(I)

Ano passado, quem diria, ela quase partiu desta pra melhor. Segundo o médico que a atendeu, Cláudia escapou por graça divina. Agora estava ali toda faceira, com Jivago, curtindo a Banda Bandida, na 24 de janeiro, na maior animação do mundo. Nem parecia a mesma garota que, desiludida, indagou-me se o amor, esse sentimento enigmático, acabava depois de proporcionar, ao longo de três anos, momentos de pura leveza. Ainda mais, dizia magoada, sem dar nenhuma explicação para o fim do relacionamento entre os dois. Sem resposta, apenas disse que não tivesse pressa, aceitando a silenciosa companhia do tempo, senhor de tudo. Fui além, que não valia a pena tirar a vida por causa de homem, ser tão ignóbil. “Conheço a raça, faço parte dela”, expressei diante de seu olhar incrédulo. Ao apresentar-me o marido, que conhecera há seis meses, encarnava uma foliã alegre como nenhuma outra no pedaço.

(II)

Criança ainda, eu já gostava de carnaval. Não perdia um ano sequer, na Frei Serafim, o desfile das escolas de samba. Para mim, tudo aquilo era mágico e sinônimo de alegria. Meu coração disparava a cada escola que entrava na avenida, com seus componentes sambando freneticamente, sob o irresistível ritmo da bateria. Mas, entre os milhares de foliões, inconfundível no meio deles, um merecia toda a minha atenção. Era a Nicinha, a carnavalesca mais animada que já encontrei na vida. Sem pertencer a nenhuma escola, ela despontava como autêntica porta-bandeira de todas. Tudo nela me fascinava, dos óculos fundo de garrafa até a pequena estatura. Sem falar também de sua zanga, quando caçavam conversa com ela, chamando-a de “doida”. Anos depois, para minha tristeza, soube que a tinham matado, os tidos como “normais”, com requintes de crueldade. O carnaval de Teresina, daí em diante, nunca mais foi o mesmo.

(III)

Naquele distante ano de 1980, eu ainda era virgem. Aos dezoito anos, podem não acreditar, desconhecia os remelexos das ancas. O danado do medo paralisava meus desejos, sem falar do angustiante sentimento de culpa, que me torturava até dormindo. Sexo para as mulheres, ensinavam os lá de casa, somente depois do casamento. Mas, entre os costumes e os apelos da carne, havia um carnaval, melhor dizendo, uma prévia carnavalesca, daquelas que são fatais, especialmente para as que andam a perigo. As preliminares começaram no salão do Iate, com troca de carícias e beijos, nós dois engolidos pela massa de foliões; os finalmente, concluídos no aconchego de um fusca, no estacionamento do clube, as modinhas abafadas pelos gemidos de um casal de mascarados. Boba na época, entreguei-me de graça, nunca imaginaria que um simples hímen, algum tempo depois, valeria milhões de dólares.

(IV)

Hoje todos me responsabilizam por algo que não tive culpa. Pelo menos, sozinha. Mas de nada adianta explicar. A megera é sempre, nesses casos, a mulher. De dedo em riste, quase triscando no meu nariz, as irascíveis bocas vociferam palavrões impublicáveis. Até dos próprios familiares, inclusive meus pais, não escapei do linchamento público. Como se fosse a única mulher casada a deixar o marido, após o carnaval, para ficar com um homem que acabara de conhecer. Mal sabem que a ideia partiu do Rogério, e não de mim. Ao chegarmos a Salvador, ainda na sexta-feira, ele foi taxativo: “aqui, longe do olhar da província, cada um toma seu rumo, voltamos a nos encontrar somente no aeroporto.” No dia combinado não apareci, apenas liguei, informando-o que ficaria por ali mesmo, nos braços do meu novo e, quem sabe, eterno amor. Que mulher resiste, por mais santa que seja, a um negão lindo e de olhar faceiro?