisão de um cantor tão querido por mim.

Musico Belchior em 1977.  FOTO DIVULGAÇÃO.

Belchior em 1977

– Filho, assistiu ao Fantástico de ontem?

– Não, mãe! Saiu alguma coisa de interessante?

– O cantor de quem você gosta tanto está ameaçado de ser preso.

– A senhora está falando de qual deles?

– Daquele do Ceará, que diz não ter dinheiro em banco nem parentes importantes.

– O Belchior?

– Sim, a polícia do Uruguai anda atrás dele…

– Por que querem prendê-lo?

– Alegam que ele saiu do hotel sem pagar a conta.

– Isso não é motivo, mamãe, para alguém ser preso.

– Também não é correto, meu filho, a pessoa dar calote nos outros.

– Se depender de mim, ele não irá para o xilindró.

– Que pensa, então, fazer?

– De braços cruzados, dona Raimunda, é que não ficarei.

– Olha no que você vai se meter, meu filho.

– Não se preocupe, deixe comigo!

Terminada a ligação, fiquei conversando com os meus botões. E se os fãs nos mobilizássemos, via internet, para arrecadarmos o dinheiro do hotel. Como somos milhares de fãs espalhados por este imenso país, entre os quais um montão de piauienses, logo juntaríamos uma boa grana para saldar essa e outras pendências financeiras do nosso ídolo. De modo que ele pudesse a partir daí, livre das dívidas, retomar a carreira artística e levar uma existência normal. Algumas pessoas, entretanto, estranharam minha proposta.

– Mas o que você tem, afinal, com as confusões do Belchior?

– Nada e tudo.

– Dá para explicar melhor esse paradoxo?

– Sequer o conheço, porém estamos ligados espiritualmente.

– Como assim?

– De tanto curtir seu trabalho, ele já faz parte da minha vida.

– Desde quando?

– Por volta de 76, ao ouvir “Alucinação”, disco que me livrou da mais completa loucura.

– O que sua música tem de tão especial assim?

– Poesia e filosofia embaladas, caso raro hoje em dia, em belíssimas melodias.

– Por que ajudar alguém que, mesmo abençoado por Deus, colocou tudo a perder?

– Talvez por sabermos que o céu é tão alto, sendo as quedas, às vezes, humanamente inevitáveis.

Diante do olhar cético de quase todos, a saída foi cantarolar trechos das inesquecíveis composições de Belchior, a exemplo de Mucuripe, Velha roupa colorida, Medo de avião, Fotografia 3X4, Paralelas, Apenas um rapaz latinoamericano, Divina comédia humana, Na hora do almoço e Retórica sentimental. Como vamos permitir que esse maravilhoso trovador, capaz de nos fazer levitar e de embalar nossos sonhos mais caros, termine sua linda trajetória de forma tão melancólica? Que seus verdadeiros admiradores e amigos façamos chegar até ele que, tão logo resolva meter o pé na estrada, estaremos lotando ginásios e teatros para aplaudi-lo com a mesma paixão de sempre. Onde se viu alguém com o talento de produzir Como nossos pais, sucesso consagrado na voz de Elis Regina, seja esquecido de uma hora para outra. Nunquinha de nunca!